Segunda-feira, 9 de setembro de 2019 - 19h21
As crônicas de Gaspar de Carvajal,
padre espanhol que navegou pelo rio Amazonas no século 16, descrevem uma área
repleta de aldeias indígenas. ”Encontramos muita louça dos mais variados
feitios: havia talhas e cântaros enormes... tudo da melhor louça que já se viu
no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala”. Por muito tempo, essas e
outras crônicas da época que relatam a intensa presença humana na região foram
tidas como exageradas e fantasiosas. Uma expedição arqueológica à comunidade
Bom Jesus da Ponta da Castanha, na Floresta Nacional de Tefé, no Amazonas,
encontrou indícios de que o local pode ter sido habitado por muitas pessoas no
passado.
A Floresta Nacional de Tefé (Flona) é
uma unidade de conservação federal sob gestão do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“Não podemos dizer que é um sítio
arqueológico só. O que a gente está vendo é um complexo arqueológico de vários
sítios, que podem ter histórias diferentes, mas que estão interligadas”, revela
Rafael Lopes, pesquisador associado do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e
Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá, organização
social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e
Comunicações (MCTIC).
A expedição envolveu mais de 40 pessoas
durante um mês de trabalho e encontrou uma grande quantidade vestígios
arqueológicos de pelo menos 5 ocupações humanas diferentes no local. Algumas
delas, como as cerâmicas da tradição Pocó podem ser datadas de até 3.000 anos
atrás. As diferentes tradições são conjuntos de vestígios em cerâmica, como
vasos e urnas funerárias, com padrões como decorações e adornos similares e que
estão relacionadas a períodos específicos.
O complexo arqueológico é marcado pela
presença de um vasto castanhal que, segundo moradores locais, apesar de se
estender por quilômetros, não se prolonga por mais de 500 metros na mata em
relação à praia.
O padrão não natural na dispersão
dessas castanheiras é mais um indício de que a área abrigou uma grande
quantidade de pessoas que, provavelmente, já manejavam essa e outras espécies
vegetais há centenas ou milhares de anos. Outra evidência é a presença de terra
preta – solo extremamente fértil associado a ocupações humanas de longa duração
em um mesmo local.
Além do material cerâmico, foram
coletados carvões de sementes e material lenhoso, que permitirão uma maior
compreensão das datas associadas às diferentes ocupações encontradas no local e
de como elas se relacionavam com a paisagem. “O mais impressionante do sítio foi
a diversidade do contexto arqueológico que ele mostrou. Ficamos um mês aqui
trabalhando e conhecemos 1% dele”, conta Rafael.
A Tradição Policroma da Amazônia
A louça descrita pelo padre espanhol
assemelha-se à produção cerâmica que conhecemos hoje como Tradição Policroma da
Amazônia (TPA), caracterizada por suas decorações acanaladas e pelo uso de
tintas marrom, vermelha e preta sobre engobo branco.
Acredita-se que esse tipo de produção
cerâmica, de datações que vão do século 6 até a chegada dos europeus, fosse
comum na Amazônia na época do contato dos colonizadores com as populações
indígenas. A maior parte do material encontrado na Ponta da Castanha foi
associado a essa tradição.
O complexo arqueológico pode conter
informações importantes sobre as pessoas que moldavam seus artefatos com esse
padrão estético. “Por aqui nós temos datas bem recuadas para essa tradição e,
ao mesmo tempo, datas bem recentes. “, explica Rafael, cuja pesquisa de
doutorado tem como objeto a TPA.
Segundo o pesquisador, a TPA pode ser
encontrada em sítios arqueológicos associada a outras produções cerâmicas em
datações que vão até o século 12, a partir do qual, apenas o material da TPA é
encontrado. “Isso pode estar associado a uma transformação histórica que
acontece por toda a Amazônia e que transforma também a escolha dos lugares onde
se ocuparia. Acredito que há um crescimento muito maior das ocupações
associadas à beira do rio Solimões, enquanto anteriormente os grandes sítios
estão associados a lagos”.
“A partir do século 12 pode ter
ocorrido essa transformação que levou as pessoas a abandonarem esses sítios ou
reocuparem eles de outras formas”, explica Rafael. “Pode ser pensado um padrão
como é o de hoje com a cidade de Tefé, onde as grandes cidades do rio Solimões
ficam na beira desse rio, enquanto nos lagos a gente encontra comunidades. São
comunidades grandes, mas que comparadas às cidades, são muito pequenas”.
De acordo com Rafael, as estimativas
mais concretas apontam que cerca de 10 milhões de pessoas viviam na Amazônia no
momento da chegada dos europeus. “Só chegamos a uma quantidade de pessoas
parecida com a que existia em 1499 no final do século 20 na região”.
A Tradição Policroma da Amazônia tem
ampla dispersão, especialmente no oeste amazônico, o que pode indicar conexões
entre grupos muito distantes, redes de troca de longa distância. “Essas pessoas
estão se encontrando e comunicando histórias parecidas, identidades
relacionadas e essa marcação específica que é a cerâmica policroma“.Sabe-se que
essa dispersão aconteceu rapidamente a partir do século 10 e pode estar
associada ao processo de expansão dos povos de língua tupi. “São processos
muito rápidos, associados a guerras, trocas e festas, que vão transformando
totalmente a paisagem sociopolítica das regiões onde eles chegam”.
O trabalho de campo
Além do GP em Arqueologia, o trabalho
de campo envolveu pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Ecologia Florestal do
Instituto Mamirauá, que realizaram um inventário florístico do local procurando
entender como o manejo humano pode ter influenciado na paisagem local.
Os pesquisadores contaram também com o
apoio dos moradores da comunidade Bom Jesus da Ponta da Castanha que, além de
trabalharam nas escavações, emprestaram suas casas e o centro comunitário para
abrigar os cientistas. “A comunidade foi incrível, as pessoas acolheram a gente
de uma forma fenomenal. O conhecimento dos comunitários foi muito importante
para a gente entender o sítio, entender essa região. Sem o apoio da comunidade
não teríamos conseguido fazer o trabalho”, conta Rafael.
Para o presidente da comunidade,
Jucelino Oliveira da Costa, foi uma surpresa encontrar tanto material
arqueológico na Ponta da Castanha. “Eu não sabia que a gente pisava em cima
dessas riquezas. Para nós, é muito importante saber o que tem enterrado aqui
embaixo desse chão”.
Também participaram da expedição
pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da
Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade de São Paulo (USP),
Universidade Federal de Sergipe (UFS) e a Universidade Federal do Oeste do Pará
(Ufopa).
Eduardo Neves, arqueólogo do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP, considera que o sítio tem grande potencial para
o estudo das diferentes ocupações que ocorreram nessa região da Amazônia. “Não
só pela parte da arqueologia, mas essa perspectiva de integração entre a
arqueologia e a história da paisagem. Temos questões muito relevantes aqui para
a arqueologia de toda a Amazônia”.
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