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Meio Ambiente

Submetido pelo agronegócio, Incra favorece o desmatamento



Poucos dias após a divulgação de lista com os maiores desmatadores da Amazônia, feita pelo Ministério do Meio Ambiente e que causou polêmica por apontar assentamentos de reforma agrária do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) entre os maiores devastadores, o Correio da Cidadania conversou com o geógrafo e professor aposentado da USP Ariovaldo Umbelino. O professor não somente desqualificou o critério utilizado pelo ministério como também apontou tais dados como prova de uma política, deliberadamente, equivocada de assentamento dos trabalhadores rurais.

Para o professor, o INCRA trata de promover um processo de reforma agrária atrelado aos interesses do agronegócio, implantando-o, ou deixando de fazê-lo, em áreas que interessam aos grandes produtores. De acordo ainda com Umbelino, não há possibilidade em se conter o desmatamento da Amazônia, e esse é o grande eixo da questão, enquanto a União não tomar posse definitivamente de todas as áreas públicas da região. Essas áreas são constantemente griladas e desmatadas pelo agronegócio, sem que posteriormente alguém se responsabilize pela sua destruição, pois na verdade não são de propriedade de quem se aproveita delas.

Correio da Cidadania: O aumento do desmatamento em mais de 100% entre julho e agosto esteve especialmente concentrado na Amazônia. Qual a razão dessa concentração? Ela é decorrente de uma política ambiental mal conduzida?

Ariovaldo Umbelino: Vamos por partes. O primeiro ponto é que o processo de desmatamento da Amazônia é histórico. O que aconteceu nos últimos 20 anos é que ocorreu um crescimento do ritmo de desmatamento, sendo 2005 o ano de pico, quando quase 30 mil km² de florestas foram devastados. De lá para cá, ocorreu a moldagem, por parte do Ministério do Meio Ambiente (MMA), de um programa de combate ao desmatamento visando reduzir seu ritmo. Não se trata de um programa para acabar com o desmatamento na Amazônia, mesmo porque a legislação brasileira, em seu código florestal, permite que as propriedades na Amazônia legal possam ter até 20% de seus terrenos desmatados. Assim, o desmatamento sempre vai existir.

O que ocorre agora é diferente; refere-se ao fato de que há um conjunto de municípios na Amazônia que estão desmatando acima do percentual permitido pela legislação. E depois da divulgação desses últimos dados, viu-se que seu ritmo voltou a crescer, mas isso num período do ano em que seria normal aparecer o desmatamento, pois coincide com o período da seca, que na Amazônia está em seu final. É evidente que no período de seca, ainda que curto, se constatam os maiores níveis de desmatamento na região.

Porém, do ano passado para este, ocorreu uma mudança na estratégia do agronegócio que atua na região, pois este sabe que o MMA, por meio de imagens de satélites, faz a fiscalização praticamente direta, em tempo real. Então, começaram a desmatar no período das chuvas. Portanto, boa parte do desmatamento, do ano passado para cá, ocorreu exatamente no período de chuvas, uma forma de driblar a fiscalização do ministério, já que os satélites não oferecem imagens suficientes para um maior controle do desmatamento quando enfrentam a cobertura de nuvens. E essas duas informações são fundamentais.

A terceira informação se refere ao fato de o ministério divulgar uma lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia. Isso é outro ponto. E entre os maiores desmatadores, os seis primeiros lugares são ocupados pelo INCRA, referentes a assentamentos da reforma agrária. No entanto, quando analisamos esses assentamentos, vemos que se referem não só ao desmatamento do período divulgado, mas àquele que vem desde 2005. A lista se refere ao desmatamento cumulativo.

No assentamento do INCRA há um numero ‘x’ de famílias. O que o ministério deveria fazer é dividir esse dado geral da área de desmatamento pelo número de famílias, porque neste caso, sim, estaria coerente com a lista dos outros desmatadores, divididos de propriedade em propriedade. Além dessa questão mal explicada pelo MMA, o fato é que ocorre desmatamento por fora do controle da lei nos assentamentos de reforma agrária na Amazônia porque o governo atual concentrou a maior parte de sua chamada reforma agrária por lá; 68% dos assentamentos foram feitos na região amazônica legal.


CC: O INCRA não estaria, portanto, conduzindo uma política agrária de modo autônomo e sustentado?

AU: Na realidade, o INCRA não consegue implementar uma política de reforma agrária com seus dois pilares-mestres: uma política fundiária, ou seja, realizar desapropriações e promover assentamentos; e uma política agrícola que possa garantir a sustentabilidade desses assentamentos. A realidade é que as famílias assentadas ficam ao deus-dará.

Por exemplo, no assentamento que ficou em primeiro na lista (que tem até um nome curioso, Mercedes-Benz), localizado no município de Tabaporã, norte do Mato Grosso, qualquer um pode verificar que de fato ocorreram desmatamentos além do permitido por parte dos assentados. Porém, ninguém pergunta o porquê disso ter acontecido. Por que os técnicos do INCRA que fazem o acompanhamento de tais assentamentos não viram o que acontecia? Porque na verdade não há uma política agrícola capaz de dar suporte às famílias. Mas esse fato não explica integralmente a situação, pois o que acontece é que esse assentamento está localizado exatamente numa frente de expansão da pecuária e da soja. Da pecuária vindo de Porto dos Gaúchos e Juara e da soja vindo de Sinop. Portanto, tais assentamentos ficam em áreas onde há pressão para se desmatar.

Como as grandes propriedades estavam sendo fiscalizadas, os pecuaristas próximos aos assentamentos estimulam os assentados a formarem pastagens, em seguida oferecendo os bezerros para serem criados. A cada 5 bezerros que lhes entregam, o assentado fica com um e devolve quatro. Na realidade, é o próprio agronegócio que não somente estimula a expansão da pecuária para o desmatamento como ainda fornece as condições para tal. Isso acontece pela falta de uma política agrícola, e tal responsabilidade recai sobre o INCRA.

CC: O MST já chegou a se defender publicamente de acusações que vêm pipocando na mídia, e que lhe transferem a responsabilidade pelos desmatamentos. Como o movimento entra nessa história a seu ver?

AU: O que há é uma má intenção da mídia, esse é o problema. Ao invés de olhar para os municípios para verificar se só nos assentamentos houve desmatamento, ela prefere não verificar nada. Se observarmos as imagens do município de Tabaporã, pode-se ver que, nas áreas de pecuária das grandes propriedades, o desmatamento é muito maior, mas a verdade é que ninguém olha a lista por completo. O foco da mídia ficou na reforma agrária, nos assentamentos do INCRA. E não se trata de defender cegamente o órgão, pois ele também se equivoca na condução da política de reforma agrária.

O fato deve servir para que se tenha consciência de que a política do governo atual é equivocada, não está baseada numa articulação que vise a sustentabilidade dos assentamentos, ainda que no discurso o ministro da Reforma Agrária e o presidente do INCRA defendam esse foco. A reforma agrária está sendo feita através do agronegócio, por isso vemos coisas assim acontecerem.

A questão é que a defesa que o MST faz é uma defesa geral, e parte expressiva desses assentamentos na Amazônia legal feitos pelo INCRA veio colada aos interesses do agronegócio - da pecuária e da madeira. Tudo isso é verdade, tanto que no ano passado houve uma denúncia bastante séria sobre esses assentamentos e, inclusive, o Ministério Público move uma ação em que o conjunto de assentamentos feitos em 2006, na área do município de Santarém, foi bloqueado, pois na verdade eram assentamentos forjados para favorecer os madeireiros do Pará. É essa questão que tem de ser levantada.

O que não se conhece é a intenção do MMA ao fazer esse tipo de lista, com tais características. A impressão que se passa é a de que se trata de uma ação orquestrada dentro do próprio governo para abandonar a reforma agrária como política pública necessária, não somente para promoção do desenvolvimento rural do Brasil como também para aumentar a oferta de alimentos.

CC: Portanto, constata-se mais uma vitória do agronegócio, colocando a seu serviço os próprios responsáveis pela reforma agrária.

AU: Não é que o agronegócio tenha conduzido a esse quadro, mas sim que a política de reforma agrária do INCRA é a de deixar de fazer a reforma nas áreas em que o agronegócio não deseja e fazê-la onde ela pode ser útil ao mesmo agronegócio. Essa é a política do órgão, totalmente equivocada.

O INCRA, em conjunto com os ministérios do governo, deveria fazer um trabalho para que os assentamentos da reforma agrária não se desenvolvessem dessa forma, isso é ponto pacífico. Infelizmente, não é o que ocorre.

O segundo aspecto é que o MMA deveria divulgar essa relação com todos os desmatadores. É evidente que neste caso jamais o INCRA poderia aparecer como maior desmatador, isto é, tendo a área de assentamentos considerada como se fosse uma só. Aí há uma má intenção política, no sentido de colocar a reforma agrária numa posição de responsável pelo desmatamento, quando se sabe que isso não é verdade. Quem desmata na Amazônia são os madeireiros, os pecuaristas e agora os produtores de soja, que estão avançando pela área de floresta.

CC: Você acredita na efetividade de fundos como o recém anunciado pelo governo, inclusive com aporte de recursos externos, para preservar a Amazônia?

AU: Enquanto não se tomar uma atitude objetiva e concreta de retomada das terras públicas na Amazônia, não há qualquer possibilidade, qualquer que seja a política, de frear o desmatamento. Ele ocorre majoritariamente em terras públicas. O INCRA possui numa faixa ao longo das rodovias na Amazônia legal cerca de 67 milhões de hectares de terras públicas. Fora isso, tem toda a faixa de fronteira, correspondente a 150 quilômetros.

A verdade é que o INCRA não incorpora esse patrimônio e o Estado brasileiro não tem controle sobre essas terras. O que se vê é o agronegócio entrando e grilando-as. Depois, quando aparece a fiscalização do Ministério Público para multar, verifica-se que a terra não pertence àquele que a desmatava. Dessa forma, nunca aparece o dono, o responsável pelo desmate.

Por exemplo, no município de Boca do Acre, e outros municípios no sul da Amazônia, há uma expansão de agropecuária. E esse município também está na lista dos que mais desmatam. Ocorre que lá os criadores de gado (provenientes de Minas Gerais) – na região também há um projeto de assentamento do INCRA, denominado Monte – oferecem aos assentados para comprarem um lote deles. A rigor, isso é proibido por lei, mas o INCRA também não faz nada nesse aspecto. No entanto, a condição para que se efetue a compra é que o terreno seja entregue todo desmatado. Vira um assentamento a serviço da pecuária. E por que há essa frente de agropecuária por lá? Porque há um frigorífico recém-instalado em Boca do Acre que abastece Manaus. E pelo que consta na região, pertenceria a um político famoso do estado do Amazonas. É mais um caso de ação ilegal, mas o órgão de Estado que deveria fazer cumprir a lei simplesmente se coloca a serviço dessa ilegalidade.

CC: A Amazônia está realmente ameaçada, em sua opinião, por reservas indígenas, conforme muito se aventou por ocasião das fortes discussões sobre a homologação contínua de Raposa Serra do Sol?

AU: Com relação especificamente a esse caso, o parecer do ministro-relator do processo no Supremo (Carlos Ayres de Britto) foi cristalino. De forma clara e objetiva, mostrou que na verdade é da competência do poder público federal, como também da alçada do Ministério da Justiça e da Funai, a atribuição legal de fazer a demarcação dessas terras. Pela Constituição brasileira e pela legislação do direito agrário brasileiro, o direito dos índios é o primeiro, ou seja, é originário sobre as terras.

Se olharmos para as terras preservadas na Amazônia, vamos constatar que elas são terras indígenas. Portanto, as terras indígenas é que correspondem às áreas de preservação da floresta. Sendo assim, quanto mais terra indígena demarcada, maior a possibilidade de preservação. Não esqueçamos que a Amazônia tem cerca de 500 milhões de hectares e as terras indígenas correspondem a 120 milhões; não ocupam a maior parte do território nem de longe. Essa história de criticar os territórios dos índios é uma estratégia do agronegócio já de longa data por aqui. Isso ocorreu muito durante o Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, do governo Sarney. Lá atrás já faziam essa crítica, mas na verdade as grandes propriedades griladas na Amazônia correspondem a uma área muito superior à das terras indígenas, mesmo se considerarmos as terras indígenas que já foram griladas também – como exemplo disso, ainda há pouco o ministro do Meio Ambiente fez uma apreensão de gado bovino dentro de uma reserva ecológica.

A postura do agronegócio na Amazônia eu defino como agrobanditismo, pois visa não só se apropriar do patrimônio público, como também destruir a floresta, convertendo a madeira em mercadoria e a floresta em pastagens.

CC: Minc representa um retrocesso na política ambiental relativamente a Marina Silva?

AU: É muito cedo para fazer qualquer crítica ao atual ministro, mesmo porque foi recém-empossado e ainda não pôde tratar do conjunto das políticas da pasta. Dentro de um certo tempo é que se poderá avaliá-lo.

Até onde o conheço, posso dizer que possui formação intelectual para avaliar de forma adequada o que acontece na Amazônia, sendo evidente que ele não precisa de uma assessoria para informá-lo disso, pois já possui formação profissional para saber dos problemas existentes na região.

A questão fundamental no ministério é que, também durante a gestão da Marina, havia uma lentidão nas ações dos órgãos ministeriais, e evidentemente tal lentidão não favorece a ninguém, nem a quem defende a floresta em pé e nem a quem a defende no chão.

A gestão da Marina sempre enfrentou a oposição do Ministério da Agricultura e, sobretudo, a do governador do Mato Grosso, que é um representante do agronegócio mundial aqui no governo brasileiro. 

Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito 
  
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

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