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Peru vende Amazônia e ameaça comunidades indígenas da fronteira com o Brasil



Em nome do desenvolvimento, governo peruano cede terras para empresas estrangeiras explorarem recursos naturais, colocando em risco as populações tradicionais do Peru e do Acre

Em junho de 2009, no massacre de Bagua, no Peru, dezenas de indígenas foram mortos pela polícia e centenas ficaram feridos e detidos, fruto da repressão oficial, que impedia os protestos contra o decreto de implantação do Tratado de Livre Comércio com os EUA. O tratado visava o aumento do investimento de empresas em áreas ricas em recursos naturais. O descaso com o meio ambiente e seus habitantes e a criminalização do movimento indígena refletem a política neoliberal do Peru, que cede terras a empresas multinacionais para a exploração de petróleo, gás, minérios e madeira.

Hoje, 49 milhões de hectares de terras na Amazônia peruana (72% da região) estão entregues a empresas petroleiras – dentre elas à brasileira Petrobrás. São 65 lotes para exploração e produção de petróleo, muitos dos quais sobrepostos a terras indígenas e a unidades de conservação, segundo dados de 2008 da Plos One. A retirada ilegal de madeira e o tráfico de drogas se intensificam nas regiões fronteiriças do Peru, resultando em invasões de territórios protegidos no Acre, como aconteceu, anos atrás, na Terra Indígena Ashaninka do Rio Amônia e no Parque Nacional da Serra do Divisor.

Desde 2004, a Comissão Pró-Índio do Acre e a SOS Amazônia coordenam o Grupo de Trabalho para a Proteção Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá, grupo de instituições que debatem as questões da fronteira e os impactos sobre os povos da região. Em novembro de 2009, realizaram mais um encontro para discutir o tema, que reuniu organizações indígenas e do movimento social do Brasil, Peru e Bolívia.
Vítimas do ‘desenvolvimento’

Durante o evento, duas lideranças indígenas do Peru, da Comunidade Nativa Sawawo Hito 40, na fronteira com o Acre, relataram como a comunidade se aliou à empresa madeireira Forestal Venao, de Pucallpa, para tentar superar as dificuldades causadas pelo isolamento e o descaso do governo. Os irmãos Ashaninka, João e Luis Garcia Campos, contaram em entrevista que, em troca da retirada da madeira, a empresa prestaria serviços à comunidade, inclusive aqueles de responsabilidade do governo.

Mesmo certificado pela Smartwood-Rainforest Alliance com o selo FSC em 2007, a atividade madeireira, fundamentada em um plano de manejo elaborado pela empresa e aprovado pelo Instituto de Recursos Naturales (Inrena), resultou na abertura de uma estrada, em uma extensa rede de ramais, em grande devastação, na fuga das caças e na obstrução de cursos de água, deixando as famílias Ashaninka sem a sua principal fonte de sobrevivência: a floresta.

Este é um retrato do que acontece em regiões da Amazônia peruana. Assim como a Forestal Venao, outras empresas, dentre elas as estrangeiras, exploram recursos naturais do país e causam prejuízos ao patrimônio natural e cultural das comunidades e às suas formas de organização social e política. Em nome do desenvolvimento sustentável e do progresso, essas atividades são apoiadas por políticas favorecidas por vários órgãos do governo peruano. Nos debates oficiais, costuma-se analisar apenas o lado positivo desses processos para a economia. A mídia, por sua vez, continua a retratar os povos indígenas como atrasados ou como obstáculos ao desenvolvimento.

Integração Brasil-Peru 

Nos últimos anos os governos do Brasil e do Peru têm construído processos de integração física e energética. Além da pavimentação da Rodovia Interoceânica, estão em fase de planejamento a construção de uma estrada e de uma ferrovia ligando o município de Cruzeiro do Sul a Pucalpa. Já a parceria energética visa promover a produção e exportação de energia hidrelétrica e a integração de empreendimentos de empresas estatais e privadas – brasileiras e peruanas – nas áreas de petróleo e gás.

Esses processos de integração têm sido discutidos há anos por organizações do movimento social e associações indígenas e extrativistas do Acre e Peru. Elas têm exigido que os dois governos cumpram as recomendações da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Essas recomendações garantem o direito das comunidades e organizações à realização de consultas, prévias, consentidas, informadas e de boa-fé, a respeito das políticas oficiais de desenvolvimento e de “integração regional” que venham a afetar seus territórios e modos de vida.

Têm também reivindicado que os governos de ambos os países implementem políticas fronteiriças comuns, voltadas à conservação do meio ambiente e da biodiversidade, à proteção de terras indígenas e unidades de conservação e à garantia de direitos dos povos indígenas, assegurando plena participação desses povos e dos demais moradores da região de fronteira na definição e execução dessas políticas. 

E N T R E V I S T A

“O governo peruano tem contrato com empresas para a exploração de recursos naturais nas terras protegidas”, afirma liderança indígena Ashaninka do Peru

Leandro Chaves – Fale um pouco sobre a empresa Forestal Venao.
Luis Garcia e João Garcia
– Forestal Venao é uma grande madeireira peruana. Foi ela que acabou com as madeiras da nossa aldeia. Hoje é uma empresa muito grande e só cresceu às nossas custas, porque quando a conhecemos, não tinha quase nada. Ela saiu da nossa comunidade e não nos deixou nada, nenhum recurso. Hoje ela trabalha com outras terras indígenas no Alto Juruá e está repetindo a mesma destruição que fez na nossa comunidade.

LC – O que aconteceu entre sua comunidade e a madeireira?
LG/JG
– Nós estávamos abandonados pelo governo do Peru. Estávamos muito longe de qualquer tipo de comunicação com as instituições peruanas, inclusive as que representam os direitos das comunidades indígenas. Estávamos longe, também, das cidades e ficava difícil fazer compras. Tinha os problemas de saúde, adoecia uma pessoa e não tínhamos como sair. Sabe quanto custa um avião de Pucallpa para a nossa aldeia? 1.800 dólares para pegar um doente lá, trazer e mandar tratar na cidade. A única coisa que nos ajudaria a cobrir essa necessidade era a madeira. Esse foi o único meio que vimos para sair dessa situação. Por isso, fizemos o acordo com a empresa, em 2002. Entramos com a proposta do que a gente queria também. Faltou uma boa administração da parte deles com os mais de 4 milhões de dólares gerados dentro da nossa terra. Em 2007, começamos a perceber que isso não estava certo. Nossa madeira estava acabando e, por isso, terminamos o contrato. Agora, essa empresa não trabalha mais com a gente e nos deixou sem madeira e sem benefícios. Percebemos um pouco tarde que com a nossa madeira não poderíamos mexer. Estamos sofrendo bastante, mas tentando nos reerguer. Apanhamos, mas aprendemos.

LC – Que outros problemas vocês sofreram por causa das ações da empresa?
LG/JG
– Sempre antes de a madeireira chegar à comunidade, ela ficava uns seis meses em Pucallpa fazendo manutenção das máquinas. Nesses meses não tínhamos muitos problemas. Mas quando as máquinas começavam a transitar pela terra, dia e noite, não encontrávamos nenhum tipo de caça. Elas corriam. Pesca nunca tivemos problemas.

LC – O que está sendo feito para reverter a situação do desmatamento na sua terra?
LG/JG
– Começamos a fazer um plano de manejo e aprendemos a usar nossa madeira. Também estamos reflorestando. Após a saída da empresa, já plantamos mais de 85 mil árvores. Estamos sobrevivendo somente através do nosso recurso, pois continuamos abandonados pelo governo. Vamos buscar outras alternativas e maneiras de trabalhar, como o artesanato e o ecoturismo. Isso sim é uma fonte de renda que não causa problemas. Queremos também uma parceria com as comunidades do lado acreano, que possuem mais experiência, como é o caso da Apiwtxa, onde vivem muitos de nossos parentes.

LC – Vocês possuem alguma organização?
LG/JG
– Sim, temos a UCIFP (Unión de Comunidades Indígenas Fronterizas del Perú), que abrange as comunidades Sawawo, Dorado, Santa Rosa, Nueva Shawaya e Vitória, das etnias Ashaninka, Jaminawá, Amauaca. Acontece que essa organização não funciona para a gente. Ela funciona só para as empresas. Na época da Forestal Venao, defendia mais o interesse da empresa do que o nosso. Não reclamo da organização, mas das pessoas que estão à frente dela e só vêem benefícios que não são o dos povos indígenas, que ficam no prejuízo. Quem sabe se trocasse de direção, as coisas não mudariam?

LC – Hoje vocês sofrem algum tipo de pressão por parte de outras empresas?
LG/JG
– Sem dúvida. Nossa principal preocupação hoje é com essas companhias petroleiras que estão se aproximando da nossa comunidade. Tem uma que está com as suas bases instaladas a cerca de 80 km da nossa terra. O governo peruano tem contrato com essas empresas para explorar recursos nas terras protegidas, tudo isso sem consultar nós, que somos donos do lugar. Isso já está acontecendo, como na Forte Esperança, dos nossos parentes Ashaninka. Já não bastou a Forestal Venao e agora vêm essas petroleiras? Nossa terra vai se acabar! Sobrevivemos da mata, nossas crianças precisam dela, a nossa alimentação vem daí. Tem que haver um mínimo de respeito. A exploração já chegou à comunidade Paraíso. Eu vi muitas coisas por lá. Mexer com petróleo pode trazer consequências ruins para todo mundo. Se os canos vazarem, por exemplo, podem contaminar todos os rios, inclusive os do Acre, porque os rios correm no rumo do Brasil. Se sofremos com a retirada da madeira, pois agora é que vem o pior.

LC – A imprensa peruana tem dado alguma visibilidade à causa de vocês?
LG/JG
– Estive um tempo em Lima e tentei informar sobre isso. Tive até a oportunidade de chegar à televisão para levar informações sobre esse problema. Os empresários, que tem dinheiro e controlam os meios de comunicação, cortaram tudo. Acabaram com a informação. Falaram: “Vocês vão acreditar nesse índio? Ele está sendo pago para fazer essa denúncia”.

LC – Qual sua opinião em relação ao mandato do atual presidente Alan Garcia?
LG/JG
– Ele está deixando as comunidades indígenas da fronteira abandonadas e dando mais valor aos empresários, petroleiros e mineradores. Gente que já tem dinheiro o bastante. Está deixando de lado o nosso direito enquanto povos indígenas, que vivemos da floresta, e dando parte dela para pessoas que já têm como sobreviver. São empresas grandes. O governo está vendendo a Amazônia e nos tratando como animais. Tudo isso por causa de interesses econômicos. Nos sentimos vendidos, nossa opinião é essa. Gostaríamos de falar para todos o que está acontecendo para ver se gera alguma cobrança. O Peru precisa saber do sofrimento que estamos passando por culpa dele mesmo. Muita gente nem sabe que existimos, mas estamos aí. Agora, graças a Deus tivemos essa oportunidade de estar aqui com vocês, em Rio Branco, discutindo esses problemas e compartilhando ideias. Por que não agir como o governo brasileiro, que mostra preocupação com as suas florestas? É isso que queremos.

LC – E a partir daqui? O que esperar para o futuro?
LG/JG
– Nós temos que pensar somente em ir em frente e buscar os nossos direitos. Em relação à madeira, nossa situação melhorou com a saída da empresa e o começo do reflorestamento. Agora é só ver como vamos trabalhar. Ainda queremos indenização da Forestal Venao. Aprendemos com o que aconteceu e estamos retomando. Vamos reclamar ao governo peruano, pois as coisas não estão claras e não foram cumpridas como estavam no contrato. Nossa comunidade ainda está abandonada pelas autoridades. Tem o IBC [Instituto Bien Común] lutando pelos direitos indígenas, mas no geral não há o mesmo tipo de organização que existe no Brasil. Só sei que várias pessoas querem viver às custas das comunidades indígenas e no final não nos deixam nada. É necessário mudar essas ideias para que possamos ter melhores expectativas para o futuro. Pobres nós não somos porque temos toda a natureza.

Reportagem e entrevista realizada por Leandro Chaves, Comissão Pró-Índio do Acre CPI/AC para o EcoDebate

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