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A face da injustiça: uma contradição entre o discurso e a prática


A face da injustiça: uma contradição entre o discurso e a prática - Gente de Opinião

Maria, uma feirante, olha assustada com o barulho de um tiro. Seu marido, José, acabara de ser morto, na frente dos filhos, durante um assalto, no momento em que chegava, em sua moto, para almoçar com ela. O assaltante foi preso em flagrante. Meses depois, Maria descobriu que o Estado paga um auxílio mensal para a família do criminoso, enquanto ela, abandonada pelo mesmo Estado, tenta sozinha, reconstruir sua vida e criar os filhos. Entre decisões judiciais contraditórias e uma falta de apoio às vítimas, Maria reflete sobre um sistema prisional que parece proteger quem está do lado errado das notas, deixando os cidadãos comuns, como ela, à mercê das incongruências. Esse preambulo foi para tentar descrever o programa Pena Justa, uma proposta apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça- CNJ, por determinação do Supremo Tribunal Federal- STF, como um plano nacional para enfrentar a situação de calamidade nas prisões brasileiras, com base no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (ADPF 347), em outubro de 2023. Uma verdadeira contradição, diante dos graves casos de violação constitucional praticados pela própria Corte Suprema e já muito bem apresentados por diversos juristas e parlamentares e que culminou, recentemente, com o pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, no Senado Federal.

Defensor da Constituição, o STF, ironicamente, tem se destacado por afrontar  a própria Carta Magna, ao mesmo tempo em que exige ações urgentes do Executivo para enfrentar a crise penitenciária brasileira, apontada, pela mesma corte, como "estado de coisas inconstitucional", que expõe a precariedade estrutural das prisões: superlotação, higiene inexistente, alimentação inadequada, ausência de cuidados médicos e relatos constantes de torturas. O STF, ao mesmo tempo em que pede a humanização do sistema penal, grande parte do colegiado mantém centenas de pessoas presas em circunstâncias arbitrárias, sem a individualização de penas e desrespeitando os direitos fundamentais assegurados na própria Constituição. Não é um absurdo?

A suprema corte confirmou a inconstitucionalidade das condições carcerárias, mas parece ignorar seus próprios princípios, ao punir de forma desproporcional, indivíduos presos preventivamente, e tratados como culpados, sem individualização de responsabilidade e sem direito a um processo justo. Para se ter uma ideia do descompasso, a Procuradoria Geral da República- PGR, num ato recente de elucubração e, apoiada por assessores despreparados, achou uma solução para resolver o problema dos encarcerados do 8 de janeiro; confissão:  Com essa medida, os procuradores colocam como uma alternativa para aqueles que quiserem a liberdade. Precisam confessar o crime, mesmo não tendo cometido nenhum, segundo seus advogados e que, até então, não foram apontados pelos órgãos de segurança. Muitas dessas pessoas se sujeitaram a esse tipo de proposta. Outras, no entanto, não se submetem. A imposição de confissões para obter a liberdade fere os princípios constitucionais e os direitos fundamentais de todo cidadão, reforçando a percepção de uma justiça seletiva.  Parece que estou vendo a atuação do tribunal da inquisição, como fez a igreja católica. Enquanto o STF aponta para soluções de ressocialização, o tratamento rígido e desigual de casos como o de 8 de janeiro, parece esquecer que os problemas de encarceramento e direitos humanos no Brasil, vão além das condições materiais. Eles envolvem também a aplicação justa e equilibrada da lei.

Entre os casos emblemáticos, volto a tratar da situação de uma mãe de família, presa por escrever "Perdeu Mané" na estátua da Justiça com batom e, também, de um morador de rua, atestado com problemas mentais, preso durante os protestos de 8 de janeiro, do ano passado, quando pedia comida. Esse homem ficou meses com tornozeleira eletrônica, mesmo tendo sido colocado em liberdade – casos que dificilmente justificaria o rigor das prisões, conforme os preceitos constitucionais. A mulher, apesar dos apelos, continua presa por “colocar em risco à democracia”

A contradição não para por aí. Em vez de dialogar com o Congresso, que já manifestou ser contrário a medidas como a "saidinha temporária", o STF age isoladamente, tentando fazer uma limpa nos presídios, revendo penas de criminosos condenados, alegando superlotação e culpando o Estado por esse problema. A Corte está assumindo papéis que pertencem a outros poderes, como se pudesse ser o Judiciário, o Legislativo e o Executivo ao mesmo tempo, colocando em risco a separação de poderes, um dos pilares da democracia, como tenho visto a tônica dos discursos no Congresso Nacional.

Enquanto o STF desempenha esse papel multifuncional, o Congresso, que deveria participar ativamente do debate, é marginalizado. As soluções unilaterais da Corte enfraquecem o diálogo e aumentam a desconfiança popular no sistema de Justiça. Sem um verdadeiro debate. Planos como o "Pena Justa" correm o risco de se tornarem apenas promessas vazias, sem eficácia prática para enfrentar os problemas estruturais das cadeias públicas. O caminho é bem outro.

A realidade é que o sistema prisional brasileiro funciona como uma fábrica de reincidência criminal. Ao não promover condições mínimas de dignidade, ele perpetua um ciclo de violência, exclusão e marginalização. As prisões superlotadas e insalubres não apenas violam os direitos humanos, como também impedem qualquer chance real de ressocialização dos apenados.  Esse cenário é resultado de uma série de fatores históricos, sociais e políticos que se agravam com o crescimento da população carcerária e a falta de políticas públicas adequadas.

O cárcere brasileiro é um dos mais sobrecarregados do mundo, com mais de 820 mil presos em um espaço projetado para cerca de 440 mil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Outro problema grave é a presença e o controle de facções criminosas dentro dos presídios. Estudos realizado por Camila Nunes Dias– Socióloga e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), especialista em segurança pública e em estudos sobre facções criminosas, como o (Primeiro Comando da Capital PCC), aborda a atuação dessas organizações no sistema prisional brasileiro e seus impactos sociais. Ela argumenta que facções assumem o controle de boa parte das prisões, especialmente no Sudeste e no Norte do Brasil, devido à falência do Estado em manter a ordem e garantir os direitos básicos dos presos. Dentro das prisões, essas facções atuam como autoridades paralelamente, impondo suas regras, protegendo seus membros e garantindo uma espécie de "organização" que o próprio sistema carcerário não é capaz de manter.

Fui procurar uma fonte que é muito utilizada pelo próprio governo quando quer basear suas ações, e deu para ver, que o trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) também aponta a falta de programas eficazes de reintegração social. O que se tem feito é coisa sem aproveitamento. Sem entrar em detalhes, as condições de saúde dos presídios brasileiros também são alarmantes segundo um relatório da Human Rights Watch, ONG internacional de defesa dos direitos humanos, que documenta e denuncia os casos em prisões e defende melhorias no sistema prisional brasileiro, um reflexo alarmante da ineficiência estatal e da falta de uma política pública coerente. Superlotação, infraestrutura desconexa e gestão de falhas processuais, resultaram em centenas de pessoas mantidas presas mesmo aquelas que já cumpriram suas penas. Em contrapartida, os criminosos reincidentes, entram e saem da cadeia com rapidez, sem um controle eficaz, o que causa indignação e sensação de insegurança na sociedade.

Há exemplos internacionais que mostram como o sistema pode ser diferente. Em países como a Noruega, as prisões são externas para a reabilitação e a reintegração social. Na prisão de Halden, por exemplo, os presos vivem em espaços humanizados, têm acesso a programas de educação e trabalho e são preparados para a vida fora do cárcere. A gestão prioriza a dignidade e a redução da reincidência, com foco na ressocialização.

Outro modelo é o dos Estados Unidos, onde existem prisões privadas. Essas prisões funcionam como empresas, e a gestão privada leva à eficiência econômica, embora seja um tema controverso, já que essas instituições precisam equilibrar o lucro com a necessidade de cumprir os direitos dos detentos. Porém, o sistema consegue dar vazão ao alto número de presos, desafogando as penitenciárias públicas.

No Brasil, implementar modelos mais humanizados e eficientes, sejam públicos ou privados, exige uma reavaliação do papel do Estado. Ele deve garantir que as penas sejam cumpridas com respeito aos direitos humanos e focadas na reintegração, sem descobrir a segurança e sem permitir que criminosos recorrentes voltem à sociedade sem controle. Estamos muito longe disso e não vejo, pelo menos a curto prazo, uma solução. Nosso país enfrenta uma contradição alarmante em sua percepção de dignidade humana, princípio fundamental.

Vamos a um caso emblemático do que acabei de dizer: de um lado, trabalhadores que constroem estradas, por exemplo, expostos ao sol e à chuva em condições desgastantes, são vistos pelo Estado apenas como mão de obra comum, sem o amparo de qualidades ideais e direitos trabalhistas efetivos. Por outro lado, esse mesmo trabalho, se for designado para presidiários condenados, mesmo para atividades semelhantes, é frequentemente considerado uma violação de direitos humanos. Aí vem os defensores de plantão dizer que o país não adota trabalho forçado. Essa divergência evidencia um problema: o Estado subestima as condições degradantes enfrentadas pelos trabalhadores livres, que cumprem jornadas em condições muitas vezes semelhantes ou até piores que apenados, enquanto Estado protege o presidiário condenado de esforços considerados “desumanos”. O trabalhador precisa passar por toda essa luta para alimentar sua família, enquanto o condenado tem direito a médico, alimentação e lazer. A situação levanta um debate fundamental sobre a dignidade e a proteção dos trabalhadores livres no Brasil, além da necessidade de políticas mais equilibradas e consistentes para o trabalho prisional, que também pode ser uma ferramenta de ressocialização. Mais quem quer rever isso?

Outra contradição marcante no sistema brasileiro é o pagamento do auxílio-reclusão, previsto no artigo 80 da Lei 8.213/1991, que assegura uma assistência financeira às famílias dos presos que recebem subsídio ao INSS, enquanto as famílias das vítimas desses criminosos não recebem qualquer suporte direto do Estado. É o caso de Maria, do começo desse texto. Esse benefício, que deveria funcionar como um amparo social, é duramente criticado pela sociedade, que vê na medida, uma inversão de prioridades, onde o foco parece recair sobre apoio à violência, deixando desamparadas as famílias afetadas pelos criminosos. É um paradoxo que escandaliza um desequilíbrio no uso dos recursos públicos, que acaba favorecendo, ainda que indiretamente, o infrator em detrimento de quem sofreu com o crime. E tem mais! O valor recebido pela família do detento, é maior do que o valor do salário mínimo vigente, pago ao operário batalhador para sustentar sua família, mesmo este tendo sido vítima de criminosos. Como pode? É revoltante!

Essa postura levanta a questão central: como o STF pode ser o guarda dos direitos constitucionais e, ao mesmo tempo, violar esses mesmos princípios ao exigir confissões sem provas adequadas?  Manter pessoas comprovadamente inocentes na prisão? Soltar deliberadamente condenados em três instancias, alegando que as provas não são suficientes? A confiança pública nas instituições judiciais depende da coerência entre o discurso e a prática, e o STF precisa compensar sua abordagem para realmente garantir uma justiça imparcial e respeito aos direitos de todos, sem exceção. Dois pesos! Duas medidas.

Veja o caso do José Dirceu, do PT. Apontado pelo próprio Supremo como o arquiteto do mensalão. Condenado em três instancias. Preso por corrupção na Lava Jato, com provas substanciais, ganhou, nesta segunda-feira, 28, um presente da corte. Todos os processos foram arquivados, “por falta de provas” e suspeição do juiz Sérgio Moro, segundo o ministro Gilmar Mendes.  Antes, em outros processos em que estava condenado, foi colocado em liberdade por indulto concedido por Dilma Rousseff.  Agora, Dirceu poderá, livremente, levantar a cabeça e dizer para toda a sociedade que é vítima do Estado, enquanto embolsa milhões e ainda pode processar esse mesmo Estado pela perseguição que sofreu. Dorme com uma dessas!

Pelo andar da carruagem, assim como quer a Procuradoria Geral, basta os membros das facções criminosas “CONFESSAREM” que são criminosos que a liberdade tá garantida. Não é? Ou a coisa só funciona para uns? Rui Barbosa está se virando no túmulo.

Maria tem que trabalhar...

Onde está a Pena Justa?

 

Rubens Nascimento é Jornalista, Bel.Direito, especialista em Conciliação Jurídica, M.M. Maçom e Ativista do Desenvolvimento.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.


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