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"Além da Tradição: uma ignorante contradição sobre Arte, a Identidade e a Performance Cultural nas Olimpíadas”


Rubens Nascimento - Gente de Opinião
Rubens Nascimento

Uma apresentação durante a abertura das Olimpíadas de Paris 2024, que incluiu uma cena que lembrava "A Última Ceia" de Leonardo da Vinci, gerou polêmica significativa. A performance conto com drag queens, uma delas usando um adereço prateado na cabeça que lembrava um halo, feito à representação icônica de Jesus e seus apóstolos. A intenção da apresentação era abordar a violência humana de forma satírica e promover a inclusão, mas ela foi recebida com críticas de diversas comunidades cristãs e comentaristas conservadores, que a consideraram desrespeitosa e demonstração​

Os críticos argumentaram que a performance banalizou um evento religioso sagrado, com alguns sentimentos de que foi uma provocação intencional contra o cristianismo. Essa opinião foi compartilhada por líderes religiosos e figuras públicas, incluindo bispos franceses, que condenaram a cena como uma zombaria das esperanças cristãs​

Por outro lado, o diretor artístico da cerimônia, Thomas Jolly, defendeu a apresentação, afirmando que ela não tinha a intenção de ofender, mas sim de transmitir uma mensagem de amor e inclusão ( Religião Unplugged ) . Apesar desses objetivos, a controvérsia ressalta o equilíbrio complexo entre a expressão artística e o respeito pelas sensibilidades religiosas, além dos desafios de lidar com a diversidade cultural em eventos globais como as Olimpíadas.

Mas tem um detalhe importante nisso. Embora reação conservadora de bispos francesas tenham analisado a apresentação como se fosse a Última Ceia, mais um equivoco se apresenta. O próprio diretor da cerimônia, Tomas Jolly, em entrevista, disse que a apresentação, na verdade, mostra o deus Dionísio, seminu, pitado de azul, em uma mesa de banquete. O diretor disse que, para os que não entenderam, a cena retrata uma festa pagã ligadas aos deuses do Olimpo e nunca uma zombaria á fés cristã.

Faço uma pausa aqui, pois ao trazer um termo novo, contemporâneo, que vem sendo utilizado nesse novo momento, preciso também tentar retratar o seu contexto, embora sua interpretação seja amplamente aplicada de maneira diversas em cada situação. Unplugged,  (desconectado), conforme se expressou o diretor artístico das olimpíadas, se refere a uma abordagem pessoal intima e desvinculada de formalidades ou estruturas rígidas. Nesse caso específico, acho que o artista tentou associar a apresentação a uma espiritualidade mais individualizada, mais focada na conexão direta com o Divino, sem intermediários ou rituais complexos. Ou seja, cada um sente ou se comunica com a Criação a sua própria maneira e não por imposições.

A crítica à performance artística nas Olimpíadas não deve se restringir ao fato de ter sido realizada por drag queens. É importante ressaltar que, mesmo não sendo uma referência a própria obra de Leonardo da Vinci esta, por sua vez, também não retrata de maneira precisa o evento histórico do último jantar de Jesus com seus discípulos. Da Vinci criou uma interpretação artística desse momento, que se estilizou de uma representação realista e fiel ao que, na sua mente, teria acontecido. Então, a Igreja não pode se apoderar dessa arte e querer incutir que ela é a própria expressão do fato. Isso incluiu uma disposição dos personagens em uma única linha e uma composição que serviu mais para expressar ideias teológicas e artísticas do que para fornecer um relato histórico ou fotográfico do evento. Parem por ai!

Embora a obra de da Vinci traga, para o leigo, um conceito religioso,  nada tem a ver com a obra de Thomas Jolly nas olimpíada. O que ele mostrou,  os  cegos culturais não viram,  foi trazer Dionísio que aparece à mesa porque é o Deus do Vinho e pai de Sequana, deusa relacionada ao rio Sena, retratando a pintura Festa dos Deuses, obra do italiano Gionvanni Bellini, em 1514. Meu irmão maçom, Willian Sanches, atento aos fatos, lembrou bem disso, mostrando a pintura.

Não muito distante, mais há quase 50 anos, dois filmes também causaram grande polemica e chegaram a ser proibidos de serem exibidos em algumas salas de cinema. Jesus Cristo Superstar e A Última Tentação Cristo, duas obras que desafiaram a sociedade com uma abordagem que fugia as regras tradicionais e contrariava a sociedade conservadora da época. Sem entrar mais profundamente no assunto, recomendo enquanto continuo esse pensamento.

Portanto, criticar a performance nas Olimpíadas apenas pela escolha dos artistas, sem considerar a natureza interpretativa e simbólica da arte em si, revela uma compreensão limitada da função da arte. A arte, incluindo interpretações modernas, é frequentemente um meio de explorar temas universais e transcender contextos históricos e culturais. Assim, uma performance pode ser vista como uma reinterpretação contemporânea que busca comunicar mensagens relevantes para o público atual, independentemente dos detalhes específicos da tradição ou da representação histórica.

Além disso, é fundamental a preocupação de que o uso de imagens religiosas ou simbólicas em performances artísticas deve ser abordado com sensibilidade, mas não pode ser censurado apenas pela presença de elementos que desafiam as normas tradicionais ou religiosas. A arte tem a capacidade de provocar reflexão, debate e, às vezes, desconforto, mas isso faz parte do seu papel na sociedade de questionar e expandir os horizontes culturais.

Na contramão de suas próprias regras o COI criou uma situação vexatória para o surfista brasileiro João Chianca, mais conhecido como Chumbinho, e o obrigou a passar por um imprevisto nas vésperas da estreia nos Jogos Olímpicos. Para participar do torneio, o atleta customizou o próprio material com a imagem do Cristo Redentor. Contudo, a iniciativa infringe uma regra do esporte olímpico. De acordo com o artigo 50 do regulamento da competição, "não é permitido nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial". Assim, o Comitê Olímpico notificou o atleta da restrição e Chumbinho precisou trocar as pranchas de última hora antes de estrear nas Olímpiadas.

A situação envolvendo o surfista brasileiro impedido pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) levanta questões importantes sobre a consistência das políticas de representação simbólica nas Olimpíadas. O COI justificou a proibição com base nas regras que impedem o uso de símbolos religiosos ou políticos para evitar polêmicas e preservar a neutralidade do evento. No entanto, uma performance artística na cerimônia de abertura, que incluiu uma representação moderna e provocativa da "Última Ceia", foi permitida e até mesmo planejada com antecedência pela organização do evento. Alguma coisa está errada! Ou a organização dos jogos não se comunica ou não tem controle sobre suas próprias limitações?

Essa discrepância nas decisões aponta para uma possível aplicação desigual das regras. De um lado, o uso de uma imagem religiosa como o Cristo Redentor em uma prancha de surf foi considerado inadequado para o ambiente olímpico, mesmo que não houvesse uma intenção explícita de provocar. Por outro lado, uma performance que reinterpretou uma imagem religiosa central para o cristianismo foi autorizada, mesmo sabendo-se que poderia gerar

A posição do COI, levanta a questão de “dois pesos, duas medidas” na abordagem da organização olímpica quanto ao uso de símbolos religiosos. Enquanto o Comitê buscava evitar polêmicas com o veto às pranchas do surfista, a performance artística passava sem restrições, revelando uma falta de coerência na aplicação das normas. Isso destaca a complexidade de lidar com questões de expressão artística, símbolos religiosos e a neutralidade esperada em eventos globais como as Olimpíadas. Essa aparente inconsistência pode refletir uma falta de sensibilidade para com o impacto social e cultural das decisões tomadas, tanto em relação aos atletas quanto às performances artísticas.

Devemos pois, nesse momento, de diversidade cultural, religiosa e sexual, ficarmos atentos as posições radicais que podem transparecer de um conservadorismo ortodoxo, que não se coaduna com a liberdade de expressão contida na arte ou em qualquer meio de comunicação. Eu, como maçom, que mantenho valores sociais, mas não dogmáticos, entendo que, embora o evento das Olimpíadas tenha uma administração internacional, o Governo Francês se curvou diante das pressões de conservadores religiosos, ao pedir desculpas pela belíssima apresentação. A frase Liberdade, Igualdade e Fraternidade, símbolos maiores da maçonaria universal e símbolo maior da Republica francesa, não pode ser interpretada às conveniências religiosas.

A Maçonaria tem desempenhado um papel significativo na história e na cultura da França, influenciando tanto a política quanto o pensamento social e filosófico do país. Desde sua introdução no início do século XVIII, a Maçonaria francesa tornou-se um centro de debates intelectuais e um fórum para a promoção de ideias de liberdade, então não se pode permitir, mais uma vez que a Igreja, escondidas cada vez mais nas sobras de suas crenças, possa quere impor seus valores a essa nova sociedade mais aculturada e pensamento livre. Essa luta não é de hoje. A tensão entre a Igreja Católica e a Maçonaria tem raízes profundas, refletindo diferenças fundamentais em suas visões de mundo e abordagens à espiritualidade e à liberdade de pensamento. A Maçonaria promove a liberdade de consciência, a busca individual pelo conhecimento e a fraternidade entre seus membros, independentemente de suas crenças religiosas. Esses valores muitas vezes contrastam com a estrutura hierárquica e doutrinária da Igreja, que tradicionalmente exerceu uma grande influência sobre a vida espiritual

A oposição da Igreja à Maçonaria é historicamente evidente em várias bulas papais publicadas ao longo dos séculos. A primeira e mais notável foi a bula "In Eminenti Apostolatus Specula", promulgada pelo Papa Clemente XII em 1738, que condenou a Maçonaria e proibiu os católicos de se unirem a ela. Esta bula expressava a preocupação de que a Maçonaria promovesse ensinamentos contrários à fé cristã e que suas reuniões secretas poderiam representar uma ameaça à autoridade da Igreja. A notificação foi reiterada em documentos subsequentes, como a bula "Providas Romanorum" de 1751, do Papa Bento XIV, e a encíclica "Humanum Genus" de 1884, do Papa Leão XIII. Essas declarações papais enfatizavam a incompatibilidade percebida entre os princípios maçônicos de racionalismo, secularismo e relativismo moral, e a doutrina católica

Essas bulas papais tiveram um impacto significativo, criando um ambiente de desconfiança mútua e, em alguns casos, perseguição aberta. Os católicos que participavam da Maçonaria eram frequentemente excomungados ou enfrentavam outras formas de censura e sanção eclesiástica. A Igreja via a Maçonaria como uma ameaça ao seu monopólio sobre a verdade espiritual e ao seu papel na sociedade

Essa história de oposição reflete uma luta mais ampla sobre como a autoridade religiosa e a liberdade individual devem coexistir. Enquanto a Igreja buscava manter sua influência e controle sobre a fidelidade, a Maçonaria defendia a liberdade de expressão e a autonomia individual, valores que se tornavam cada vez mais importantes em uma sociedade pluralista e diversa. Essa luta continua a ser relevante hoje, à medida que a sociedade moderna se torna mais secular e a diversidade de reflexões e práticas espirituais se expande, desafiando as instituições religiosas tradicionais a se adaptarem ou enfrentarem um declínio na adesão

Não podemos admitir mais que essas pressões continuem a conduzir a humanidade que caminha para um mudo plural, uno, respeitando a forma como qualquer um se identifica com o Divino. Aquilo que não me agrada, me afasta, mas meus valores são pessoais, assim como dever ser de todos. 


Rubens Nascimento é Jornalista, Bel. Direito, Mestre Maçom e ativista do Desenvolvimento.

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