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Altair Santos: Cultura de Cabaré



ATABÍLIO FERREIRA BINDÁ
- um anônimo senhor dos cabarés -


 

Por: Altair Santos (Tatá)
À luz do texto: Cabaré Também é Cultura
De: Anísio Gorayeb e Antonio Serpa do Amaral (Basinho
)


O amigo Basinho, nascido Antonio Serpa do Amaral, sempre abre a maleta da sua inquieta verve criativa, analítica e produtiva e nos chama para a prosa. Fazendo reverberar o texto do também versado amigo Anísio Gorayeb, o Serpa escreveu há uns três meses ou mais, na página diária da cidade, o artigo Cabaré Também é Cultura o fazendo com a naturalidade e lirismo de quem caprichosamente, bebesse uma cerveja bem gelada, tal qual aquelas servidas, como de praxe, lá dos lupanares - pelo menos nos de outrora. Sem ater-se a tantos detalhes, mas com riqueza de citações, discorreu sobre a histórica e sociológica existência dos gloriosos cabarés no cotidiano de Porto Velho, fazendo emergir fatos dados e passados, trazendo para cena o colorido, o festivo, o intrigante, o contestado, o fantasioso e arrebatador universo do cabaré nosso de cada dia.

Aqui nessas paragens do poente, o cabaré também se fez e se faz braço social, com tudo o que teve ou tem direito, ou seja, da glória, prazer e fama de muitos, ao infortúnio e desassossego de outros principalmente de algumas mulheres casadas, cujos maridos, viravam vaga-lumes e brilhavam nos salões secretos (nem tanto) da orgia portovelhense. Quando descobertos ou dedurados, os pirilampos de aliança no anelar esquerdo justificavam: são as evidencias e movimentos naturais de uma sociedade em seus ciclos.

Na boêmia e pacata Porto Velho dos idos de 50, 60 e 70 os cabarés compunham o painel diário da nossa jovem urbe, fazendo a festa e alegria de muitos. Nesses verdadeiros paraísos do prazer e da gastança, desfilavam empresários endinheirados, profissionais liberais, sambistas e seresteiros, poetas e aventureiros, muito ou pouco capitalizados. Comum entre todos, era o democrático exercício dos seus direitos (nos tempos da ditadura) de se alistarem e portarem-se atuantes fervorosos na confraria dos infaltáveis do cabaré. E eles eram aos muitos. Nômades e notáveis, cada qual com suas posses e poses em meio à fragâncias importadas e sob o lume irresistível de beldades caboclas dessas barrancas amazônicas e de outras raparigas não menos formosas e amáveis dos muitos longes desse Brasil de Meu Deus que, por aqui, desfilavam e exibiam seus encantos e gracejos. Curiosos e engraçados ocorridos, sempre habitaram a coleção de pormenores da atribulada vida dos habituês cabareanos daqui.

Um senhor de nome Atabílio Ferreira Bindá (meu padrinho), pescador, vindo de Codajás - Amazonas, aqui se fez um exímio garimpeiro do ciclo da cassiterita e se abancou por essas bandas karipunas. Na lavra gastou muito de sua força e juventude, extraindo minério pesado dos garimpos massangana e jacundá. Sempre que vinha para a cidade, aportava em nossa casa no Bairro do Triângulo (na linha de ferro), defronte a placa 1, para estadas de 10 a 15 dias, ou melhor, por quanto tempo durasse as suas fartas economias, as quais gastava sem dó e sem piedade, em deleites nas coloridas tardes/noites e madrugadas a fio, em luz tênue, na privacidade dos cabarés do centro.

Ao ensejo de sua chegada, a providência primeira era aquele banho de loja no movimentado comércio da Rua do Coqueiro pra renovar o guarda-roupa, este, exaustivamente surrado nas catas, ou seja, nas escavações para garimpagem. Em meio às compras de eletro-eletrônicos, roupas e sapatos, óculos, discos (Lp’s de vinil), eram inevitáveis as frequentes idas aos botecos da redondeza para sucessivos tragos de cachaça. Quando pra aliviar, tomava uma cerveja. Na volta às compras, já com a cabeça em plano de desordem etílica, parava numa das barbearias para as providências dos esteticistas capilares da época, os barbeiros.

Certa ocasião, sob efeito de muita bebida forte, sentou-se na cadeira pra fazer cabelo, barba e bigode e, em meio à sessão do trato na vaidade e no look, recostou a cabeça num dos ombros e pesadamente dormiu. Quando acordou, já noitinha, o paciente operário da beleza (o barbeiro) ainda o esperava pra virar de lado e raspar a barba da face oposta. Enfezado e de ressaca, assustou-se com o avançado da hora, teve pressa e pediu agilidade e qualidade na complementação do serviço, afinal, logo mais, estaria a bordo dos seus paramentos entrecortando o epicentro do prazer no coração da cidade - entre um cabaré e outro – mais precisamente na mui-requisitada tríade de “casas de apoio” da Maria Eunice, Madame Elvira (tartaruga) e Tambaqui de Ouro, os ancoradouros preferidos do Atabílio durante a noite. Moreno alto, forte, conversador, afamado “comedor”, bebedor de cachaça e cerveja, afeito aos desperdícios exibicionistas, além de deitar-se, enchia as putas de mimos como jóias, perfumes, roupas e generosas quantias em dinheiro.

Atabílio, cujo apelido era “jagunço” o que fazia contraponto à sua personalidade e desdizia o seu estilo alegre e fanfarrão, sempre se apresentava cheirando a bebida porém, amenizado por mil borrifadas de sete bruxas ou almíscar, dentre outros perfumes comprados ou contrabandeados da Bolívia.

O moço chamava a atenção pelo seu atraente plano estético, quase dois metros de altura, em cujo visual se destacava certos ornamentos como: um reluzente dente de ouro, um enorme chapéu preto (de massa), camisa colorida de seda, calça preta de linho e sapato de verniz. Não era só. Dentre os badulaques constavam também grossas correntes - de ouro é claro - exagerados pingentes com batéias e picaretas esculpidas também no valioso metal, como a simbolizar o brasão da atividade profissional exercida (garimpeiro), um baita relógio Seiko 5 a prova d’água - pra variar coberto de ouro - além de anéis em tudo que é dedo.

O exotismo visual do Atabílio, afinado para a época, trazia de quebra, um potente rádio marca phillips transglobe de 12 faixas, carregado no ombro pelas ruas e praças, em alto volume e sintonizado na Rádio Caiari de Porto Velho, ou na Rádio Rio Mar de Manaus, suas emissoras preferidas, ainda mais, quando essas tocavam repetidamente os sucessos dos seus artistas queridos, o Waldick Soriano e a Claudia Barroso. Os seus ídolos cantavam os melosos hits românticos de então. Fazendo tipo romântico Atabílio quase ia às lágrimas quando ouviao baiano Waldick cantar: “amigo se essa cartinha falasse, pra dizer àquela ingrata, como está meu coração, vou ficar aqui chorando pois um homem quando chora, tem no peio uma paixâo.”

No esporte se dizia botafoguense, por influência do seu compadre (Ademar, o meu pai), mas quando perguntado, só lembrava do Garrincha, do goleiro Manga e do jovem promissor Jairzinho, mais tarde o furacão do tri, na copa de 70 no México.

Muito raro, o costumeiro dos cabarés parava em casa para momentos de repouso, acho que isso ele fazia, lá mesmo, nos lupanares, sob os carinhos e jeitosos afagos das meninas. Porém nas poucas horas que ficava em nossa residência, enchia as mesas de presentes, comidas, doces e guaranás pra molecada. Depois, ia pro terreiro armava a vitrola de pilhas, pegava os lp’s e tome cachaça, cerveja e overdoses de Claudia Barroso e doses cavalares de Waldik Soriano no quengo. Pra ficar mais brega-eclético o repertório, ele variava as seleções com Evaldo Braga (ainda jovem na carreira), Ludugero, Marinês e sua Gente e até as piadas do humorista Barnabé, o que lhe roubava sessões de alto, escandaloso e demorado riso. Antes mesmo do arrebol a festa acabava.

Ao cair da tarde, os primeiros poucos lampiões da cidade porto arrebatavam Atabílio. Logo se ia o peregrino do prazer para a sua incursão noturna. Tragado pelos sedutores mantras da noite, dobraria as esquinas, sumiria das vistas e perder-se-ia sabe-se lá em quantos e quais braços, aos preços de algumas tantas notas da moeda nacional da época, o cruzeiro talvez! Contrapondo-se ao visual estilizado e poderio econômico dos mineradores abastados da região, Atabílio, o garimpeiro artesanal, varava noites gastando nos cabarés e quando a bufunfa minguava, de táxi, ele fazia sucessivas idas na madrugada, em nossa casa, para acordar minha mãe - a quem confiava a guarda de todo o seu dinheiro - com o intuito de fazer saques seqüenciais, como fosse, a mamãe (dona Luzia), uma precursora dos caixas 24 horas, ali pronta para atendê-lo, durante a madrugada, sem sair do ar. Nessas idas e vindas, não somente reforçava o bolso como, rapidamente, trocava uma roupa nova e se perfumava todo. Estava pronto pra sua sina boêmia pelos cabarés, até que o sono ou o alvorecer lhe desse cartão vermelho. Não tinha muitos amigos e nem costumava reunir muita gente. Parecia um turista em férias na cidade.

A sua realidade comum se dividia entre meses de trabalho no garimpo com interstícios de farras nos cabarés de Porto Velho. Anos mais tarde recebeu o recado de uma irmã sua da capital baré e, com a atividade garimpeira já em baixa, foi pro Cai N’Água, pegou um barco, rumou pro Amazonas e nunca mais deu notícias.

(*) o autor é Presidente da Fundação Cultural Iaripuna e músico.
tatadeportovelho@gmail.com


 

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