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ARTIGO: América sem norte


Especialista em geopolítica, Parag Khanna diz que a hegemonia dos EUA expirou. Agora é disputar o mundo, corpo a corpo, com novas potências

O indiano Parag Khanna, de 30 anos, é pesquisador sênior do American Strategy Program (Programa de Estratégia Americano) da New American Foundation. Durante dois anos, viajou por 45 países localizados em regiões estratégicas do planeta, como Europa Oriental, Ásia Central, América do Sul, Oriente Médio e Sudeste Asiático. Parag queria saber como esses lugares, que chama de países do Segundo Mundo, reagem ao crescimento da China e da União Européia e ao declínio dos Estados Unidos. Suas conclusões estão no livro The Second World: Empires and Influence in the New Global Order (em tradução livre, "O Segundo Mundo: Impérios e Influência na Nova Ordem Global"), que será lançado no Brasil pela Editora Intrínseca no segundo semestre deste ano. O artigo abaixo, publicado em The New York Times, foi adaptado do livro.

Se você ligar a TV hoje e pensar que está em 1999, será perdoado. Democratas e republicanos discutem onde e como intervir, se devem agir sozinhos ou com aliados e que tipo de mundo os Estados Unidos deveriam liderar. Os democratas acham que podem apertar o botão "reiniciar". Os republicanos acreditam que o caminho é o moralismo apoiado pela força. É como se a primeira década do século 21 não tivesse existido - e quase como se a própria história não existisse. Mas a distribuição do poder se alterou de maneira fundamental ao longo dos dois mandatos presidenciais de George W. Bush graças a suas políticas e, mais significativamente, apesar delas. Talvez a melhor maneira de entender como a história avança rápido seja olhar adiante.

O ano é 2016 e o governo de Hillary Clinton, John McCain ou Barack Obama se aproxima do fim do segundo mandato. Os EUA se retiraram do Iraque, mas mantêm cerca de 20 mil soldados no Estado independente do Curdistão, navios de guerra ancorados em Bahrein e uma presença aérea no Catar. O Afeganistão está estável. O Irã é uma potência nuclear. A China absorveu Taiwan e amplia sua presença naval no Pacífico e, a partir do porto paquistanês de Gwadar, no Mar Arábico. A União Européia abrange bem mais de 30 membros e conta com o fornecimento seguro de petróleo e gás do norte da África, da Rússia e do Mar Cáspio, assim como quantidades substanciais de energia nuclear. A posição dos EUA no mundo continua em constante declínio.

Por quê? Nossa missão não era recuperar os laços com a ONU e reafirmar para o mundo que os EUA podem - e devem - conduzi-lo à segurança e à prosperidade coletivas? De fato, a imagem dos EUA pode ou não ter melhorado, mas isso significa pouco. Condoleezza Rice declarou que os EUA não têm "inimigos permanentes", mas também não têm amigos permanentes. Muitos viram as invasões do Afeganistão e Iraque como símbolos de um imperialismo americano global; na verdade foram sinais de estresse excessivo. As despesas debilitaram as Forças Armadas americanas e cada asserção de poder deixou o país com menos resistência contra redes terroristas, grupos insurgentes e armas "assimétricas", como os homens-bomba. O momento unipolar dos EUA inspirou contramovimentos financeiros e diplomáticos para impedir os americanos de construírem uma ordem mundial alternativa. Essa nova ordem global chegou e é muito pouco o que Hillary, McCain ou Obama possam fazer para conter seu crescimento.

No melhor dos casos, a fase unipolar dos EUA durou toda a década de 90, mas esse também foi um período sem rumo. O "dividendo da paz" pós-Guerra Fria nunca se transformou numa ordem liberal global sob a liderança americana. Agora, em vez de sentar sobre o globo, estamos competindo e perdendo, num mercado geopolítico, ao lado de outras superpotências: União Européia e China. Essa é a geopolítica no século 21: as novas Big Three (As Três Grandes). Não a Rússia, um espaço cada vez mais administrado pela Gazprom.gov. Não a Índia, décadas atrás da China em desenvolvimento e apetite estratégico. As Big Three estabelecem as regras - as suas regras -, e nenhuma delas predomina. Os outros devem escolher quem seguir neste mundo pós-americano.

Em eras anteriores, o equilíbrio esteve entre potências européias que partilhavam uma cultura. A Guerra Fria não foi realmente uma batalha Leste/Oeste; foi uma disputa sobre a Europa. Hoje, pela primeira vez na história, o que temos é uma batalha multipolar, de civilizações múltiplas.

Em Bruxelas, capital da Europa, tecnocratas, estrategistas e legisladores entendem cada vez mais que sua função é manter o equilíbrio global entre EUA e China. Os europeus jogam dos dois lados e, se atuam bem, os benefícios são enormes. É uma tendência que sobreviverá ao presidente francês Nicolas Sarkozy, autodenominado "amigo dos EUA", e à chanceler alemã Angela Merkel, independentemente de ela visitar o rancho de Crawford. O fato de a Europa ainda não ter um exército comum pode tranqüilizar os conservadores americanos; a questão é que a Europa não precisa de um. Os europeus usam a inteligência e a polícia para prender radicais islâmicos, a política social para tentar integrar populações muçulmanas rebeldes e a força econômica para incorporar a antiga União Soviética. O investimento anual europeu na Turquia também cresce, trazendo-a mais perto da União Européia. E a cada ano um novo oleoduto é aberto, transportando petróleo e gás da Líbia, Argélia ou Azerbaijão para a Europa. Que outra superpotência cresce na média de um país por ano, com outros esperando na fila e implorando para se juntar?

A EUROPA É DE VÊNUS

Numa frase famosa, Robert Kagan disse que os EUA são de Marte e a Europa, de Vênus, mas na realidade a Europa é mais Mercúrio - carregando consigo uma enorme carteira de dinheiro. O mercado da União Européia é o maior do mundo, as tecnologias européias cada vez mais estabelecem o padrão global e os países europeus fornecem a maior ajuda ao desenvolvimento. Muitos americanos zombaram da introdução do euro, alegando que levaria o projeto europeu ao colapso. Hoje, porém, os exportadores de petróleo do Golfo Pérsico convertem seus ativos financeiros em euro, e o presidente Mahmoud Ahmadinejad propôs à Opep que o preço do seu petróleo não seja mais cotado em dólares. O presidente Hugo Chávez também sugeriu euros. Não ajudou o fato de o Congresso expor suas cores protecionistas bloqueando o acordo sobre os portos de Dubai em 2006. Com Londres voltando a ser a capital financeira do mundo, em termos de registros de ações na sua Bolsa, não surpreende que os novos fundos de investimentos estatais da China instalem ali os seus escritórios, e não em Nova York. Ao mesmo tempo, o quinhão de reservas cambiais globais dos EUA caiu para 65%. Gisele Bündchen exige ser paga em euros, enquanto que Jay-Z se afogou em notas de 500 euros num vídeo recente.

Enquanto os EUA se atrapalham na construção de uma nação, a Europa aplica seu dinheiro e capital político em países periféricos que entram na sua órbita. Muitas regiões pobres do mundo perceberam que querem o sonho europeu, não o americano. A África deseja uma União Africana como a Européia. No Oriente Médio, os ativistas almejam uma democracia parlamentar como a da Europa, não um governo no estilo americano. Muitos estudantes estrangeiros rechaçados depois de 11 de setembro estão hoje em Londres e Berlim. O número de chineses estudando na Europa é duas vezes maior do que nos EUA. Nós não os educamos, assim não podemos reivindicar seus cérebros ou sua lealdade como ocorreu em décadas passadas. De maneira geral, os EUA controlam instituições herdadas que poucos parecem querer - como o Fundo Monetário Internacional -, enquanto a Europa cria instituições sofisticadas, de acordo com o seu modelo. Os EUA têm dificuldades mesmo quando dominam reuniões de cúpula, como a malograda Área de Livre Comércio das Américas (Alca), quando não são sequer convidados, como ocorreu com a nova Comunidade do Leste da Ásia, a resposta da região à APEC dos Estados Unidos.

IMPÉRIO DO MEIO

A Comunidade do Leste Asiático é um exemplo de como a China também está ocupada em restaurar seu lugar como Império do Meio. Por todo o globo envia dezenas de milhares dos seus próprios engenheiros, construtores de hidrelétricas, especialistas em ajuda ao desenvolvimento e militares dissimulados. Na África, a China não é apenas uma compradora de energia; também faz grandes investimentos estratégicos no setor financeiro. O mundo encoraja sua ascensão espetacular, evidenciada pela fatia das operações comerciais no seu PIB. E ela está exportando armas em quantidades que lembram a União Soviética durante a Guerra Fria, encurralando os EUA, ao mesmo tempo que preenche os vazios que consegue encontrar. Todos os países considerados renegados pelos EUA desfrutam de uma corda salva-vidas estratégica, econômica ou diplomática da China, e o Irã é o exemplo mais destacado.

Sem dar um tiro, a China faz nas suas periferias ocidental e sul o que a Europa consegue a leste e a sul do continente. Auxiliada por uma diáspora de 35 milhões de pessoas bem colocadas nas prósperas economias do Leste da Ásia, surgiu uma Esfera de Co-Prosperidade da Grande China. Como os europeus, os asiáticos se afastam das incertezas econômicas dos EUA. Sob patrocínio japonês, pretendem erigir seu próprio fundo monetário regional, enquanto a China reduziu as tarifas e aumentou os empréstimos para seus vizinhos do Sudeste Asiático. O comércio dentro do triângulo formado por Índia, Japão e Austrália - do qual a China é o centro - ultrapassou as trocas comerciais através do Pacífico.

Ao mesmo tempo, um grupo de instituições diplomáticas e de segurança asiáticas vem sendo criado de dentro para fora, e com isso o domínio dos EUA da Orla do Pacífico tem diminuído. Da Tailândia à Indonésia e à Coréia, nenhum país - amigo dos EUA ou não - deseja que tensões políticas perturbem seu crescimento econômico. É um fenômeno curioso: pequenos Estados-nação asiáticos precisam se equilibrar frente à próspera China, mas cada vez mais cerram fileiras em torno dela, pelo orgulho cultural asiático e pela compreensão da realidade histórico-cultural do predomínio chinês. E nos antigos países soviéticos da Ásia Central a China é o novo peso pesado, atraindo para sua órbita microestados quase extintos como Quirguistão e Tajiquistão, além do Casaquistão. A Organização de Cooperação de Xangai açambarca esses homens fortes da Ásia Central, China e Rússia e poderá se tornar a "OTAN do Leste".

As Big Three são, no final, as Aminimigas. A geopolítica do século 21 vai ser semelhante ao 1984 de George Orwell, mas, em vez de três potências mundiais (Oceania, Eurásia e Leste da Ásia), teremos três pan-regiões periféricas, zonas longitudinais dominadas pelos EUA, Europa e China. Cada pan-região pode ser auto-suficiente e criar uma base de poder a partir da qual pode se introduzir no terreno alheio. Mas, num mundo globalizado e que vem encolhendo, nenhuma geografia é sagrada. Aberta ou despercebidamente, China e Europa irão se intrometer no domínio dos EUA, China e EUA competirão pelos recursos africanos na periferia sul da Europa, e EUA e Europa procurarão tirar proveito do rápido crescimento econômico de países dentro da esfera de influência da China. A globalização é a arma escolhida. O principal campo de batalha é o que chamamos de "Segundo Mundo".

Existem muitas estatísticas que ainda afirmam a predominância global dos EUA: as despesas militares, a participação na economia global e similares. Mas existem estatísticas e existem tendências. Para compreender como o poder americano declina rapidamente, passei os últimos dois anos viajando por cerca de 40 países nas cinco regiões mais estratégicas do planeta. São países que não estão no centro do Primeiro Mundo da economia global, nem na periferia do terceiro. Ficando ao lado e entre as Big Three, são Swing States (Estados indefinidos), que vão determinar quais superpotências estarão em vantagem na próxima geração da geopolítica.

Os países do Segundo Mundo considerados chave, na Europa Oriental, Ásia Central, América do Sul, Oriente Médio e Sudeste Asiático, são mais do que apenas "mercados emergentes". Se incluirmos a China, eles detêm a maior parte das poupanças e reservas cambiais e seu poder de gasto os transforma nos mais importantes novos mercados de consumo e motores do crescimento global - não substituindo, mas também não dependendo dos EUA. Os países do Segundo Mundo estão se tornando rapidamente centros de petróleo e madeira, manufatura e serviços, empresas aéreas e infra-estrutura - tudo num mercado geopolítico em que sua lealdade está para ser conquistada por qualquer das Big Three, e todos eles ao mesmo tempo. Têm importância pelo seu peso econômico, estratégico ou diplomático, e a sua decisão de pender na direção dos EUA, da União Européia ou da China tem grande influência sobre o que outros, na sua região, decidirão fazer.

Comecemos com o caso mais difícil: a Rússia. Aparentemente estabilizada sob a oligarquia Kremlin-Gazprom, por que não é uma superpotência, mas um Estado do Segundo Mundo indefinido? Apesar de toda a sua musculatura, a Rússia também está desaparecendo. Sua população declina a uma taxa de meio milhão de cidadãos por ano, ou mais, o que significa que não será muito maior do que a Turquia por volta de 2025, espalhada por uma região tão vasta que, como país, não terá mais sentido. As migrações forçadas de povos da Sibéria, na era soviética, hoje retomam o curso oposto, com os filhos desses migrantes indo para o ocidente, para climas mais modernos e toleráveis. Esse espaço está sendo preenchido por centenas de milhares de chineses, literalmente devorando, saqueando, comprando e mais ou menos anexando o extremo oriente da Rússia por causa da madeira e outros recursos naturais. E a Europa, embora parecesse ameaçada pela diplomacia russa, baseada no petróleo, empreende uma aquisição a longo prazo do país, cuja economia continua quase do tamanho da França. Em particular, certas autoridades da União Européia dizem que a anexação da Rússia é apenas uma questão de tempo. Nas próximas décadas, longe de restaurar o poder da era soviética, ela terá de decidir se pretende existir pacificamente como um ativo para a Europa, ou se prefere ser uma petro-vassala da China.

A Turquia também é troféu emblemático do Segundo Mundo. Basta um simples olhar para sua resplandecente linha para perceber que, mesmo que não se torne um membro de fato da UE, é um país cada vez mais europeizado. Recebe mais de US$20 bilhões de investimentos estrangeiros e mais de 29 milhões de turistas a cada ano, a maioria europeus. Noventa por cento da diáspora turca vive na Europa Ocidental e envia para casa mais de US$ 1 bilhão por ano na forma de investimentos e remessas em dinheiro. Esse capital vem financiando o desenvolvimento para o leste, com novos projetos de construção, abertura de fábricas e escolas. Com a entrada da Romênia e da Bulgária na União Européia há um ano, a Turquia hoje, fisicamente, faz fronteira com a UE, simbolizando como o país se torna parte da superpotência européia.

E O CASAQUISTÃO?

Diplomatas ocidentais têm familiaridade histórica, embora dramática e tumultuada, com a Rússia e a Turquia. E no que diz respeito a esse grupo de países sem saída para o mar, ricos em petróleo e governados por autocratas? Enquanto a China compra mais petróleo do Casaquistão e os EUA tentam realizar acordos de defesa com esse país, a Europa oferece investimentos sustentados. Um exemplo de até onde os estrangeiros podem chegar para manter boas relações com o presidente Nursultan Nazarbayev é a atual negociação entre um consórcio de gigantes ocidentais do setor energético e a empresa petrolífera estatal do Casaquistão para a abertura de um enorme campo de petróleo em Kashagan, no Mar Cáspio. O consórcio injeta US$ 4 bilhões, além de uma grande transferência de ações, como indenização pelos atrasos na exploração e produção - e assim mesmo o Casaquistão não está satisfeito. A lição oferecida pelo Casaquistão, e pelo seu vizinho também estratégico mas bem menos previsível, o Usbequistão, é de o quão inconstante o Segundo Mundo pode ser, provocando dores de cabeça e maremotos em todas as direções.

A globalização levou o mercado geopolítico direto para o quintal dos EUA, corroendo rapidamente dois séculos de Doutrina Monroe. Na verdade, os EUA só tiveram a última palavra na América Latina quando seus vizinhos do sul ainda careciam de uma visão própria. Hoje têm pelo menos dois contestadores não americanos: a China e Chávez. Hugo Chávez, o coronel do país, pode demorar décadas para ser derrubado ou pode ser morto, mas blefou com os EUA e venceu, mudando as regras das relações Norte-Sul no hemisfério ocidental. Financiou líderes de esquerda do continente, ajudou a Argentina e outros a pagar e expulsar o FMI e patrocinou pelo continente um programa de troca de petróleo, gado, trigo e funcionários públicos, lembrando àqueles que o desprezam que pode fazer frente à grande potência do norte. Chávez não tem se apoiado apenas nos altos preços do petróleo. Ele conta com o apoio tácito da Europa, que ainda é a maior investidora do país, e a intervenção prática da China, que vem restaurando as torres de perfuração de petróleo dilapidadas da Venezuela.

Mas o desafio que Chávez representa para os EUA é ideológico, enquanto que o deslocamento do Segundo Mundo é realmente estrutural. É o Brasil que ressurge como o líder natural da América do Sul. Junto com Índia e África do Sul, assumiu a liderança nas negociações sobre o comércio global, contestando as tarifas sobre o aço dos EUA e os subsídios agrícolas da Europa. Geograficamente, o Brasil está tão próximo da Europa como dos EUA e é tão ávido para fabricar carros e aviões para os europeus como para exportar soja para os americanos. Além disso, embora tenha sido um leal aliado dos americanos na Guerra Fria, não perdeu tempo para declarar uma "aliança estratégica" com a China. Suas economias se complementam, com o Brasil vendendo ferro, minério, madeira, zinco, carne, leite e soja para a China, e a China investindo nas hidrelétricas, siderúrgicas e fábricas de sapato brasileiras. As ambições de ambos podem em breve alterar a própria geografia das suas relações, com o Brasil se empenhando para a construção de uma Estrada Transoceânica do Amazonas, através do Peru, para a Costa do Pacífico, facilitando o acesso para os cargueiros chineses. Durante séculos a América Latina nunca foi vista em primeiro lugar, mas no século 21 todos competem pelos seus recursos, e ninguém está muito distante.

O Oriente Médio, que se estende do Marrocos ao Irã, fica entre os centros de influência das Big Three e tem o maior número de Estados indefinidos. Não há dúvida de que a distensão com a Líbia, intermediada pelos EUA e Grã-Bretanha depois que Muamar Kadafi declarou que abandonaria suas iniciativas nucleares em 2003, em parte foi motivada pela crescente demanda de energia de um vizinho mediterrâneo próximo. Mas Kadafi não vendeu tudo. Ele e seus assessores parcelaram os contratos de produção, dividindo-os entre as diversas gigantes americanas, européias, chinesas e asiáticas da área petrolífera. Consciente da exploração do mundo árabe pelas empresas petrolíferas ocidentais, aumentou a pressão sobre os estrangeiros para dividirem mais a receita com seu governo, ajustando os contratos, arredondando os números à sua vontade e ameaçando com expropriações.

A Arábia Saudita, que por alguns anos continuará sendo a principal produtora de petróleo, está disponível para quem quiser. Nas últimas décadas, a participação americana nos investimentos diretos estrangeiros no reino saudita moldou decisivamente a política externa do país, mas hoje a monarquia mostra-se bem mais prudente, procurando atrair investimentos europeus e asiáticos. Mas não se engane: os EUA nunca foram todo-poderosos apenas por causa do seu predomínio militar. A influência estratégica precisa ter base econômica. Um importante denominador comum entre os principais países do Segundo Mundo é a necessidade de cada uma das Big Three injetar dinheiro onde está envolvida.

Apesar de todo o seu antagonismo histórico com a Arábia Saudita, o Irã também assume o papel de Estado indefinido. Sua diplomacia não só criou a discórdia entre EUA e União Européia no caso das sanções; também cortejou a China, nutrindo um relacionamento que remonta à Estrada da Seda. Hoje o Irã representa o quadrado final do jogo de amarelinha dos chineses, manobrando para chegar ao Golfo Pérsico sem depender do limitado Estreito de Málaca. Vários anos de negociações culminaram em dezembro com a Sinopec firmando um acordo para desenvolver o campo petrolífero de Yadavaran com mais investimentos da China. Quanto mais tempo durarem as negociações com a Agência Internacional de Energia, maior a probabilidade de o Irã manter-se auto-suficiente, sem investimentos ocidentais.

O interessante é que são exatamente os países produtores de petróleo muçulmanos - Líbia, Arábia Saudita, Irã, Casaquistão (grande maioria muçulmana) e Malásia - que parecem ter ampliado melhor seus alinhamentos, combinando as Big Three simultaneamente: obtendo o que desejam e ao mesmo tempo repelindo a intrusão de outros. Os EUA podem buscar aliados muçulmanos, pensando na sua imagem e na "guerra contra o terror", porém esses mesmos países parecem fazer parte do que Samuel Huntington chamou de "conexão islâmico-confuciana". Além disso, a China vem mantendo simultaneamente laços positivos com pares rivais regionais: Venezuela e Brasil, Arábia Saudita e Irã, Casaquistão e Usbequistão, Índia e Paquistão. A esta altura, os diplomatas ocidentais só tiveram coragem de denunciar, discretamente, as políticas de ajuda chinesas e suas alianças, mas estão longe de poder fazer algo a respeito.

Isso ocorre mais profundamente no Sudeste Asiático. Alguns dos mais dinâmicos países da região, como Malásia, Tailândia e Vietnã, desempenham o papel de pretendentes a superpotência com uma inteligência excepcional. Malásia e Tailândia ainda realizam exercícios militares conjuntos com os EUA, mas também compram armas e têm tratados de defesa assinados com a China, incluindo o Tratado de Amizade e Cooperação pelo qual as nações asiáticas comprometem-se a não se agredirem mutuamente. Como um diplomata malásio me explicou, sem um mínimo de gracejo, "criar uma comunidade entre os amarelos e pardos é fácil, mas não com os brancos". Surpreendentemente, o Vietnã, envolvido em histórias violentas com EUA e China, é quem está mais ávido para firmar contratos de defesa com os americanos (e uma nova fábrica de microchips da Intel) para manter seu equilíbrio estratégico. O Vietnã também não pretende cair na esfera de influência de nenhuma superpotência.

O CINTURÃO ANTIIMPERIAL

O novo mapa multicolorido de influência é muito confuso. Mubarak (presidente do Egito), Musharraf (do Paquistão), Mahathir (da Malásia) e um conjunto de líderes do Segundo Mundo estabeleceram um novo padrão de proezas manipuladoras: todos dizem que os EUA são seus amigos, e ao mesmo tempo cortejam ativamente todos os lados.

Além disso, muitos países do Segundo Mundo estão bastante confiantes para formar cinturões antiimperiais, criando eixos diplomáticos, tecnológicos e comerciais do Brasil à Líbia, ao Irã e à Rússia. Os países do Segundo Mundo estão usando cada vez mais fundos soberanos (muitas vezes financiados pelo petróleo) equivalentes a trilhões de dólares para mostrar sua importância, chegando mesmo a intimidar empresas e mercados do Primeiro Mundo. Os Emirados Árabes Unidos (particularmente representado pela sua capital, Abu Dabi), a Arábia Saudita e a Rússia sobem rapidamente na escala dos grandes possuidores de reservas cambiais e dificilmente vendem suas ações de bancos ocidentais (que se tornaram baratas de repente) e empresas de petróleo. O fundo soberano de Cingapura segue o mesmo caminho.

O que observamos nestes e numa dezena de outros é que a globalização não é sinônimo de americanização. Enquanto os países europeus redistribuem a riqueza para manter padrões de vida de Primeiro Mundo, as empresas estatais dos países do Segundo Mundo ou rechaçam, ou se apoderam das empresas americanas, deixando seus funcionários sozinhos. A prioridade do Segundo Mundo não é tornar-se um novo EUA, mas vencer por qualquer meio.

A ascensão da China no Oriente e da União Européia no Ocidente alterou um globo que até recentemente gravitava em torno do pró ou antiamericano. À medida que os espíritos da Europa e da China se elevaram na direção de novos domínios de influência, o espírito americano enfraqueceu. A União Européia pode apoiar os princípios das Nações Unidas, que os EUA outrora dominaram, mas por quanto tempo conseguirá manter isso à medida que seus próprios padrões sociais se elevam bem acima desse denominador comum mínimo? E por que China e outros países asiáticos deveriam ser "participantes responsáveis", nas palavras do ex-vice secretário de Estado, Robert Zoellick, numa ordem internacional liderada pelos americanos, quando eles não têm assento na mesa em que as regras são elaboradas? Mesmo com os EUA avançando aos tropeços na direção do multilateralismo, os outros estão saindo do jogo americano e seguindo suas próprias regras.

O auto-enganador universalismo do império americano - segundo o qual o mundo, intrinsecamente, necessita de um único líder e a ideologia liberal americana precisa ser aceita como base da ordem global - resultou, paradoxalmente, no fato de que os EUA são hoje uma superpotência cada vez mais isolada. Da mesma maneira que existe um mercado geopolítico, existe um mercado de modelos de sucesso para o Segundo Mundo copiar, e não apenas o modelo chinês de crescimento econômico sem liberalização política. Como observou o historiador Arnold Toynbee há meio século, o imperialismo ocidental uniu o globo, mas não garantiu que o Ocidente o dominasse para sempre - material ou moralmente. Apesar da "ilusão de imortalidade" que aflige os impérios globais, a única regra confiável da história são seus ciclos de ascensão e declínio, e, como Toynbee observou, a única direção do apogeu do poder é a da queda.

O que torna os EUA únicos nessa competição não são seus ideais democráticos liberais - a Europa hoje pode ser uma melhor representante -, mas sua geografia. O EUA estão sós, enquanto que Europa e China ocupam as duas extremidades da grande massa de terra continental eurasiana, o centro eterno de gravidade da geopolítica. Quando os EUA dominaram a Otan e lideraram um rígido sistema de alianças no Pacífico com Japão, Coréia do Sul, Austrália e Tailândia, conseguiram realizar a tarefa hercúlea de administrar o mundo do lado deles. Hoje, foram rejeitados pela União Européia e a Turquia, mal acolhidos em grande parte do Oriente Médio e perderam muito da confiança do Leste da Ásia. "Império fortuito" ou não, precisam rapidamente se adaptar a essa realidade. Manter o império não vale a pena, e a história promete que esse empenho será um fracasso. Já está fracassando.

O mundo seria ou não mais estável se os EUA conseguissem ser novamente aceitos como principal organizador? É muito tarde para se perguntar, porque a resposta já se revela aos olhos. Nem a China, nem a União Européia substituirão os EUA como líder único do mundo; porém, os três lutarão constantemente para conseguir influenciar sozinhos e se equilibrar um com o outro. Acredito que uma paisagem multicultural, complexa, repleta de desafios transnacionais, do terrorismo ao aquecimento global, é completamente inadministrável por uma única autoridade, sejam EUA ou Nações Unidas.

A globalização resiste a praticamente qualquer tipo de centralização. Em vez disso, o que se observa gradativamente nas negociações sobre mudanças climáticas (como em Bali, em dezembro) e precisamos ver mais, no campo das conversações sobre prevenção da proliferação nuclear e reconstrução de Estados falidos, é um sentido muito maior de divisão de trabalho entre as Big Three, uma divisão concreta do fardo, pois elas serão julgadas não pela sua retórica, mas pelas responsabilidades que assumirem. O arbitrariamente composto Conselho de Segurança não é lugar para se discutir uma divisão de trabalho como essa, tampouco qualquer dos órgãos multilaterais sobrecarregados de votações e opiniões dissonantes e irrelevantes. Os grandes temas devem ser resolvidos pelas Big Three entre elas.

Fonte: The New York Times

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