O ESTATUTO DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE E A BUROCRATIZAÇÃO DAS LICITAÇÕES PÚBLICAS
Marcio Rogério Gabriel [1]
Nos dias finais do ano que se passou, o Presidente da República sancionou, originária do Congresso Nacional, a Lei Complementar nº 123/06. Essa lei, conhecida como o Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (ME e EPP), tratou de incentivar as atividades destes organismos, concedendo-lhes importantes benefícios no campo Tributário: obrigações fiscais, trabalhistas e previdenciárias, recolhimento simplificado, processo fiscal, e também, no campo das compras governamentais: tratamento favorecido em detrimento de outras empresas, prazos diferenciados para apresentação de documentos e participação exclusiva certames licitatórios.
Nada se obsta quando o legislador, seguindo preceito constitucional (art. 179 CF/88), impõe para a Administração oferecer tratamento diferenciado para aquelas empresas que ainda estão dando seus primeiros passos, e globalmente consideradas, são grandes geradores de empregos. Todavia, sob outro ângulo, não deve ser considerado justo, e se verá mais adiante, burocratizar ainda mais o já formal, rigoroso e lento procedimento licitatório. A tendência moderna indica justamente o sentido contrário.
O capítulo V da lei ora em comento – arts. 42 a 49 – traz o seguinte tema: "Acesso aos Mercados". Nesses dispositivos se oferece às ME/EPP's, aquelas cuja receita bruta anual não seja superior a R$240.000,00 e R$2.400.000,00 respectivamente, uma cesta de vantagens, sendo as mais expressivas: participação exclusiva nas licitações de até R$80.000,00, cota de 25% do objeto a ser reservado para elas, possibilidade de transformar os empenhos liquidados em título de crédito, dispensa de comprovação prévia de regularidade fiscal e oferta prioritária de preços quando da competição com a grande empresa nas licitações efetuadas sob quaisquer das modalidades: convite, tomada de preços e concorrência, inclusive no pregão nas formas presencial e eletrônico. Excetuou-se apenas a alienação, visto que aqui a Administração quer vender, e não comprar, o que tornaria o benefício inviável.
O primeiro tratamento favorecido que merece destaque, que a meu ver pode implicar em atrasos adicionais no procedimento licitatório, é quando a lei no seu art. 43, permite que a ME ou EPP participe da licitação, ainda que esteja com a documentação fiscal irregular. Isso mesmo! Documentos com validade vencida, falta de documentos, rasurados, inelegíveis, por ai afora... Caso essa empresa logre-se vencedora da licitação, ser-lhe-á concedido o prazo de dois dias úteis, prorrogáveis por mais dois dias, para que a vencedora regularize a documentação. Agora, imagine-se a seguinte situação: se, em um certame a Administração obtiver 3 propostas válidas de ME ou EPP, pela ordem de classificação se concede da 1ª, à última, o direito de atualização documental, e supondo-se que nenhuma o faça no prazo de 4 dias, não é difícil compreender que serão perdidos 12 dias úteis – 20 dias ou mais corridos – só nessa fase da licitação. Isso sem considerar os prazos para notificação, que normalmente, não é uma atividade que ocorre no mesmo dia, e o pior que pode acontecer, alem de tudo, é não obter êxito na contratação.
Outra benesse advinda da lei e que merece destaque, até mais significativa que a mencionada acima, e que do mesmo modo interfere na formalidade do processo competitivo, é quando no art. 44 se consideram as situações de empate envolvendo ME/EPP.
Há muito tempo aprendemos que algo está em situação de empate quando existem resultados iguais para as partes envolvidas: zero a zero, um a um, mil, mil e mil... Ocorre que no estatuto se cria uma conjuntura de empate, digamos "ficto" nos certames. Como se dá tal empate: se a grande empresa ofereceu a melhor proposta, com menor preço, digamos 100 reais, consideram-se em empate as propostas, de ME ou EPP claro, cujos valores sejam superiores até 10% acima daquele da grande empresa (R$100,00 a R$110,00). Esse percentual é reduzido para 5% quando se tratar da modalidade pregão. Quais são as conseqüências desse empate inventado pela norma: deve ser concedido a ME/EPP que estiver na 2ª colocação (na faixa dos 10%), vamos supor 105 reais, o direito de ofertar uma nova proposta com valor inferior, R$99,99 por exemplo, que diga-se: não poderá ser coberto pela grande empresa, e se essa empresa não exercer a preferência, o direito deve ser concedido para as demais, pela ordem crescente dos preços. Com efeito, a ME/EPP poderá vencer a competição reduzindo a proposta da grande empresa em apenas 1 centavo de diferença.
Nas licitações tradicionais promovidas de acordo com a Lei 8.666/93 – Convite, TP, Concorrência – isso significa uma possibilidade de renovação do preço inicialmente fixado na proposta, algo até então inconcebível! Imagine o leitor, a dificuldade de operacionalização do dispositivo no pregão eletrônico, já que nessa modalidade há uma fase inicial de lances verbais, seguida de uma fase de negociação de preços, agora interrompida por uma fase de "prioridade a micro e pequena empresa"?!
Entretanto, essa não é a pior conseqüência em relação aos atrasos procedimentais ora abordados, o pior pode ocorrer quando, no forte desejo de vender, a ME/EPP, reduza demasiadamente seu preço e posteriormente não consiga executar o contrato. Certamente, haverá atrasos que poderão impor sérios prejuízos na execução do objeto. Supondo-se que haja 3 ME/EPP na faixa dos 10% (R$100,00 a R$110,00) e todas sejam chamadas por ordem crescente de preços para exercer o direito de preferência, ou seja, ofertar um novo valor para a proposta, inferior aos 100 reais oferecidos pela grande empresa, haja tempo disponível para realização de sessões. Caso não faça os novos convites para redução de preço, para a Administração resta a opção de revogar o procedimento e reiniciá-lo, o que, a princípio, parece não ser a melhor opção.
Essa analise extremamente restritiva que se faz a apenas alguns aspectos do estatuto, por si só já evidencia a enorme dificuldade de compatibilizar a lei aos métodos vigentes, lei que inclusive já está em pleno vigor no que atine às licitações na parte das preferências a que se referem arts. 42 a 45. No campo tributário as novas regras valerão apenas 6 meses após a publicação da lei (agora em 01/07/2007). Inclusive, por não estarem em vigor as medidas no campo fiscal, poucas ME/EPP's têm efetivamente exercido o direito de preferência, desatentas para o fato de que dispositivos da norma têm prazos diversos para entrada em vigor.
Enquanto esses dispositivos, ou parte deles, não for objeto de declaração de inconstitucionalidade, como ponderam alguns renomados doutrinadores do campo das licitações públicas, os quais pela experiência e vivência consideram que há desrespeito aos princípios constitucionais da isonomia e do princípio republicano, resta para nós, agentes públicos, autoridades e servidores, executivos e de controle, a aplicação imediata da nova lei. Cabe ressaltar que treinamento e aperfeiçoamento constantes são requisitos essenciais para se obter os certames com boa qualidade e resultado. Ainda mais que, doravante, regras enigmáticas e imprecisas vêm modificar mais de 14 anos de procedimentos formais assentados na famosa lei 8.666/93 e aperfeiçoados ao logo desse tempo.
(1) É Assessor da Secretaria Geral de Administração, Pregoeiro e Presidente da Comissão de Licitações do Tribunal de Contas