Quinta-feira, 24 de setembro de 2009 - 09h29
CARLOS NICODEMOS*
Na passagem histórica da Doutrina da Indiferença, que marcou a política do abandono do Estado brasileiro para a infância e adolescência, cujo marco temporal está até o final do século XIX, vimos surgir uma nova concepção de política pública de controle social, na qual fez-se a opção à época pela judicialização da pobreza e da delinquência na qual estavam envolvidos crianças e adolescentes.
Esta opção é resultado do eco de criação de vários Tribunais de Menores no mundo, sendo o seu primeiro, em 1899, na cidade de Illinois dos Estados Unidos da América. Consta ainda, no retrovisor da história, que em 1905 foi criado o Tribunal de Menores da Inglaterra, em 1908 na Alemanha, em 1911 na Hungria e Portugal, em 1912 na França, em 1921 na Argentina, e em 1923 no Brasil, entre outros.
Referida estratégia de política pública de fundir numa única moeda dois lados - pobreza e delinqüência - consolidou a Doutrina do Direito do Menor, tendo o Estado brasileiro, com a aprovação do Código de Menores de Mello Mattos (Juiz de Menores) efetivamente optado pela atuação no Poder Judiciário, ladeado pelo Ministério Público, nas ações judiciais ou sociais de controle dos chamados “menores”.
Com o Código de Menores de 1979, o Brasil consolida esta política proclamando a Doutrina da Situação Irregular, o arcabouço ético que colocou nas masmorras das Febens e Funabens, crianças abandonadas pelas famílias ou mesmo entregues por elas à Justiça; crianças em situação de rua; crianças portadoras de doenças mentais; crianças infratoras; entre outras tipologias sociais. É verdade que não podemos olvidar que este processo deu-se por uma opção do Poder Executivo em não assumir a proteção da infância como uma política pública social, deixando a cargo do Poder Judiciário a responsabilidade do controle social.
A partir da democratização do Estado brasileiro (1985), com a Carta Constitucional de 1988 (Artigo 227), a assinatura e ratificação da Convenção dos Direitos das Crianças da ONU (1989) e da promulgação da Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente, passamos a adotar a Doutrina da Proteção Integral e com ela, rompemos a Judicialização Menorista Hermética de séculos, para dar lugar à construção das políticas públicas de caráter iminentemente social, através dos Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes (nacional, estaduais e municipais – Artigo 87 Lei 8069/90).
Os Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes, são órgãos paritários (sociedade civil e governo) que no gozo de sua autonomia, deverão formular políticas de caráter protetivo para crianças e adolescentes. Passados 19 anos do Estatuto da Criança, os Conselhos de Direitos seguem na sua trajetória, sob o manto da democracia participativa, consolidando seu papel, virando aquela triste página da história.
Com a criação dos Conselhos de Direitos da Criança, o Poder Judiciário e o Ministério Público ganharam novo status e papel na proteção dos direitos das crianças. Não só em relação às crianças, é importante registrar a importância dos referidos órgãos para a consolidação do Estado democrático de direito. Conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, Juizes e Promotores agora são encarregados de promover a proteção de crianças e adolescentes de maneira integrada (vide Sistema de Garantia de Direitos – Resolução 113 do Conselho Nacional da Criança) com os demais atores sociais.
Ademais, crianças e adolescentes deixaram de ser objetos de controle tutelar do Estado Judicializante, estabelecendo a lei que devam ser assegurados aos mesmos, direitos e garantias constitucionais que a Republica Federativa do Brasil reconhece para todo cidadão. Finalmente, pobreza e criminalidade estão separadas e não constituem lados de uma mesma moeda. Ao menos na forma da lei.
Não obstante a esta trajetória histórica que nos coloca como paradigma internacional na área da infância e adolescência, nos últimos anos temos percebido o ressurgimento do mencionado menorismo judicializante hemético, através de ações e medidas judiciais que têm arrancado a força questões de políticas públicas sociais relacionadas à área da infância que devam ser deliberadas pelos Conselhos de Direitos (sociedade civil organizada e governo) para o âmbito do Poder Judiciário.A edição de Portaria por parte de Juízes, determinando, ao arrepio do que estabelece a Constituição Federal (Artigo 5º) e da Lei 8069/90 ( Artigo 16), o recolhimento de adolescentes no período noturno é exemplo latente desta malfadada filosofia.
Representantes do Ministério Público que promovem Termos de Ajustamento de Condutas (TAC) com o Poder Público Executivo sobre políticas públicas para crianças e adolescentes, atropelando e ignorando a função e o papel dos Conselhos de Direitos como órgãos deliberativos demonstram um ranço desta filosofia que superamos legalmente, mas ainda sobrevive nas instituições do Sistema de Justiça. Podemos ainda mencionar popularização e massificação de proposição de Ações Civis Públicas( sem instauração de inquéritos civis) contra o Poder Público, objeto do imaginário de um ou mais Promotores de Justiça (a partir da indispensável autonomia constitucional que lhes foi outorgada na CF88) que acreditam (sem diagnóstico) na resolução de questões macro-estruturais através de uma simples sentença judicial, sem medir variáveis de ordem orçamentária e financeira. Nesta alça de mira encontram-se temas como a regulamentação dos Fundos da Infância, criação e extinção de vagas em abrigos; reforma de unidades socioeducativas, entre outros.
Não é a toa que se acumulam nas prateleiras da Justiça, TACs e sentenças judiciais desta ordem que adormecem sem nenhum efeito prático. O mais grave desta situação é a exposição e o desgaste destes órgãos públicos perante a sociedade de maneira geral e também frente aos segmentos organizados. Isto ainda não reverbera de forma impactante no Estado brasileiro em razão do Poder Judiciário e do Ministério Público gozarem, de forma merecida, de credibilidade institucional, pelos relevantes serviços prestados ao Brasil de forma geral.
É claro que não podemos prescindir destes importantes recursos judiciais, até porque está proclamado pela Constituição Federal que qualquer lesão ou ameaça a direito será apreciado pelo Poder Judiciário. Entretanto, não podemos subverter a ordem e instâncias dos Poderes do Estado e transferimos mais uma vez na história, do Executivo para o Judiciário a formulação de políticas públicas para crianças e adolescentes.
A criação de instância de controle externo destes órgãos (Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público), sem sobra de dúvidas é a maior demonstração de compromisso de ambos com a democracia e o aprimoramento de seu funcionamento. Porém, persistindo o desejo de alguns membros destes órgãos de fazer ressuscitar o menorismo judicializante, que sob as trevas da doutrina da situação irregular patrocinou o Estado inquisitivo contra crianças, corremos o risco de vivermos uma crise entre os valores da democracia participativa e as deliberações institucionais herméticas.
Quem vencerá este enfrentamento a história dirá. Mas certamente, crianças e adolescentes sairão perdendo pelo retardamento de uma política imediatamente protetiva.
*CARLOS NICODEMOS é Advogado, Presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e Coordenador Executivo da Organização de Direitos Humanos – Projeto Legal.
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