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ARTIGO: República e democracia participativa


Nos últimos tempos, temos assistido a uma revivescência retórica do republicanismo. “República”, “res publica” , “virtudes cívicas” e outros termos pertencentes à mesma constelação semântica buscam ocupar no léxico político da atualidade o espaço até recentemente dominado por expressões associadas à globalização, por exemplo, como o “fim dos Estados nacionais”. O centro de difusão da novidade localiza-se nas latitudes anglo-saxãs, mas o debate desgarrou-se, vindo a pousar também no Brasil, onde, a exemplo das ervas daninhas em solo de lavoura abandonado, encontra terreno adequado para medrar. É crescente a sua presença em intervenções no Parlamento, em declarações de autoridades, em falas de ministros e secretários, em discursos de paraninfos e em rodas de conversas de bar. 
Como era de esperar, a redescoberta republicana brasileira proclama a necessidade de se fortalecer no País o senso da “res publica”, da coisa pública, entre os cidadãos. Mas, a despeito da oportunidade da advertência - numa conjuntura marcada historicamente por escaramuças recorrentes de apropriação privada do bem público -, o que de mais proveitoso há a observar na nova discursata é o seu aparente caráter abstrato. Mas, como a política não admite o vácuo, é de perguntar qual é o discurso atual referente à ordenação política brasileira que a evocação do ideal republicano pretende deslocar? Com que propósito? 
Que o republicanismo não faz parte das “idéias claras e distintas” -, segundo preconizadas pelo método cartesiano -, disso já se sabia. Em 1819, John Adams, tradicionalmente considerado um republicano, confessava não ter nunca entendido o que seria o republicanismo e afirmava que “nenhuma outra pessoa nunca o entendeu ou o entenderá”, pois republicanismo “pode significar qualquer coisa, tudo ou nada”. Mais recentemente, Norberto Bobbio afirma a mesma coisa no seu diálogo com Maurizio Viroli sobre a república.  De fato, parece existir tantas acepções de republicanismo quantas são as cabeças republicanas.
Ainda assim, é possível divisar um sentido comum no ideal republicano, em oposição, por exemplo, à sociedade estamental do Antigo Regime - a igualdade de todos perante a lei. A Constituição, no Artigo 3, lista como “objetivos fundamentais da República” o “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, a erradicação da “pobreza e [da] marginalização”, a redução das “desigualdades sociais e regionais” e por fim a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. É assim, como valor supremo e como objetivo fundamental, que a igualdade faz sua entrada no texto constitucional. 
Diante de tal abundância legislativa, seria de esperar que a igualdade gerasse energia emancipatória, promovendo a realização de uma igualdade de fato. Isso, porém, não ocorre. O discurso constitucional no Brasil, no tema da igualdade, é incapaz de dar vida aos princípios que abraça, por acreditar em que a igualdade jurídica, unicamente, é capaz de dar conta da tarefa.  
Ocorre que a igualdade jurídica, assentada no princípio “cada um, um voto” (“one head, one vote”, na expressão cunhada por Madison)  é resultado de uma visão seletiva das possíveis relações entre os membros da sociedade. Ela considera tais membros somente do ponto de vista do direito de voto, deixando de lado qualquer outra relação possível que possa existir entre eles. Essa visão seletiva fornece ainda hoje a base das teorias republicanas da democracia representativa, observa Alessandro Pinzani. 
Se se atentar, contudo, para outros aspectos, como, por exemplo, as desigualdades sociais, as hierarquias, as relações de poder entre governantes e governados, etc., não será possível descrever as relações entre os membros de uma sociedade como de absoluta igualdade conforme o princípio “one head, one vote”. 
Ao enunciar o seu princípio, Madison tinha em mente evitar o surgimento de facções. Temia que mesmo um número pequeno de indivíduos pudesse representar uma ameaça para a república. Mas, diferentemente do que pensava Madison, a experiência mostrou que conta menos o número de indivíduos que se juntam e mais o poder econômico, social ou político detido por eles. O poder de um grupo de indivíduos muda substancialmente, se seus membros são, por exemplo, operários ou empresários, jornalistas ou proprietários de jornais. 
Assim é que o princípio republicano do “one head, one vote” tanto se presta a dar sustentação á democracia republicana quanto a alimentar a ficção de que todos os cidadãos são iguais e detêm o mesmo poder político, ao exercitá-lo no momento do voto. A igualdade jurídica postulada pelas constituições republicanas esconde uma realidade feita de desigualdade econômica, social e política – uma desigualdade que a igualdade jurídica protege e fomenta. 
Ora, se às desigualdades na distribuição do poder econômico e social corresponde uma desigual distribuição do poder político, não se está na vigência da democracia, mas de uma oligarquia na qual o poder político é exercido por uma parcela da sociedade, em detrimento da outra, apesar da existência de mecanismos eletivos democráticos. 
Isso tudo nos remete à idéia de sugerir uma inversão de prioridade na proposta de debate político, de evocação do ideal republicano, para alçar em seu lugar o debate sobre o tipo de democracia capaz de superar as limitações republicanas da igualdade exclusivamente jurídica. Nas condições brasileiras, de profunda desigualdade social e gritante exclusão social, o que importa é avançar para uma solução que concilie a igualdade jurídica com a igualdade econômica e a igualdade social. É dizer que o desafio da igualdade está em se promover a igualdade política, não apenas no momento do voto, como ocorre na atualidade, mas também nas relações sociais quotidianas.  
A esse desafio corresponde a radicalização da democracia, ou a transformação da democracia representativa (atualmente desmascarada numa “democracia sem povo”) numa democracia participativa, mediante a incorporação dos movimentos sociais nos processos de tomada de decisão sobre a “res publica”. Somente assim será possível avançar, concebendo-se a política como discussão recorrente sobre a definição da democracia e sobre o sentido da igualdade dos cidadãos. 
O problema da desigualdade, que marca tão profundamente a realidade brasileira, exige, pois, uma solução política, resultado não do consenso, mas do diálogo e da negociação. Somente a democracia participativa será capaz de fazer com que as desigualdades econômicas e sociais deixem de corresponder a uma desigualdade na distribuição do poder político. 
A esse respeito, o republicanismo nada tem a dizer, por confinar no âmbito estritamente jurídico a questão da legitimação, que, na democracia participativa, encontra a plenitude de seu sentido político na acolhida das dimensões social e econômica.
 
Autor: Rui Falcão é jornalista e deputado estadual pelo PT de São Paulo
Fonte: Blog do Noblat 

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