Sexta-feira, 8 de setembro de 2006 - 20h55
Passada a emoção da morte e dos funerais de Dom Luciano, trago, para nossa reflexão, algumas facetas de sua personalidade sacerdotal que sempre me impressionaram e das quais falei em muitos retiros espirituais pregados ao clero em diversas dioceses do nosso Brasil.
O fascículo 162, junho de 1981, da Revista Eclesiástica Brasileira, mais conhecida como REB, publicou, à página 320, um belo e talentoso artigo de 25 páginas sob o título: "Algumas reflexões sobre a formação sacerdotal hoje" de autoria do Padre José Comblin. O estudo foi em preparação ao Sínodo sobre os Presbíteros, em Roma.
Minha revista está toda sublinhada e sinalizada. Li e reli esse artigo. Pouco depois tive a oportunidade de conhecer Dom Luciano. Pude, então, verificar, prazerosamente, como ele encarnara, de modo tão simples, espontâneo e natural, aquilo que Padre Comblin sinalizara como "Temas espirituais fundamentais que devem animar a formação sacerdotal".
1) "O primeiro tema é o da disponibilidade (o grifo é meu): corresponde à disposição de Jesus ao entrar no mundo de acordo com epístola aos Hebreus: "Eu venho para fazer, ó Deus, a tua vontade" (Hb 10,7). Ou também a disposição de Maria: "Eis aqui a serva do Senhor" ..."
Nunca vi tanta disponibilidade como a de D. Luciano. Não sabia dizer "não"! Foi o homem do "SIM"! Arrebentava-se em viagens à noite, em um golzinho frágil, por estradas quase intransitáveis, tentando conciliar compromissos e atender os mais diversos pedidos e solicitações de sua presença.
Era 21 de março de 1996, velório de D. João Bergese, Arcebispo de Pouso Alegre. Dom Luciano, depois de 520km de estrada, chega por volta de 21h, com forte dor de dentes. Foi à Catedral, visitou o corpo e rezou por um bom tempo. Providenciamos um dentista. Não aceitou dormir. Fez um lanche rápido; era quase meia-noite quando voltou para a estrada para atender um outro compromisso. Disse-lhe: "- D. Luciano, o Senhor não pode viajar em um carro frágil assim, sem conforto e à noite". Ele nada respondeu. Despediu-se, agradeceu as poucas atenções que foram possíveis oferecer-lhe e entrou no carro.
Dom Luciano é sinônimo de disponibilidade!
2) "O segundo grande tema será o da "compaixão". A imagem culminante de Deus no cristianismo é a do Pai do filho pródigo que sofre por ter perdido o filho. A "compaixão" do Pai manifesta-se no comportamento de Jesus: "Vendo a multidão, comoveu-se de compaixão, porque eles estavam enfraquecidos e abatidos como ovelhas sem pastor'(Mt 9,36). ..."
15 de outubro de 1983. Chega às minhas mãos um problema, até então, novo para mim. Um sacerdote em crise e que pedia ajuda. Autorizou-me a consultar alguém de minha confiança, protegendo sua identidade. Procurei D. Luciano. Telefonei para São Paulo, Brasília e marcamos o dia 20, às 10h30min, em sua residência no Belenzinho. Cheguei com tempo. Sala de espera cheia de pessoas simples e humildes que batiam à sua porta. Atendeu-me com calma e atenção. Deu-me de presente um exemplar de sua tese de Doutorado em Ontologia. Convidou-me para almoçar. Não aceitei por duas razões: seu tempo e, talvez, em sua pobreza, não houvesse comida para dois. Eu já conhecia sua casa. Disse-lhe que deveria ainda passar pelo comércio em S. Paulo e que deveria voltar logo à paróquia, em Minas.
Despedi-me. Levou-me à porta. Meu carro estava a uns vinte metros de distância. Quando estava dando partida no motor, D. Luciano reaparece à porta de sua casa. Chamou-me. Fechei o carro novamente. - O que o Senhor deseja D. Luciano? E ele: " Olhe, você não quis almoçar e deve estar com fome. Leve estes chocolates para você comer. Recebi-os e agradeci, despedindo-me. Quando chego ao carro as barrinhas de chocolate estavam se derretendo pelo calor."
Fiquei a pensar: ele atendeu-me no que precisava. Convidou-me para almoçar e não aceitei. E, no entanto, não se sentiu bem enquanto não fizesse algo mais para meu conforto...
Aprendi, concretamente, a lição do Pe. Comblin: compaixão é a capacidade de sentir o problema do outro, sem que ele fale e tentar ajudar a resolver com discrição e naturalidade!
Houve outros fatos semelhantes.
Dom Luciano é sinônimo de compaixão.
3) "Enfim, o terceiro tema fundamental é o Reino de Deus, que está presente em Jesus crucificado e ressuscitado; esse Jesus que Se torna presente na cruz e na ressurreição em todos os homens que assumem, como Ele, o Seu sofrimento. O olhar da fé consiste justamente nisto: ser capaz de reconhecer, nos pobres que sofrem, as disposições de Jesus na cruz e na ressurreição".
Julho de 1982. Dom Luciano prega o retiro do clero de Pouso Alegre. Pergunto ao meu Arcebispo: "O Senhor tem alguém que leve Dom Luciano?" E ele: "Não". Respondi-lhe: "Então tem!"
Sabia que, à noite, no escuro, ele não poderia ler... Teria tempo para conversarmos. Paramos em Itaici: "Uma conferência para os sacerdotes novos, Jesuítas, ordenados nos últimos 5 anos.
O envelope que recebera do Sr. Arcebispo, passou-o - sem ver o conteúdo - a um jovem sacerdote Jesuíta que lhe confidenciara seus problemas.
Seguimos para São Paulo, onde chegamos à 01h30. Ele já havia nos falado, no Retiro, que morrera, naquele dia, um seu vizinho, de origem eslava e sem parentes e que provavelmente não haveria ninguém em seu velório.
Fomos diretamente ao Velório, nas dependências da Diocese. Havia um senhor e uma religiosa com o falecido. D. Luciano rezou por um tempo. Levou-me depois à sua casa. Esquentou uma sopa e mostrou-me um quarto. Levantei-me cedo. Chego ao Velório às 6h30min. Dom Luciano estava de pé, rezando o terço e velando o corpo daquele pobre senhor.
Não haveria nenhum retorno humano por aquele seu gesto! Ele tinha pela frente um outro dia cheio de compromissos!
Só pelo Reino de Deus!
Dom Luciano é sinônimo de amor ao Reino de Deus.
4) "Ao terceiro tema está ligado o quarto que é, antes, uma parte do mesmo, mas convém destacá-lo de modo especial: é o tema do serviço. O sacerdócio é serviço". ... "por conseguinte, os seminaristas deverão necessariamente aprender a servir, fazer experiências concretas de serviço real - isto é, material, físico - aos pobres".
Dom Luciano sofria, visivelmente, quando não conseguia ajudar, como queria, aos que o procuravam. Servia pela alegria de servir.
No ano de seu Jubileu, estávamos lado a lado em Itaici, na Assembléia dos Bispos. Nos tempos neutros, ele punha sua correspondência em dia e eu lhe fechava os envelopes. Disse-lhe baixinho: "Vou acrescentar no meu currículo que fui secretário de D. Luciano". Ele sorriu.
Estava para acontecer, em Roma, o encontro do G8. O Presidente da Itália pediu sua ajuda. Dom Luciano saiu sem nada dizer. Uma noite de viagem, um dia de trabalho em Roma, outra noite de viagem. Entrou discretamente no Auditório da Assembléia, sem nada dizer, como se nada tivesse acontecido de especial. Era mais um serviço...
Sua grande alegria estava no servir aos pobres. E ele sabia fazê-lo sem se colocar acima do pobre.
Dia 28 de maio de 1988. Cerimônia de Posse como Arcebispo de Mariana.
Na homilia, sua voz ficou embargada por duas vezes, fazendo uma pequena pausa para continuar. Chorou quando falou de seus pobres no Belenzinho. Chorou quando falou agradecendo e se despedindo de seus padres. Quatro deles estavam ao lado do altar. Voltei-me para eles: um enxugava as lágrimas na manga de sua túnica e o outro na Estola! Amor recíproco.
Dom Luciano foi uma chama acesa que iluminou e aqueceu a muitos. Só se apagou quando queimou a última gota de cera que a alimentava.
Dom Luciano = Sacerdócio = Disponibilidade = Compaixão = Reino de Deus = Serviço
No dia 27 de agosto fechou-se um lindo livro escrito por Deus.
Chamava-se Dom Luciano.
Quem leu, leu!
Fonte: Dom João Bosco Óliver de Faria (Bispo Diocesano de Patos de Minas)
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