Terça-feira, 19 de julho de 2022 - 15h40
A revisão histórica não pode julgar o ontem como se fosse o hoje. É possível,
sim, separar a grandeza da obra, do comportamento doentio do autor. Com os
atuais códigos éticos, Pablo Neruda sentaria no banco dos réus, como estuprador
e por ter abandonado as suas funções de pai. Quando se chamou Monteiro Lobato
de racista, devido a forma de tratar seus personagens negros no Sítio do
Picapau Amarelo, o mundo cultural brasileiro quase desaba.
O passado tem pesos e medidas de julgamento diferenciados. O machismo, o
racismo, foram regra geral, durante anos. Antigamente havia a legítima defesa
da honra, matava-se uma mulher e muitas vezes o seu amante, sem sofrer punição
alguma; matar um preto em qualquer um dos países que escravizaram negros não
era encarado da mesma forma de hoje: Black Lives Matter
- mas por que precisamos afirmar o óbvio?
Recentemente uma escritora descobriu que Pablo
Neruda teve uma única filha, Malva Marina, com a holandesa María Antonieta
Hagenaar. A criança tinha hidrocefalia e morreu aos 8 anos, em 1943, abandonada
pelo pai. Os comunistas, Neruda era um comunista convicto, marxista e ateu,
talvez adepto dos espartanos, encaravam com desdém a vida familiar: “Marx frequentemente colocava o menino Henry para fora de casa, e jamais permitiu
que ele visitasse sua mãe. Como declarou Fritz Raddatz, biógrafo de Marx,
"se Henry Frederick Demuth era filho da Karl Marx, o exortador da nova
humanidade viveu uma mentira que durou quase uma vida, além de ter desprezado,
humilhado e repudiado seu único filho”.
O próprio Neruda descreve no livro “Confesso que vivi” uma cena de
estupro cometida por ele, usando uma jovem tâmil, da casta dos intocáveis,
encarregada de limpar suas latrinas quando era cônsul do Chile, no Ceilão,
atual Sri Lanka: "Certa manhã, determinado a tudo, peguei-a com firmeza
pelo punho e olhei-a no rosto. Não havia idioma em que eu pudesse falar com
ela. Se deixou ser conduzida por mim, sem um sorriso, e logo estava nua na
minha cama (...) O encontro foi de um homem com uma estátua. Permaneceu o tempo
todo de olhos abertos, impassível. Fazia bem em me desprezar. A experiência não
se repetiu", confessa o poeta, como um consolo à opinião pública.
Assim como essa jovem do Sri Lanka, milhares de jovens negras do Brasil,
EUA e África do Sul foram igualmente estupradas, porque era “normal”, não havia
punição, havia um processo social para tornar tais ações invisíveis. Se
levarmos a pesquisa social a fundo, veremos que a História é cruel. As ações de
Neruda se repetiram mundo afora, com outras crianças.
Ninguém contesta os méritos estéticos de Neruda ao ganhar o Nobel de
Literatura, mas vale perguntar: a obra apaga o comportamento? É relativo, mas a
nossa condenação chega fora de época, o século XXI não pode punir uma pessoa do
século XX. Sim, temos que reprovar, historicamente, o comportamento de Pablo
Neruda com as mulheres e, particularmente, a atitude desprezível com a sua
filha doente: “Nem o poema mais perfeito pode compensar a maldade feita a
uma criança". Mas daí a trazê-lo da tumba para o banco dos réus,
são outros quinhentos.
Diante das evidências, muita gente contesta o silêncio da Academia
Chilena, mas eu acho que estão certos, não se pode ver com a lógica moral do
século XXI, um homem do século XX. É o mesmo que chamar Monteiro Lobato de
racista, tomando como base a obra escrita por ele, no século passado. Na vida de
qualquer autor pode ocorrer uma dissintonia entre o que se diz — o que se
escreve — e o que se faz.
Nem Neruda, nem Lobato deixarão de ser lidos. A escritora Adriana Valdés
lembra que se a "conduta pessoal imaculada fosse requisito para ler e
admirar escritores ou pensadores, teríamos que prescindir de pessoas como
Rimbaud, Céline, Sartre, Lope de Vega, Verlaine, e por que não dizer Oscar
Wilde, Baudelaire, Rousseau, Heidegger?..."
A moral e os bons costumes também evoluem, é extremamente importante que
hoje se possa olhar para trás e ver como eram bárbaras e cruéis muitas práticas
machistas, racistas, espartanas, desumanas e que, há muito pouco tempo, faziam
parte do senso comum. Ainda hoje, os árabes encaram as mulheres diferentemente
dos costumes ocidentais.
Pelo andar da carruagem, a gente sabe que práticas machistas, racistas e
atitudes desumanas contra crianças, idosos e até mesmo animais, vão desaparecer
completamente do cenário mundial, mas poemas de amor como os de Neruda e
personagens como a Emília de Lobato, passarão para a posteridade. A obra
literária, de tabela, imortaliza o autor e o inocenta de um comportamento
antissocial e profano.
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