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Crônica

A Obra não Condena o Autor


A Obra não Condena o Autor - Gente de Opinião

A revisão histórica não pode julgar o ontem como se fosse o hoje. É possível, sim, separar a grandeza da obra, do comportamento doentio do autor. Com os atuais códigos éticos, Pablo Neruda sentaria no banco dos réus, como estuprador e por ter abandonado as suas funções de pai. Quando se chamou Monteiro Lobato de racista, devido a forma de tratar seus personagens negros no Sítio do Picapau Amarelo, o mundo cultural brasileiro quase desaba.

 

O passado tem pesos e medidas de julgamento diferenciados. O machismo, o racismo, foram regra geral, durante anos. Antigamente havia a legítima defesa da honra, matava-se uma mulher e muitas vezes o seu amante, sem sofrer punição alguma; matar um preto em qualquer um dos países que escravizaram negros não era encarado da mesma forma de hoje: Black Lives Matter - mas por que precisamos afirmar o óbvio?

Recentemente uma escritora descobriu que Pablo Neruda teve uma única filha, Malva Marina, com a holandesa María Antonieta Hagenaar. A criança tinha hidrocefalia e morreu aos 8 anos, em 1943, abandonada pelo pai. Os comunistas, Neruda era um comunista convicto, marxista e ateu, talvez adepto dos espartanos, encaravam com desdém a vida familiar: “Marx frequentemente colocava o menino Henry para fora de casa, e jamais permitiu que ele visitasse sua mãe.  Como declarou Fritz Raddatz, biógrafo de Marx, "se Henry Frederick Demuth era filho da Karl Marx, o exortador da nova humanidade viveu uma mentira que durou quase uma vida, além de ter desprezado, humilhado e repudiado seu único filho”.

O próprio Neruda descreve no livro “Confesso que vivi” uma cena de estupro cometida por ele, usando uma jovem tâmil, da casta dos intocáveis, encarregada de limpar suas latrinas quando era cônsul do Chile, no Ceilão, atual Sri Lanka: "Certa manhã, determinado a tudo, peguei-a com firmeza pelo punho e olhei-a no rosto. Não havia idioma em que eu pudesse falar com ela. Se deixou ser conduzida por mim, sem um sorriso, e logo estava nua na minha cama (...) O encontro foi de um homem com uma estátua. Permaneceu o tempo todo de olhos abertos, impassível. Fazia bem em me desprezar. A experiência não se repetiu", confessa o poeta, como um consolo à opinião pública.

Assim como essa jovem do Sri Lanka, milhares de jovens negras do Brasil, EUA e África do Sul foram igualmente estupradas, porque era “normal”, não havia punição, havia um processo social para tornar tais ações invisíveis. Se levarmos a pesquisa social a fundo, veremos que a História é cruel. As ações de Neruda se repetiram mundo afora, com outras crianças.

Ninguém contesta os méritos estéticos de Neruda ao ganhar o Nobel de Literatura, mas vale perguntar: a obra apaga o comportamento? É relativo, mas a nossa condenação chega fora de época, o século XXI não pode punir uma pessoa do século XX. Sim, temos que reprovar, historicamente, o comportamento de Pablo Neruda com as mulheres e, particularmente, a atitude desprezível com a sua filha doente: “Nem o poema mais perfeito pode compensar a maldade feita a uma criança". Mas daí a trazê-lo da tumba para o banco dos réus, são outros quinhentos.

Diante das evidências, muita gente contesta o silêncio da Academia
Chilena, mas eu acho que estão certos, não se pode ver com a lógica moral do século XXI, um homem do século XX. É o mesmo que chamar Monteiro Lobato de racista, tomando como base a obra escrita por ele, no século passado.
 Na vida de qualquer autor pode ocorrer uma dissintonia entre o que se diz — o que se escreve — e o que se faz.

 

Nem Neruda, nem Lobato deixarão de ser lidos. A escritora Adriana Valdés lembra que se a "conduta pessoal imaculada fosse requisito para ler e admirar escritores ou pensadores, teríamos que prescindir de pessoas como Rimbaud, Céline, Sartre, Lope de Vega, Verlaine, e por que não dizer Oscar Wilde, Baudelaire, Rousseau, Heidegger?..."

 

A moral e os bons costumes também evoluem, é extremamente importante que hoje se possa olhar para trás e ver como eram bárbaras e cruéis muitas práticas machistas, racistas, espartanas, desumanas e que, há muito pouco tempo, faziam parte do senso comum. Ainda hoje, os árabes encaram as mulheres diferentemente dos costumes ocidentais. 

 

Pelo andar da carruagem, a gente sabe que práticas machistas, racistas e atitudes desumanas contra crianças, idosos e até mesmo animais, vão desaparecer completamente do cenário mundial, mas poemas de amor como os de Neruda e personagens como a Emília de Lobato, passarão para a posteridade. A obra literária, de tabela, imortaliza o autor e o inocenta de um comportamento antissocial e profano.

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