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Crônica

O menino e o rato


 Luiz Albuquerque - Gente de Opinião
Luiz Albuquerque

Vivia naquela mansão desde o nascimento. A casa, cujo caseiro era seu pai, tinha um terreno que ocupava toda uma quadra e que era, para ele, um eterno campo de aventuras com suas árvores e caminhos, os quais conhecia tão bem de tanto que fazia verdadeiras incursões de dia e, às vezes, também de noite, quando brincava de ir “acampar na floresta”.

Um dia, num canto dos fundos do terreno, avistou um rato. Como era criado com o conceito de amor aos animais, não viu, nos seus seis anos de idade, perigo naquele bicho, mesmo porque não lembrava de já ter visto algum antes.

O rato, ao ver a criança, se assustou e voltou pelo caminho que viera.

Ele ficou impressionado com o tamanho, a ligeireza e a beleza do rato. Era um rato grande, com mais de um palmo de corpo e com um rabo enorme. Seu pêlo, liso, tinha um brilho fraco, porém atrativo. Tinha uma cor indefinida entre o creme e o marrom. Mas o que mais o impressionou foi a sua vivacidade, seus gestos rápidos, os olhos muito vivos, o focinho inquieto e sempre cheirando algo, com uma boca miúda e ligeira ao mastigar.

Voltou outros dias ao mesmo lugar, sem conseguir encontrar o rato.

Certo dia teve a iniciativa de levar um pouco de comida. Por ter visto que o rato cheirava tudo achou que o cheiro do alimento ia chamar a atenção do bicho. Deu certo. A partir de então, todos os dias levava um pedaço de comida e recebia a visita do rato, que não se aproximava do garoto.

Até que teve a ideia de amarrar um barbante ao alimento. Quando o rato veio comer, puxou, levemente, a comida. Nas primeiras vezes o bicho se assustou e voltou para o buraco. Mas logo teve – vamos dizer assim – coragem, e tirou um pedaço da comida, mesmo que ela “se mexesse” com as puxadas. Dias passaram e o roedor cada vez se aproximava mais daquele benfeitor. Mais um tempo e o rato já saia, sempre no mesmo horário, e vinha comer em sua mão. Daí para andar pelo braço e logo por todo o seu corpo foi questão de tempo.

Se alguém chegasse ao fundo do terreno iria vê-los passeando no pequeno bosque. O rato andando, com passos rápidos e vacilantes, pela mão, ombro e até cabeça do seu novo “amigo”.

Um dia o rato sumiu. A tristeza do menino era notória; adoeceu, teve febre. Queria saber se alguém havia visto o seu amigo. Quando melhorou, durante dias esteve no fundo do quintal para ver se via o bicho, sem sucesso. Até que um dia ele o viu chegando. Um pouco diferente (mais gordo? Mais magro? Não saberia dizer).  O reencontro foi uma alegria para ambos, principalmente porque, logo atrás, passou pelo buraco uma dezena de ratinhos, todos já muito curiosos e ativos. Então não era um rato, mas sim uma ratazana.

Ele voltou a alimentá-la. Logo os ratinhos também passaram a comer do que ele trazia da casa.

Mais tempo passou e os viu crescer e, simultaneamente, consumir mais e mais comida. Eram insaciáveis!

Ele, que antes levava pequenos pedaços de alimento, se viu obrigado a pegar cada vez mais, tirando escondidoda cozinha. E tanto levava que deram conta do sumiço de tanta comida. Vai daqui e dali até descobrirem quem estava levando.

Questionado, ele não quis revelar para quê (ou para quem) levava o alimento. A partir daquele dia a cozinheira passou a trancar os alimentos, de forma que o menino ficou privado de alimentar a sua – vamos dizer assim – “prole”.

Logo na primeira vez que foi ao local sem levar comida a revolta da bicharada foi grande. Por mais que explicasse, só quem entendeu foi a ratazana-mãe. Afinal, ela confiava nele – e não poderia ser diferente após tanto tempo de forte amizade. Mas as crias não engoliram as explicações. Principalmente porque o que queriam engolir, mesmo, era comida. Comida que eles, desde o nascimento, não tinham outro local onde buscar, acostumados estavam a ali se alimentarem todos os dias.

No primeiro dia de fome os animais ficaram por ali, um falando com o outro, com raiva e protestando por tal absurdo: Como viver sem receber o devido alimento? No segundo dia os bichos encararam seu benfeitor, queriam comida. No terceiro dia ele leveu um pouco de seu próprio alimento. Deixara de comer para servir aos ratos. Fez a mesma coisa no quarto e quinto dia, mas não era suficiente.

Mais dois dias sem comida e os ratos o seguiram. Ele, vendo que os animais chegavam próximo à casa, tratou de enxotá-los. Eles foram embora, mas por pouco tempo. Logo retornaram.

Em três dias os ratos já estavam saqueando a cozinha da casa.

Logo foram descobertos. Todos se assustaram, já que ali nunca havia aparecido rato. Então, tomaram a decisão de eliminá-los. Foi uma guerra. Durante dois dias a função de todos era exterminar os ratos. Todos, menos ele que, mesmo participando da caçada, sempre dava um jeito de ir para o outro lado de onde estavam os bichos.

Assim, um a um, foram sendo eliminados. E, a cada roedor abatido, os “de casa” faziam uma festa, rindo, dançando e exibindo-o. Para ele era um sofrimento.

Após uma semana de caçada restava somente uma ratazana enorme que se escondera num espaço da parede, um buraco pequeno que ninguém conseguia entrar. Quer dizer: ninguém, a não ser que fosse um garoto, magro. Ele foi chamado, não teve como escapar. Alegou ter muito medo de ratos, mas, ainda assim, não teve jeito.

No buraco, com um pedaço de pau na mão, ele olhou a ratazana. De seus olhos corriam lágrimas. O bicho também olhou triste para ele. Se pudessem conversar, certamente ele diria à ratazana: “desculpe, você sabe que eu nunca chegaria a este extremo, mas não depende só de mim”. E se ela pudesse, certamente lhe diria: “Sei o que deve ser feito, então que seja feito de uma vez, e é melhor que estejamos sós neste último ato”.

Por sorte bastou uma pancada. A ratazana estrebuchou e morreu. Ele fechou os olhos, fez uma breve oração e as lágrimas começaram a cair.

Soluçando, ele levou a ratazana morta para fora da casa. Iria enterrá-la decentemente, como merecia sua grande amiga.

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