Terça-feira, 14 de maio de 2024 - 12h35
Vivia naquela mansão desde o nascimento. A casa, cujo caseiro era seu
pai, tinha um terreno que ocupava toda uma quadra e que era, para ele, um
eterno campo de aventuras com suas árvores e caminhos, os quais conhecia tão
bem de tanto que fazia verdadeiras incursões de dia e, às vezes, também de
noite, quando brincava de ir “acampar na floresta”.
Um dia, num canto dos fundos do terreno, avistou um rato. Como era criado
com o conceito de amor aos animais, não viu, nos seus seis anos de idade,
perigo naquele bicho, mesmo porque não lembrava de já ter visto algum antes.
O rato, ao ver a criança, se assustou e voltou pelo caminho que viera.
Ele ficou impressionado com o tamanho, a ligeireza e a beleza do rato.
Era um rato grande, com mais de um palmo de corpo e com um rabo enorme. Seu
pêlo, liso, tinha um brilho fraco, porém atrativo. Tinha uma cor indefinida
entre o creme e o marrom. Mas o que mais o impressionou foi a sua vivacidade,
seus gestos rápidos, os olhos muito vivos, o focinho inquieto e sempre
cheirando algo, com uma boca miúda e ligeira ao mastigar.
Voltou outros dias ao mesmo lugar, sem conseguir encontrar o rato.
Certo dia teve a iniciativa de levar um pouco de comida. Por ter visto
que o rato cheirava tudo achou que o cheiro do alimento ia chamar a atenção do
bicho. Deu certo. A partir de então, todos os dias levava um pedaço de comida e
recebia a visita do rato, que não se aproximava do garoto.
Até que teve a ideia de amarrar um barbante ao alimento. Quando o rato
veio comer, puxou, levemente, a comida. Nas primeiras vezes o bicho se assustou
e voltou para o buraco. Mas logo teve – vamos dizer assim – coragem, e tirou um
pedaço da comida, mesmo que ela “se mexesse” com as puxadas. Dias passaram e o
roedor cada vez se aproximava mais daquele benfeitor. Mais um tempo e o rato já
saia, sempre no mesmo horário, e vinha comer em sua mão. Daí para andar pelo
braço e logo por todo o seu corpo foi questão de tempo.
Se alguém chegasse ao fundo do terreno iria vê-los passeando no pequeno
bosque. O rato andando, com passos rápidos e vacilantes, pela mão, ombro e até
cabeça do seu novo “amigo”.
Um dia o rato sumiu. A tristeza do menino era notória; adoeceu, teve
febre. Queria saber se alguém havia visto o seu amigo. Quando melhorou, durante
dias esteve no fundo do quintal para ver se via o bicho, sem sucesso. Até que
um dia ele o viu chegando. Um pouco diferente (mais gordo? Mais magro? Não
saberia dizer). O reencontro foi uma
alegria para ambos, principalmente porque, logo atrás, passou pelo buraco uma
dezena de ratinhos, todos já muito curiosos e ativos. Então não era um rato,
mas sim uma ratazana.
Ele voltou a alimentá-la. Logo os ratinhos também passaram a comer do que
ele trazia da casa.
Mais tempo passou e os
viu crescer e, simultaneamente, consumir mais e mais comida. Eram insaciáveis!
Ele, que antes levava
pequenos pedaços de alimento, se viu obrigado a pegar cada vez mais, tirando
escondidoda cozinha. E tanto levava que deram conta do sumiço de tanta comida.
Vai daqui e dali até descobrirem quem estava levando.
Questionado, ele não quis
revelar para quê (ou para quem) levava o alimento. A partir daquele dia a
cozinheira passou a trancar os alimentos, de forma que o menino ficou privado
de alimentar a sua – vamos dizer assim – “prole”.
Logo na primeira vez
que foi ao local sem levar comida a revolta da bicharada foi grande. Por mais
que explicasse, só quem entendeu foi a ratazana-mãe. Afinal, ela confiava nele
– e não poderia ser diferente após tanto tempo de forte amizade. Mas as crias
não engoliram as explicações. Principalmente porque o que queriam engolir,
mesmo, era comida. Comida que eles, desde o nascimento, não tinham outro local
onde buscar, acostumados estavam a ali se alimentarem todos os dias.
No primeiro dia de fome
os animais ficaram por ali, um falando com o outro, com raiva e protestando por
tal absurdo: Como viver sem receber o devido alimento? No segundo dia os bichos
encararam seu benfeitor, queriam comida. No terceiro dia ele leveu um pouco de
seu próprio alimento. Deixara de comer para servir aos ratos. Fez a mesma coisa
no quarto e quinto dia, mas não era suficiente.
Mais dois dias sem
comida e os ratos o seguiram. Ele, vendo que os animais chegavam próximo à
casa, tratou de enxotá-los. Eles foram embora, mas por pouco tempo. Logo
retornaram.
Em três dias os ratos já
estavam saqueando a cozinha da casa.
Logo foram descobertos.
Todos se assustaram, já que ali nunca havia aparecido rato. Então, tomaram a
decisão de eliminá-los. Foi uma guerra. Durante dois dias a função de todos era
exterminar os ratos. Todos, menos ele que, mesmo participando da caçada, sempre
dava um jeito de ir para o outro lado de onde estavam os bichos.
Assim, um a um, foram
sendo eliminados. E, a cada roedor abatido, os “de casa” faziam uma festa,
rindo, dançando e exibindo-o. Para ele era um sofrimento.
Após uma semana de
caçada restava somente uma ratazana enorme que se escondera num espaço da
parede, um buraco pequeno que ninguém conseguia entrar. Quer dizer: ninguém, a
não ser que fosse um garoto, magro. Ele foi chamado, não teve como escapar.
Alegou ter muito medo de ratos, mas, ainda assim, não teve jeito.
No buraco, com um
pedaço de pau na mão, ele olhou a ratazana. De seus olhos corriam lágrimas. O
bicho também olhou triste para ele. Se pudessem conversar, certamente ele diria
à ratazana: “desculpe, você sabe que eu nunca chegaria a este extremo, mas não
depende só de mim”. E se ela pudesse, certamente lhe diria: “Sei o que deve ser
feito, então que seja feito de uma vez, e é melhor que estejamos sós neste
último ato”.
Por sorte bastou uma
pancada. A ratazana estrebuchou e morreu. Ele fechou os olhos, fez uma breve
oração e as lágrimas começaram a cair.
Soluçando, ele levou a
ratazana morta para fora da casa. Iria enterrá-la decentemente, como merecia
sua grande amiga.
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