Segunda-feira, 22 de junho de 2020 - 19h49
Uma
das formas do ser humano lidar com profundas tristezas ocorre através do ato de
escrever. Essa prática cultural, presente em muitas das atuais sociedades pode
ser insurgente ao permitir o alongamento da memória, uma extensão das
lembranças para um suporte material. E é dessa perspectiva que escrevo este
pequeno registro como meio de vivenciar o luto, mas também como uma estratégia
de comunicar a perda de uma autoridade tradicional do mundo amazônico e do
contexto ameríndio.
O
entardecer do dia 20 de junho de 2020 assombrou a região central do estado de
Rondônia, Ji-Paraná e principalmente a Terra Indígena Igarapé Lourdes com a
notícia do falecimento do Pajé Cícero Xía Mot Arara, possivelmente, uma vítima
da Covid-19. Cícero em toda sua existência foi um homem da cura, dos conselhos,
da defesa de seu Povo. Um grande conhecedor da história subterrânea de luta e
re-existência Arara, etnia autodenominada Karo,
desencadeada diante de múltiplas ações coloniais e capitalistas que por
pouco não dizimou sua etnia que no final dos anos 1970 estava reduzida a 77
pessoas.
Nascido
na primeira metade do século XX na atual Ji-Paraná ouviu de seus familiares e depois
presenciou da infância à vida adulta episódios brutais de desaldeamentos,
raptos de crianças, doenças e mortes. Na historiografia oficial estas
apropriações territoriais foram o palco dos Ciclos da Borracha, que a didática
das desaprendizagens me inspirou a chamar de diásporas indígenas na Amazônia. Viu
suas malocas serem destruídas em nome do progresso desenvolvimentista que só
enxergava látex e caucho pela frente. Dali em diante foi obrigado a trabalhar
nos seringais.
A
esse respeito, Vitor Hugo escreveu em “Os Desbravadores”, registros do Seringal
Santa Maria de Raimundo Barros em 1958, empreendimento sustentado por meio da
exploração do Povo Arara em troca de um mísero prato de comida e peças de roupas
usadas. Ali o autor apresentou algumas palavras coletadas pelo seringalista que
o Pajé Cícero e os demais Arara utilizam até hoje em seus processos
comunicativos nas aldeias e nas escolas, como: na’to/nató (anta), ameko (onça),
iuá/iwap (banana), mani (macaxeira), por exemplo, com variações nas grafias de
ontem e de hoje. Uma das feições de uma língua rara do planeta, o misterioso
Tupi Ramarama, que só permanece até hoje porque resultou de dinâmicas
transgressoras por parte da etnia Arara, conforme documentação de Edineia
Isidoro. Apesar dos riscos, falavam às escondidas sua língua, proibida e
desqualificada chamada de “gíria” nos barracões seringalistas.
Cícero
Arara mantinha muito forte a memória da época destes tempos. Foi possivelmente
em 1946 que encontrou Chiquito Arara no Seringal da Penha e o convidou para sua
maloca, nas proximidades do Igarapé Orquídea, marcando dessa forma um
importante papel no processo de realdeamento do seu Povo bem antes do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI) que só ocorreu em 1966.
Nesse
sentido, mesmo vivendo nos contextos adversos dos seringais Cícero Arara nunca
parou de trabalhar pelo retorno à vida coletiva. É possível inferir que eram
enormes os desafios da reorganização da tradição Ramarama, dado as situações inusitadas,
produzidas por um “outro” tão diferente, aparentemente tão forte e quase
invisível expresso por diferentes feições: seringalista, seringueiro,
fazendeiro, garimpeiro ou Estado brasileiro com práticas culturais hegemônicas
e diversas no que se refere à linguagem, alimentação, vestuário, lazer,
tratamento da saúde, religiosidade, objetos, armas, etc.
Este “outro” em suas diferentes manifestações
metafóricas e de complexas metonímias gerava, talvez, simultaneamente
sentimentos de atração e repulsão. Como produzir respostas em uma temporalidade
tão voraz e diferente? Penso principalmente nas doenças desconhecidas em que a
disputa também se dava de forma desproporcional com vistas à desmoralização das
curas tradicionais. Terreno fértil para a inserção das mentalidades
integracionistas e religiosas. Estas últimas foram constantemente repelidas
pelos Arara com o escudo da
espiritualidade da tradição.
E
nesta linha de raciocínio, avalio que Cícero Arara foi um expressivo representante
da simbologia de re-existência cultural Arara na contemporaneidade. Re-existência
no sentido pensado por Albán Achinte como um processo de emancipação resultante
das aprendizagens em momentos de ausências, tristezas e conflitos que pode viabilizar
outros arranjos para a vivência com o outro. Talvez uma aproximação também com
os inéditos-viavéis, possibilidades oriundas das situações-limite como apontam
as reflexões freireanas.
Inegavelmente,
Cícero foi uma referência fundamental para o Povo Arara em sua função de
liderança e de protetor por meio das atividades de Pajé. Uma pessoa admirada por
todos considerando as diversas narrativas existentes. Quantas vezes ouvi dos docentes
da etnia Arara episódios sobre sua atuação diante do sobrenatural traduzido nas
imagens maléficas de Oraxexe ou do Nabixon, suas intervenções espirituais
no dia a dia ou nas festas tradicionais - em ocasiões de caçada, estabelecia
comunicação com os seres por meio de assovios e assim assegurava a captura de animais
como o catete, por exemplo.
Betty
Mindlin, em um belo texto de 2016 discute a trajetória dos Karo e informa
dentre outros aspectos que Cicero foi um grande educador Pajé tanto entre os
Arara como entre os Gavião. Além de outras atividades, ensinava os iniciantes a
encarar os animais e estabelecer formas de comunicação com eles, um recurso
para compreender o intrincado labirinto que estabelece regras rígidas sobre o
permitido e o proibido nas relações com o sobrenatural até alcançar o estágio mais
avançado de formação: o saber da metamorfose por meio do couro dos
espíritos.
Neste
1º semestre de 2020, Cícero se foi, assim como milhares de pessoas do Brasil, mas
não apenas por causa de uma doença invisível, possivelmente a Covid-19, mas pelo
resultado direto de uma política genocida que tomou conta da saúde brasileira na
gestão Bolsonaro e que inexoravelmente impacta as aldeias brasileiras.
Todos
nós, não indígenas que estabelecemos relações de trabalho e amizade com as
populações originárias e em função disso, aprendemos neste convívio as lições
do direito à coexistência temos a obrigação de nos inquietar, evitar
conciliações duvidosas. Temos a obrigação de perceber, de denunciar a vulnerabilidade
extrema que ameaça as aldeias e isso exige ação, precisamos nos mexer, questionar
as estruturas globalizantes e assim construir saídas e contribuir com os Povos
Indígenas na luta pela vida.
E
é deste lugar, da docência na Licenciatura em Educação Básica Intercultural da
Universidade Federal de Rondônia que venho dizer a minha palavra, na
perspectiva defendida por Paulo Freire. Não podemos nos limitar às ações de
caridade, mas tensionar às estruturas para assegurar direitos efetivos e
justiça social. E é daqui que seguiremos com os nossos referenciais em dialogia
com os saberes da tradição indígena assumindo sem medo os desafios e armadilhas
do jogo intercultural, principalmente por meio das ações no âmbito da Lei
11.645/2008, normativa que tornou obrigatório o estudo da História e Culturas
Indígenas no currículo escolar.
Em
2016, a UNIR – Campus de Ji-Paraná, homenageou o Pajé Cícero no XVIII Seminário
de Educação (SED). Um momento de alegria e reconhecimento dos saberes
ameríndios e da presença originária na região central do estado de Rondônia.
Esta lembrança nos conforta agora, quando o sentimento é de tristeza e
desamparo, mas a memória ancestral de Cicero Xía Mot continuará mobilizando as
possibilidades necessárias para a abertura de caminhos a favor da continuidade
do Povo Arara Karo no mundo e no pensamento decolonial latino americano.
Penso
que muita coisa precisa ser pensada, falada e escrita sobre o Pajé Cícero,
sobretudo, na perspectiva do próprio povo. Como um dos primeiros moradores da
região do Rio Machado, Cícero Arara constitui uma referência e autoridade amazônica
que merece o prestígio dos grandes funerais das tradições indígenas, ritual
negado em função dos cuidados necessários ao combate da pandemia.
Sentiremos
falta do grande guia na tradicional festa anual do Wayo Akanã, a esperada Festa do Jacaré. Mas a memória cosmogônica
do homem valente e protetor segue no imaginário Arara e nas amizades
indigenistas. Uma memória contra-hegemônica que pode permitir múltiplos
processos de re-existência e refazimento da identidade Karo.
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