Terça-feira, 16 de outubro de 2007 - 11h49
A crescente mediocrização da sociedade contemporânea, discutida em coluna anterior, que suscitou o interesse dos leitores no sentido dum aprofundamento da questão, coincidiu com a leitura dum texto que vai ao encontro deste objetivo. Trata-se de artigo do filósofo francês Dany-Robert Dufour, professor da Universidade de Paris-VIII, articulista do Le Monde Diplomatique, autor de L’art de réduire les têtes, editora Denoël, Paris, 2005 (não sei se já existe uma tradução brasileira) que, confirmando as teses dos brasileiros Paulo Arantes e Chico de Oliveira, aponta a extinção do pensamento como ponto de chegada da ideologia neoliberal.
Pensando bem, não podia ser diferente: para manter a agenda destrutiva do capitalismo e manter-se no poder só mesmo imbecilizando o resto da humanidade. Um bom exemplo disso foi o encontro de cúpula convocado por Bush em Washington, reunindo 16 países para tratar de questões climático-ambientais, num manifesto desprezo pela Assembléia da ONU, que paralelamente acontecia em New York, na qual 150 países discutiam as mesmas questões. Os objetivos do encontro: desqualificar a assembléia da ONU e simultaneamente coagir os outros países a cumprir rigorosamente o protocolo de Kyoto, ameaçando-os com restrições econômicas, para garantir o padrão de consumo norte-americano, mantendo-se fora do acordo. É o Império da força e do arbítrio agindo abertamente contra a humanidade.
Voltando: para Dufour (e para qualquer pessoa que raciocine com relativo bom senso) estamos vivendo um tempo novo, o do capitalismo total, que não se interessa mais só pelos bens e sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo, de fato, deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendam a cultura – em sua diversidade – e a civilização - em suas conquistas.
O pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resulta num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, o bem ou o mal). É precisamente este traço que caracteriza a virada pós-moderna: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, empenha-se na “redução das cabeças”. Assistimos atualmente à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxista - e vemos instalar-se um novo, o “sujeito pós-moderno”.
O processo simultâneo de quebra do sujeito moderno e produção do pós-moderno foi extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu em 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido em 1900, estão em vias de desaparecer. Ambos pareciam protegidos das vicissitudes da história, bem instalados numa posição transcendental, constituindo referência para pensar o ser-no-mundo, tanto que muitos continuam a refletir com essas formas, contudo a potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história, e eles se tornam fluídos, diluem-se.
Mas essa morte programada do sujeito da modernidade é paralela à transformação do capitalismo nos últimos 20 anos em neoliberalismo, o qual se ocupa essencialmente em desfazer todas as formas que anteriormente prevaleciam, deixando de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas. E as trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral), mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias.
Hoje, a troca comercial colocada como valor supremo, des-simboliza o mundo.
Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se às pessoas que se livrem de todo estoque simbólico que garantia suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do mero valor monetário da mercadoria para que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental) possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. As pessoas não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, mas simplesmente se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria. A esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercial e, nesse caso, o preço a pagar por essa ampliação é a alteração da função simbólica. Mais: é a adaptação do indivíduo à mercadoria (e não o contrário).
Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica: a partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em suma, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.
Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo – como todas as ideologias do século XX (o comunismo, o nazismo) – também almeja a construção dum “homem novo”. Mas a vantagem dessa ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando diretamente ao homem através de programas de reeducação e de coerção. Ela conferiu um novo estatuto ao objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência, ou seja, que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real.
O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” simplesmente porque é mais fácil aceitá-lo do que a ele se opor, uma vez que parece agradável, desejado, como se não passasse de entretenimento (televisão, publicidade, cinema), não permitindo discernir a incrível violência que se dissimula por detrás dessas máscaras.
Voltando: a filosofia kantiana nasceu baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, constituindo uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito. Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio. Mas o que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadorias?
Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade”. Quer dizer, a dignidade – que não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente” – refere-se à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, pois é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção deliberadamente mentirosa da mercadoria.
Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais. De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas antiprodutivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em resumo, esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizóide”, o da pós-modernidade.
Como Foucault profetizara há 20 anos, o mundo tornou-se deleuziano. Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas hoje tudo indica que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.
Na des-simbolização, que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico, nem tampouco o sujeito neurótico; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações da própria identidade, um “sujeito flexível”, ou seja, o medíocre.
De forma que, filosoficamente, a mediocrização se explica. Jamais se justifica.
PUBLICADO EM:16/10/2007
* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.
Autora: Márcia Denser - Fonte: Congressoemfoco
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