Domingo, 14 de abril de 2013 - 18h01
Reginaldo Trindade1
“A guerra mais justa de todas é a guerra contra selvagens”, disse-o Theodore Roosevelt, no seu “Winning of the West” (“A Conquista do Oeste”, 1924), depois de ter visitado o Brasil e participado de verdadeira epopeia na selva amazônica. O ex-presidente americano, juntamente com o então Coronel Rondon, dois homens maiores que a vida, mapearam o Rio da Dúvida, depois rebatizado de Rio Roosevelt, nas terras do Povo Cinta Larga.
Já se passaram quase cem anos desde então. Os tempos, hoje, são outros; embora, não raro, algumas pessoas ainda insistam na ideia anacrônica e politicamente incorreta de que índio bom é índio morto.
De fato, os tempos mudaram mesmo.
Hoje existe uma Constituição que garante a todos – índios inclusive – a vida, liberdade e igualdade; além de fundar a República, dentre outros, na dignidade da pessoa humana.
Cuidando especificamente de índios, o diploma maior assegurou-lhes a organização social, os costumes, línguas, tradições, terras; enfim, todo um arcabouço de normas protetivas. Não satisfeito, o constituinte ainda delegou à União o dever de velar por todos esses interesses.
Tarefa nada singela, no entanto, é tentar dar um mínimo de concretude a essa quiçá utópica galeria de direitos.
A teoria distancia-se da prática tanto quanto o céu da Terra.
O mesmo curso d'água, desbravado pelo ex-presidente norte-americano e pelo marechal brasileiro, deu nome a uma das quatro terras indígenas do Povo Cinta Larga e também a um garimpo de diamantes que há mais de dez anos flagela a comunidade: o mundialmente famoso “Garimpo do Roosevelt”, que, curiosamente, não se localiza na Reserva Roosevelt, mas no Parque Indígena Aripuanã, e que tem posto à prova tudo que a Constituição e as leis do Brasil asseguram às populações indígenas.
Na última década, desde o primeiro “Plano Emergencial Cinta Larga”, o Governo tenta, sem sucesso, desincumbir-se minimamente de suas responsabilidades constitucionais/legais/morais. Passados tantos anos, com um passivo de dezenas de mortes e um povo à beira do genocídio, é desoladora a constatação de que os índios estão em situação visivelmente pior do que estavam quando da descoberta do “eldorado” em suas terras.
Os índios criaram, não sem razão, verdadeira ojeriza aos tais planos emergenciais. Que raio de emergência é essa que nunca chega? Na verdade, a prioridade da União tem variado ao sabor das mortes e dos incidentes, sobretudo internacionais, envolvendo a “Reserva Roosevelt”.
Em 2004, sob o influxo da morte de 29 garimpeiros em decorrência do conflito interétnico, inúmeras autoridades visitaram a região, criou-se uma força-tarefa por ordem direta do presidente da República, subscrita por ministros de diferentes pastas. A questão seria finalmente solucionada, assim pensaram muitos.
Não tardou a constatação de que o factoide governista fez, uma vez mais, degenerar a esperança dos índios para frustração. Referida força-tarefa sequer recebia os recursos, financeiros e humanos, necessários para o cumprimento de sua missão: coibir a exploração de minérios do território tradicional – missão, aliás, pendente de cumprimento; desafiando, ainda, o Estado brasileiro.
O Povo Cinta Larga luta, então, uma guerra hercúlea e injusta contra o preconceito, a intolerância e a má vontade/ineficiência do Governo Federal. O custo da felicidade tem sido alto, quase impagável para os índios.
Nos dias atuais, quando, felizmente, já se vão vários meses sem nenhuma morte violenta registrada (ou pelo menos não alardeada na grande imprensa), os problemas, que ainda são os mesmos, parecem invisíveis aos olhos da Nação. O Governo Federal, o Brasil se faz surdo aos clamores. O Povo Cinta Larga não existe. Resiste.
O Ministério Público Federal (MPF) tem procurado cumprir seu papel. Recomendações foram expedidas. Ações judiciais propostas. Mais de uma centena de reuniões feitas. Um sem número de ofícios remetidos. No entanto, nada disso surtirá grande efeito se não houver um governo efetivamente comprometido com o drama que aflige o sofrido grupo tradicional.
A Nação ainda está a dever muito (ou tudo) ao Povo Cinta Larga. Uma política pensada, organizadamente planejada e religiosamente executada urge.
As ações devem ser tais que tenham o condão de romper com o ciclo vicioso que tragou a comunidade, tornando os indígenas reféns da omissão governamental e à mercê da sanha das mais perversas pessoas, as quais querem, exclusivamente, lucrar às expensas da desgraça de todo o povo tradicional, espoliando-lhe as riquezas naturais.
O percurso será cheio de riscos, como são os caminhos que devem ser trilhados em busca da justiça, em prol das boas causas – aquelas que verdadeiramente valem a batalha.
1
Procurador da República. Responsável, no Estado de Rondônia, pela Defesa do Povo Cinta Larga. Especialista em Direito Constitucional.
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