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Delegados do povo ou donos do poder?


Na edição de maio de 1811 do "Correio Braziliense", Hipólito da Costa fez a seguinte profissão de fé: "Ninguém deseja mais do que nós as reformas; mas ninguém aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo". O grande jornalista teve o mérito de dizer sem eufemismos o que pensava. Hoje, quase dois séculos depois que tais palavras foram escritas, ninguém no meio político ousa dizer-se de direita ou antidemocrata, mas quase todos continuam plenamente convencidos de que o povo é, por natureza, incapaz de exercer a soberania. Esta pertence, por direito imemorial, àquele grupo que, por consolidado abuso de linguagem, insistimos em denominar "a elite". Admite-se, quando muito, que o povo escolha periodicamente os seus tutores ou curadores. Mas a esmagadora maioria destes, como ninguém ignora, exerce o encargo no seu próprio interesse e benefício. A Constituição Federal de 1988 teve o grande mérito de iniciar o processo de desmontagem desse esquema cínico e perverso, ao afirmar, logo no primeiro de seus artigos, que o povo pode e deve exercer o seu poder soberano diretamente, e não apenas pela eleição de mandatários. Em conseqüência, dispôs expressamente em seu artigo 14 que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, tanto quanto o sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular. Como era, porém, de esperar, esse mandamento constitucional foi desde logo interpretado como fórmula de retórica política, sem nenhum efeito prático. O povo pode continuar a eleger os seus autoproclamados representantes, mas dependerá sempre da autorização prévia destes para votar em plebiscitos e referendos. Foi para desfazer essa fraude oligárquica que a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu várias sugestões ao Congresso Nacional, prontamente transformadas em projetos de lei e propostas de emenda constitucional. Agora, com o anúncio pelo ministro Tarso Genro de que o governo federal apoiaria tais proposições, as reações negativas no Congresso não se fizeram esperar. Ouvidos por este jornal, quase todos os líderes de partidos disseram que retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de comandar a realização de plebiscitos e referendos redundaria em concentrar mais poderes na pessoa do chefe de Estado, criando, assim, o risco de institucionalizar o "chavismo". Sucede que, em ambos os projetos de lei originados na Ordem dos Advogados do Brasil -o de nº 4.718/2004, na Câmara, e o nº 1/2006, no Senado, este apresentado pelos eminentes senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon-, o presidente da República não tem poder de iniciativa nessa matéria. Os plebiscitos e referendos só poderão ser convocados por iniciativa do próprio povo ou de um terço dos deputados ou senadores (o que reforça sobremaneira o poder de fogo da minoria parlamentar contra o rolo compressor governamental). Insinuou-se, também, que, pelo sistema proposto, o povo poderia decidir diretamente em plebiscito a reeleição indefinida do presidente da República. Insinuação maliciosa e falsa, pois, em ambos os projetos de lei, ao contrário do que dispõe a vigente lei nº 9.709, de 1998, as matérias suscetíveis de decisão em plebiscitos são taxativamente enumeradas -e entre elas não consta a reeleição do chefe de Estado. Outros, ainda, declararam-se contrários ao "recall", tal como proposto, porque ele atingiria tão-só os parlamentares, poupando o presidente da República. Mais uma inverdade: na proposta de emenda constitucional nº 73/2005, em tramitação no Senado, a revogação popular de mandatos eletivos diz respeito não só aos membros do Congresso Nacional mas também ao presidente da República. Aliás, é sempre bom lembrar que esses institutos estão longe de ser novidades revolucionárias. A Suíça conhece e pratica com freqüência o referendo desde o século 15. O "recall" existe em 18 Estados da Federação norte-americana, em alguns deles há quase um século. Em suma, estamos diante de parlamentares que se pronunciam sobre propostas que não leram, com o mal disfarçado objetivo de preservar uma inconfessável usurpação da soberania popular. Fonte: O artigo “Delegados do povo ou donos do poder?” é de autoria do presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB, Fábio Konder Comparato

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