Terça-feira, 27 de novembro de 2007 - 23h40
Élcio Arruda (*)
Historicamente, o Direito Penal se assenta no binômio crime-castigo. Sua eficácia, enquanto veículo de controle social institucionalizado, sempre se atrelou à inevitabilidade da punição, graduada segundo a gravidade da infração e as condições pessoais do transgressor. Abstraído o pressuposto de sua efetividade, deságua-se no chamado "simbolismo", em que setores do sistema criminal passam a ostentar feição meramente decorativa (1). Opera-se, aí, à base de um discurso "real" de conteúdo "falso": é dizer, a incriminação é real, existe, há tipificação legal e sanção; nada obstante, tem-se a justiça criminal atuando de modo ilusório, falso, em campo movediço. Neste contexto, a militância no foro criminal tem desnudado, amiúde, situações bem afeiçoadas ao que se poderia rotular de "dramaturgia punitiva": (2) o sistema penal vende ilusões, ao invés de efetivamente cerrar fileiras no combate ao crime. Seja-nos permitido, neste espaço, trazer à baile três tópicos merecedores de reflexão a propósito, desvinculados entre si, mas com idêntico pano de fundo: a irracionalidade jurídica:
1) Pena de multa: impossibilidade de conversão em privação de liberdade. A Lei 9.268, de 1º/04/1996, ao conferir nova redação ao artigo 51 do Código Penal, vedou a conversão da pena de multa em privativa de liberdade, operação até então admitida. Dali em diante, inadimplida a sanção patrimonial, efetiva-se, unicamente, sua inscrição em dívida pública e, daí, descortina-se a possibilidade de cobrança no bojo de execução fiscal. Logo, se a multa é a única resposta estatal, não mais há espaço à atuação do Direito Penal, porquanto seu eixo é e sempre foi a possibilidade de restringir, limitar ou privar a liberdade do agente. Por isto, desde a modificação legislativa invocada, a maior parte das contravenções tipificadas no Decreto-lei 3.688/41 exatamente porque sancionadas somente com multa e um ponderável elenco de tipos do Código Penal em que a aplicação apenas de multa é admissível (e.g., artigos 135, 147, 150, 154, 156, 175, 180, § 3º, 286, 315, 320) -, na prática, foram atiradas para fora do Direito Penal: são meros ilícitos administrativos, apenas formalmente rotulados de "infrações penais". Não mais permitem, portanto, a atuação real, efetiva, do Direito Penal: o infrator se sujeita apenas, em tese, à execução fiscal. (3) Ao mesmo tempo, não se sujeitam à censura d'outros ramos do direito (não há, entre nós, um Código de Contra-Ordenações, tal qual Portugal (4) ou Alemanha (5). No dia-a-dia, acabam gerando a sensação de impunidade e, de través, fomentam o aumento da criminalidade rasteira, que atazana, profundamente, a vida social. Tem-se, nestes casos (infrações "penais" apenadas somente com multa), um discurso penal real (a ameaça, a prevaricação, a invasão de domicílio são "crimes"), todavia, de conteúdo falso: não permitem a atuação do que se entende por Direito Penal. No particular, a solução é simples: ou efetivamente se arremessa tais infrações penais para outros ramos do direito ou, então, reinstituiu-se o sistema antigo, ainda, vigorante noutras nações, em que, constatado o inadimplemento da pena de multa, tem lugar sua conversão em restrição de direitos (prestação de serviços) ou em privação de liberdade subsidiária, como se vê, v.g., dos Códigos da Alemanha (§43), França (art. 131-25), Espanha (art. 53), Portugal (art. 49) e Itália (art. 136 e Lei 689, de 24/11/81, artigos 102 e 103). A propósito, na doutrina internacional, há consenso quanto à imprescindibilidade da prisão subsidiária, se não adimplida a multa, sob pena de se metamorfosear em instrumento inócuo de política criminal; (6)
2) Responsabilidade penal da pessoa jurídica: Os anais da história do direito fornecem visões variadas a respeito da responsabilidade penal das associações de pessoas e/ou pessoas jurídicas. O direito romano, resolutamente, adotava o societas delinquere no potest. A seu turno, o direito germânico medieval, à símile do esboço de Direito Penal dos tempos pré-históricos, tolerava a aplicação de sanções penais a agrupamentos de pessoas (família, clã), porque integravam um grupo orgânico e indivisível. (7) A evolução da dogmática penal, nada obstante, consagrou o crime como produto exclusivo do homem. Somente ele, dotado de personalidade e vontade própria, ostenta aptidão a protagonizar condutas passíveis de censura penal: nullum crimen sine conducta. (8) Nele, unicamente, é possível se enxergar culpabilidade. A pessoa jurídica é mera ficção, inexiste por si e, portanto, sozinha, carece de aptidão à prática de crimes. Por detrás, há, sempre e sempre, o substrato humano, a que, então, há de se voltar a atuação punitiva. A noção privatística de pessoa jurídica é insusceptível de transposição, sem reparos, para o campo do Direito Penal: lá, opera-se com reflexos patrimoniais e correlatos, enquanto, cá, com a liberdade, apanágio do homem. De tal sorte, em campos tão díspares, é impossível se operar com parâmetros análogos: a pretensa "transfusão de sangue" do direito civil para o penal, há muito ensaiada por Binding, revelou-se inexeqüível, mercê repita-se do marcante diferencial inerente à relação punitiva. (9) A realidade é inarredável. Nesta linha, a denominada teoria da ficção ou organicista, opondo-se à da realidade, foi concebida pra operar no campo das relações administrativas/patrimoniais/não na órbita penal. O conceito de conduta "supra-individual" é inconciliável ao direito de punir: urge, necessariamente, conectar o fato ao homem, com as regras de imputação correlatas. "Solo el hombre y el hacer y omitir del hombre som punibles. Existieron hace tiempo, penas y procesos contra los animales, pero ya han desaparecido", na precisa lição de Mezger (10) Efetivamente, o eixo do Direito Penal é a natureza de sua resposta, forma suprema de coação estatal, a pena: ameaça de restrição ou privação de liberdade, atributo exclusivo do homem. Fora daí, não se tem "pena", não se tem "Direito Penal": tem-se, talvez, outra coisa, outro segmento do direito, não "Direito Penal". Não há espaço à flexibilização, sob pena de se desaguar na teratologia: um "semi-Direito Penal". Neste contexto, cogita-se dum direito intermediário, situado entre o público e privado, entre o Direito Penal e o contravencional/administrativo, etiquetado direito de intervenção: desprovido das garantias do Direito Penal clássico e, em contrapartida, munido de respostas menos intensas. Não se trata de Direito Penal (11) A "punição" criminal da pessoa jurídica pode até ser real, decorrer da lei; no fundo, contudo, é falaciosa, inexeqüível, além de, não raro, transmudar-se em passaporte à alforria de quem a gere ou administra. Induvidosamente, há premência da sociedade moderna em eficazmente arrostar a criminalidade implementada sob o manto de entes fictos, notadamente envolvendo o meio-ambiente, a economia, o sistema financeiro, a administração pública. Reside, aí, quiçá, o grande desafio do terceiro milênio para o Direito Penal. Seu adequado enfrentamento, porém, não justifica a desnaturação da conquista forjadas ao longo de séculos. A bem da verdade, há mecanismos viáveis à consecução do desiderato, penalmente conciliáveis à preservação do núcleo intangível do Direito Penal (12). Basta, para tanto, estender as penas/conseqüências acessórias aos entes jurídicos, dotados de patrimônios autônomos, utilizados pelo infrator como meio de prática de crimes, mediante confisco de bens, suspensão de atividades, dissolução, proibição de contratar com o serviço público etc. Neste sentido, dispõem os Códigos Penais da Espanha (art. 129) e da França (art. 131-39), à símile da legislação da Itália (Decreto Legislativo 231, de 08-06-2001). Os dispositivos evocados, sob óptica técnica, não consagram a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, mas, sim, a possibilidade de a lei penal alcançá-las, se empregadas pelos agentes como instrumentos ao cometimento de ilícitos: é uma espécie de confisco ampliado, sem a necessidade de atividade empresarial, em si, ostentar foros de ilicitude. A eventual condenação é imposta à pessoa, com reflexos no ente inanimado utilizado para o ilícito;
3) O "crime" de posse de droga para uso: A lei 11.343-06 (nova lei antidrogas), para as hipóteses de posse de droga destinada a consumo pessoal, a título de resposta penal, prevê as "seguintes penas: I advertência sobre os efeitos das drogas; II prestação de serviço à comunidade; III medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo" (art. 28). A "advertência" remete à medida sócio-educativa correlata contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90, art. 115). (13) A "prestação de serviços, originariamente substitutiva da pena privativa de liberdade, consiste em tarefas gratuitas realizadas pelo agente em entidades públicas ou congêneres (ACP, art. 46). Já a "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo", guarda alguma semelhança à limitação de fim de semana, igualmente prevista no Código Penal, artigo 48. Salvo a advertência, as "sanções" têm duração de cinco meses e, em caso de reincidência, poderão se estender por até 10 meses. Para "garantia do cumprimento das medidas educativas" a que injustificadamente se recusar o agente, poderá o juízo submetê-lo, sucessivamente, à "admoestação verbal
" e "multa" (art. 128, § 6º). No âmbito do Juizado Especial Criminal, seara reservada à tramitação da infração em exame (art. 48, § 1º), quer ao ensejo de eventual transação penal, quer no contexto de eventual veredicto condenatório, as únicas "penas" passíveis de inflição são aquelas já enunciadas (advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a curso ou programa). Enfim, neste terreno, em hipótese alguma, o infrator poderá sujeitar à pena privativa de liberdade. Aliás, já na fase pré-processual, sua detenção é absolutamente vedada, mesmo não assumindo compromisso de comparecer ao Juizado Especial Criminal 9art. 48, § 3º). Nesta conjuntura, não se tem Direito Penal atuando. Há outro segmento da órbita jurídica em operação, não o direito punitivo, à míngua da gênese que o caracteriza. Na realidade, conquanto a nova legislação tenha persistido em conferir vestimenta de "crime" à conduta de posse de droga destinada ao uso, na essência, agora, engendrou-se infração estacionada à margem do Direito Penal: só a etiqueta é de "crime".
A novel disciplina heterodoxa, ao instituir um simbolismo temerário, olvidou uma realidade inexorável: a outorga de carta branca ao usuário e/ou dependente, financiadores do tráfico, significa o incremento da atividade, com todos os consectários daí decorrentes. (14)
Nem o discurso elaborado, nem razões de cunho metajurídico se prestam a ofuscar, nas três situações exemplificativamente evocadas, o desvirtuamento do que se entende por Direito Penal legítimo. A "ilusão da justiça" de que fala Kelsen, aqui, parece aflorar vividamente. (15)
E ao operador jurídico se impõe diuturna vigília, tal qual uma sentinela, com o escopo de salvaguardar o direito criminal de desvios. É inadmissível se transmute num autônomo, palmilhando as "trilhas batidas e cômodas da jurisprudência constante" (16) ou entoando, às cegas, o refrão da "doutrina da moda". Por igual, é intolerável se converta em crítico estéril, desmantelador de instituições, sem propor soluções viáveis. Nem á aceitável, pior ainda, pretenda legitimar o ilegítimo ou deslegitimar o legítimo. O compromisso do penalista, a ser reafirmado neste terceiro milênio, há de perseverar com o Estado de Direito: nada mais.
Notas: __________
(1) HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Tradução espanhola de Francisco Muñoz Conde e Luís Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984, p. 96.
(2) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. "Globalização e sistema penal na América Latina: da segurança nacional à urbana" Discursos sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, v. 2, n. 4, pp. 26-36, jul./dez. 1997.
(3) Na maior parte dos casos, comporta deflagração, porquanto o montante da dívida fiscal de até R$ 10.000,00 (dez mil reais) dispensa a cobrança judicial (Lei 10.522/02, artigo 20, com a redação da Lei 11.033/04), excetuadas "as execuções relativas à contribuição para o fundo de Garantia do Tempo de Serviço" (idem, § 3º). A propósito, ato infralegal (Portaria 49, de 1º-04-2004, do ministro da Fazenda), em princípio, carece de aptidão a excluir a multa criminal da disciplina ordinária estatuída por lei.
(4) DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, 144-147, 1.
(5) ROXIN, Claus. Tem Futuro o Direito Penal? Revista dos Tribunais, v. 790, ago. 2001, pp.459-474.
(6) JESCHECK, Hans-Heinrich. "Rascos fundamentales del movimiento internacional de reforma del derecho penal", Ciência Jurídica, v. 3, n. 26, pp. 356-367, mar./abr. 1989 (Fórum Internacional de Direito Penal Comparado 1989: Salvador).
(7) SOLER, Sebastian. Derecho Penal Argentino, 5ª ed., Buenos Aires: TEA, 1992, p. 62, t. 1; ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto Penale: Parte Feneral. Atualização de Luigi Conti. 16ª ed., Miliano: Giuffrè, 2003, p. 527.
(8) FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter Von. Tratado de Derecho Penal Común Vigente en Alemania. Tradução espanhola da 9ª ed. Alemã/1825 por Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, pp. 54-58.
(9) HUNGRIA, Nélson. "Os Pandetistas do Direito Penal", Revista Forense, v. 118, jul./ago. 1948, pp. 5-10.
(10) MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Tradução espanhola da 6ª edição alemã [1955]. Buenos Aires: Valleta Ediciones SRL, 2004, t. 1, p. 52.
(11) ROXIM, Claus. Derecho Penal: Parte Feneral. Tradução espanhola da 2ª ed. Alemã por Diego Manuel Luzón, Miguel Díaz e Javier de Vicente. Madri: Civitas, 2006, t. 1. pp. 60-62 e 258-259.
(12) JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal Parte Feneral. Tradução espanhola de Miguel Olmedo Cardenete. 5ª ed., Granada: Comares, 2003, pp. 242-248.
(13) "A advertência consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada".
(14) GRANADO, Marcell. Nova Lei Antidrogas. Niterói: Impetus, 2006, p. 158.
(15) KELSEN, Hans. A Ilusão da Justiça. Tradução portuguesa de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
(16) COSTA JÚNIOR, Paulo José da. "O Papel da Jurisprudência", Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 8.
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(*) Élcio Arruda: professor de Direito Penal e de Processo Penal, mestre em Direito e juiz federal.
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