Segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008 - 22h39
ENTRE O PÓ DOS ESCOMBROS DO MERCADO MUNICIPAL
E AS CINZAS DO CARNAVAL
Grupo Cidade, Cultura e Inclusão – GCCI *
Há exatamente um ano Ariel Argobe publicou um texto intitulado “Por que não vou ao Baile Municipal, de máscara”, elencando as razões do despropósito de um baile, custeado com dinheiro público, mas voltado para um seleto público de convidados. À época, o poeta Antônio Serpa do Amaral Filho, sob o pseudônimo de Pierrot Apaixonado, contrapôs-se ao texto, defendendo o Baile Municipal e (principalmente) seu realizador.
Nesse então, havia apenas três meses que Ariel fora exonerado do cargo de Presidente da Fundação Iaripuna, instituição responsável pela pasta da cultura do município. A resposta do Pierrot Apaixonado explorou exatamente esse fato, tentando diminuir o valor do texto de Argobe, ao sugerir que tudo não passava de dor-de-cotovelo daquele que fora substituído no comando da Fundação. Foi então que o Grupo Cidade, Cultura e Inclusão, do qual faz parte Ariel e cujos membros tiveram papel fundamental na concepção, criação e instalação da Iaripuna, veio a público para esclarecer que na verdade a questão não era tão simples, uma vez que envolvia – e envolve – fundamentos e práticas distintas na condução da política cultural municipal, principalmente no tocante ao patrimônio cultural, material e imaterial.
No último dia 25, realizou-se, com o mesmo perfil, a segunda edição do Baile. Continuamos vendo-o como um grande equívoco da atual administração municipal. Como também foi um equívoco, só que de proporções imensuráveis, a destruição do Bar do Zizi, ícone da resistência do antigo Mercado Público, tema tão bem abordado por Antônio Serpa do Amaral Filho no artigo recentemente publicado com o título “Morte do Mercado – o solo mais fúnebre do maestro Júlio Yriarte!”.
No que diz respeito ao patrimônio cultural material, área para a qual há décadas a população portovelhense espera um tratamento à altura, causa vergonha para nós, membros do Grupo Cidade, Cultura e Inclusão, em sua maioria filiada, militante ou simpatizante do Partido dos Trabalhadores, a inépcia da Divisão do Patrimônio Cultural da Fundação Iaripuna, comandada inclusive por um professor de história filiado ao Partido dos Trabalhadores.
O atual momento histórico que vive a nossa cidade, com a perspectiva da construção de grandes obras, enseja de seus cidadãos especial atenção no acompanhamento desse crescimento que pode, novamente, não se traduzir em desenvolvimento. Uma nova leva de migrantes está a caminho e, se nós não nos prepararmos para recebê-los, com a cordialidade habitual, mas sem a submissão de colonizados, assistiremos inertes, mais uma vez, à substituição das marcas da nossa história por novos e falsos símbolos inauguradores de uma nova estética, emblema de uma nova fase histórica. Essa é uma prática comum a todos os colonizadores. Triste sina a dos karipunas, dos karitianas, dos caboclos, dos beiradeiros, dos guaporeanos...
Para pôr abaixo o Bar do Zizi técnicos “progressistas” usaram o “argumento” de que o prédio era assimétrico. No antigo Mercado do Cai n’Água, certamente os atuais gestores, com a sensibilidade de que já deram provas, não enxergarão ali algo valioso o suficiente para ser restaurado, revitalizado e preservado, por exemplo, para funcionar como a planejada estação hidroviária. Assim sendo, é bom nos despedirmos daquela que será a próxima vítima da famigerada nova plástica urbana. Vamos dar adeus ao que sobrou da antiga serraria Tiradentes, localizada no Cai n’Água, símbolo de uma era. Da mesma forma, em substituição à igrejinha de Santo Antônio, cuja remoção está prevista nas obras da hidrelétrica, certamente algum técnico “progressista” e analfabeto estético proporá – e os nossos dirigentes concordarão – a construção de uma nova e enorme catedral, que simbolizará os novos tempos da metrópole que se aproxima. Afinal, o velho deve abrir passagem para o progresso, para a modernidade... Abaixo os saudosistas e sua memória... Enfim, parece-nos que, de forma surpreendente, os fundamentos do falido Movimento Madeirista (alguém ainda se lembra?) estão sendo colocados em prática.
Na contramão da História recente do Brasil, quando as cidades que detêm um significativo patrimônio cultural têm revitalizado espaços, adequando-os para atividades culturais e turísticas, aqui, em Porto Velho, seguimos “embelezados” com o novo, com o moderno, rasurando a nossa história, a nossa memória e nossa identidade. Vide a praça Jônatas Pedrosa, repaginada recentemente. Esperemos para ver a nova praça Aluísio Ferreira, uma outra praça com o mesmo nome. A isto não podemos dar o nome de revitalização de espaços históricos. Mas sim de destruição dos vestígios da história e da memória local, por mais bonita que fique a nova praça.
O centro histórico de Porto Velho, do qual faz parte a inigualável Madeira-Mamoré, precisa ser demarcado e reordenado no verdadeiro viés da revitalização e preservação. Com a construção de novos e modernos centros comerciais, a tendência é a marginalização do centro antigo da cidade, caso ele não seja ressignificado para fins culturais e turísticos. As fachadas da avenida Sete de Setembro precisam ser descortinadas, a margem urbana do rio Madeira, no complexo da Ferrovia, clama por um tratamento digno para ser disponibilizada aos moradores e visitantes da cidade. Enfim: há muito que fazer nessa área. Mas, como restaurar e revitalizar custa mais caro do que construir, não é descabida a nossa preocupação.
No âmbito do patrimônio cultural imaterial não é menos grave a situação que enfrentamos: forças conservadoras, reacionárias, ligadas ao Governo do Estado de Rondônia, fizeram, de forma oportunista, hostil e conspiradora, aprovar, às vésperas do Carnaval de 2008, uma lei que justamente penaliza as agremiações culturais populares. Ao criar mais uma taxa a ser paga pelas entidades carnavalescas, a medida tem o claro objetivo de inibir as manifestações culturais populares. Enquanto, no âmbito do Governo Federal e de muitos governos estaduais e municipais, implementam-se e aprimoram-se as leis de incentivo à cultura, aqui se faz um percurso exatamente inverso: desarticulam-se as manifestações culturais populares; enquadram-se os produtores culturais; assalta-se da municipalidade o direito à gestão do carnaval, repassando esta atribuição à Polícia Militar do Estado, dando-lhe amplos poderes de condução do carnaval, inclusive impondo horário e trajeto, em um claro modelo ditatorial. E a Fundação Cultural do Município, enfraquecida, a tudo assiste inerte e alheia, como se o tema não lhe dissesse respeito.
Há cerca de um ano escrevíamos sobre os riscos que correm nossos blocos carnavalescos populares, cuja importância social, cultural e também turística e econômica não é percebida por nossos governantes na sua exata dimensão como ocorre em outros cantos do Brasil. Parece-nos que a nós, que vivemos em uma cidade onde as opções de lazer são extremamente limitadas, mesmo para as classes média e alta, os aparelhos ideológicos do Estado gostariam de destinar às camadas populares apenas a opção de ver televisão. Nossos blocos de carnaval, enquanto entidades de alcance popular, de acesso democrático e com um repertório musical tradicional, são vistos pela oficialidade estadual como algo pernicioso, pecaminoso. São, na verdade, agrupamentos que insistem em existir como genuínos exemplares da memória e história local – ainda que contra a vontade de muitos poderosos, que, incapazes de aprimorar os mecanismos de controle e segurança, optaram pela extinção dessas manifestações. Não é absurda a possibilidade de vermos desaparecer das ruas e avenidas de Porto Velho todo esse patrimônio imaterial. Concepções e posturas preconceituosas de alguns setores oficiais, opções pelos eventos elitistas, messiânicos e excludentes e a histórica falta de compromisso dos nossos gestores públicos (muitos deles alienígenas) para com as manifestações populares são, sem dúvida alguma, uma ameaça à continuidade das nossas culturas populares, em particular o nosso carnaval de rua.
Se por um lado a municipalidade equivoca-se em “um rompante de pragmatismo exacerbado”, como muito bem escreveu o poeta Basinho, por outro lado o Governo do Estado avança com medidas inibidoras das manifestações culturais populares. Como vemos, no âmbito da cultura, é no mínimo preocupante o contexto em que vivemos. É preciso que nós, portovelhenses, naturais ou não, de todos os segmentos, quadrantes e matizes partidários, da direita e da esquerda, provoquemos um amplo debate sobre esse processo ameaçador de nossa memória, de nossa identidade, de nossa cultura. Nós, simpatizantes, militantes e filiados ao Partido dos Trabalhadores, estamos articulando a criação do Setorial de Cultura do Partido, espaço de onde pretendemos interferir, contribuir na condução das políticas públicas para a cultura no âmbito do município. Ainda não é tarde: com o excelente trabalho desenvolvido pela prefeitura nas outras áreas, certamente Roberto Sobrinho será reeleito. Esperamos que outros segmentos da sociedade também se organizem. Caso contrário, já sabemos o desfecho dessa história: o novo substituirá o velho e os nossos concidadãos que não tiveram acesso aos fundamentos básicos da Antropologia continuarão a repetir o clichê “Porto Velho não tem identidade cultural” (sic).
* Coletivo de artistas e intelectuais empenhados na defesa intransigente da cultura local. Contato: ariel@unir.br
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