Segunda-feira, 12 de junho de 2017 - 19h28
LUIZ LEITE DE OLIVEIRA (*)
O que restou daquele lugar hoje perdido no extremo-oeste de Rondônia, na confluência de três rios, dois que se penetram, transformados em um e depois da luta dissolvem, se deságuam como um espetáculo sobrenatural, mágico, possível apenas na imensidão verde?
O que restou daquele lugar próximo à fronteira Brasil-Bolívia, entre florestas rasgadas por rios que parecem começar juntos, região do Alto Madeira, um planalto e planície, mesmo assim, imponentes nesta parte da Amazônia?
Ali começa propriamente o rio Madeira. É onde se agridem o transparente rio Beni e o barrento Mamoré. Entre águas azuis transparentes e barrentas, eles se batem, se juntam, se amam. Sua integração é tão difícil como água e gordura, enfim, água e vinho.
Misturam-se. Fica a cor da madeira que desce rio abaixo, e na descida das águas, alguns troncos de árvores boiados, flutuantes, se destacam sobre essas jangadas naturais de pássaros e, esses coloridos, brancos, como um rio que lembra a valsa de cisnes e, naquele rio de cor de ouro, onde se encontram garças e mergulhões, parece despedir-se de Vila Murtinho.
Naquele lugar, daquela margem entre os rios, tudo parece ser espécie de um reino encantado, surpreendente. Passam por lá os trilhos na selva. À beira do barranco vê uma cidade vazia, aliás vila fantasma, por onde passava o trem da Madeira-Mamoré.
Casas abandonadas, ainda alguns tapiris no barranco e, destacando-se a igrejinha, um art decó estilo francês, projetando-se solitária entre os rios e o trilho, perto da imensidão da selva que não quer abandonar essa paisagem.
Até há pouco tempo resistia a casa do chefe da estação. A moderna estação ficou deteriorada, em ruínas, a menos de 100 metros dos rios.
Da Madeira Mamoré, nessa última fronteira, ainda existe a penúltima estação ferroviária antes de chegar a Guajará-Mirim, a 366 quilômetros de distância do marco das coordenadas geográficas da cidade de Porto Velho, planejada e implantada, entre 1907 e 1912.
A paisagem de Vila Murtinho é simplesmente encantadora, um cartão postal perdido na floresta entre rios. Mas está esquecida, com jeito de cidade fantasma. Seus prédios estão abandonados. Além da igrejinha art decó no puro estilo francês [projeto importado, por Don Xavier Rei, o bispo, nos anos 1930-1940], resistem os trilhos da via permanente, a antiga estação ferroviária da Madeira-Mamoré, a penúltima antes de chegar a Guajará-Mirim. As pessoas não quiseram ficar ali, abandonaram o lugar. Com certeza, hoje, ficou a vila encantada pela varinha “condão” mágica (ou diabólica). Desapareceu depois de ser tocada, aliás, tragada pelas águas das represas das hidrelétricas Jirau e Santo Antônio.
Esquecidas ou encantadas
Algumas pessoas não quiseram sair dali, quando passou o último trem. Em Vila Murtinho, se elas ficassem seriam esquecidas, ou encantadas junto com a vila, como dizia a benzedeira dona Profetiza.
No passado, a vila fora importante na condição de entreposto comercial, principalmente de borracha, balata, sorva e castanha. Mas ele agonizou, quando o destacamento militar suspendia para sempre o tráfego da ferrovia por vila Murtinho.
Não houve saída. Ou o povo saía, ou ficava esquecido. E as pessoas perambulavam rumo à estação, olhos marejados, na despedida dos que ficavam. Ninguém queria ver seus rostos de lágrimas, desesperados.
Aquela mulher embarcava o filho, ela ficava, despedia-se, como se nunca mais fosse vê-lo, e punha-o em fuga no último trem do lastro. Ela, na plataforma da ferroviária da vila, o trem desaparecia no horizonte, o transporte de ferro seguia, dava adeus com seu apito, desaparecendo conforme avançava na noite escura.
Anoitecia. Naquele 9 de julho, a máquina a vapor fumegava, esfumaçava como em fúria, e continuava na retidão da via férrea, não parava soltar seus apitos desesperados naquela solidão. Tudo parecia fantasma, o trem era fantasma, e a vila que ficou também!
Parecia haver pressa para chegar a Porto Velho. O trem deveria chegar à Capital às 6h da manhã no dia seguinte, 10 de julho de 1972. Outras locomotivas o esperavam para o último apito da Madeira-Mamoré.
Por ordem militar, não mais trafegaria. Era ordem do regime de exceção vigente no Brasil.
A máquina Coronel Church, nº 12, ficou também alagada em 2014, quando a fúria das águas destruiu a orla do Madeira. Talvez, essa locomotiva a vapor seja a mais famosa do mundo. De modo geral, o acervo da EFMM vem sendo saqueado e destruído pelo Município de Porto Velho nas derradeiras duas décadas.
Antes, passou lá por vila Murtinho, no sentido contrário, o último trem daquele dia. Outro cargueiro/passageiro seguiu rumo ao extremo-oeste, no Alto Madeira, para a última cachoeira e corredeira de Guajará-açu. Pararia de vez na estação de estilo inglês de Guajará-Mirim, na margem próxima às ilhas situadas entre o porto daquela cidade e Guayaramerin.
Malvados de A até Z
Com certeza, a vila ficou encantada, depois de ser tocada, aliás tragada pela varinha de condão mágica (ou diabólica). E desapareceu, mas quem ainda estava por lá em 2014 testemunhou as consequências do tsunami do Madeira.
Tal como num conto de fadas, aquela vila cercada de floresta, à beira de um rio ressurgiu, agora não mais na exuberância original e ao mesmo tempo na simplicidade. Voltou a ser vista depois que uma bruxa malvada e invejosa despejou sobre ela muita água das represas Jirau e Santo Antônio.
O tsunami invadiu-a, deixando-a completamente submersa. Tudo ficou isolado, invadido pelas águas de um rio em fúria, engasgado. E assim também ficariam as regiões de Porto Velho e Guajará-Mirim.
Na vila, a igreja mostrava apenas o alto cume de sua torre pontiaguda. Suas arestas afiadas desafiavam a profundeza do dilúvio.
Inundando a planície inteira e destruindo o ecossistema, as águas levaram tudo e aos ribeirinhos restou o isolamento. A bruxa, encarnada dos pés à cabeça em homens malvados da classe política nominada de A até Z, providenciou com impressionante rapidez e avidez a adulteração da própria Constituição Estadual de Rondônia, permitindo sorrateiramente a construção das hidrelétricas.
E o crime ambiental consolidou-se para o deslumbre de empresários do sudeste, os verdadeiros donos da maior carga energética produzida por essas usinas. Eles todos amparados pela permissividade de políticos de Rondônia e uma presidenta da República que não hesitou em determinar as obras e espalhar a notícia de que o dilúvio “era consequência do degelo dos Andes”.
Em 2014 bastou que o remanso se elevasse com a abertura das comportas desses monstros elétricos que represaram as águas do rio, para em seguida principiar a seca que fez reaparecer a vila, porém, enlameada, cheia de areia, agora fantasma.
Não mais como antes, a paisagem foi caracterizada por prédios abandonados. Tudo ficou ultrajado. Governantes e políticos atuais desse País, acham que “descobriram a roda” ao não apresentarem outro projeto, senão a instalação de hidrelétricas na Amazônia.
O modelo do absurdo progresso a qualquer custo levou seus efeitos devastadores à biodiversidade, como nunca antes ocorrera por aqui, fazendo submergir a mais notável ferrovia a vapor do mundo. Um golpe bem pior do que aquele ocorrido no regime militar.
Atualmente, a destruição na Amazônia não se dá apenas com motosserras, que no passado eliminou enormes áreas florestais, algumas delas ocupadas por pastagens e hoje por soja.
Ela parece romântica, um pouco mais sofisticada, porém, violenta e despudoradamente comandada pela bruxa sem-vergonha, ou algum bruxo barbudo em desabalada fuga da Lava Jato.
E o resultado do represamento das águas e do direcionamento das volumosas e potentes turbinas, dá-nos impressão do disparo de arma mortífera, impiedosa, contra vilas, cidades, palafitas, gente cabocla, ribeirinha e índia. Matam a biodiversidade, agridem rios, igarapés, bichos, peixes, matas e várzeas.
Na região das 20 cachoeiras, entre, capital do Estado e o município de Guajará-Mirim, fizeram explodir imensuráveis pedras e corredeiras. No lugar delas, o remanso, como num prato, espalhou-se por quilômetros.
A locomotiva alemã Hildegard Nunes (1938) ficou submersa na estação ferroviária de Guajará-Mirim, em frente ao museu. Tristemente semelhante ao trabalhador febril na reta do Abunã, essa máquina delirava na direção do infinito, como quem quer sair sozinha da situação, sem socorro, sem os trilhos, com o desprezo de um povo f r i o, que não quer ter memória. Pior, não sabe amar. Ela ali permaneceu, cercada de peças ferroviárias enlameadas, semi destruídas.
Centro de Porto Velho, em 1972: dia do último apito, duas praças — Jônathas Pedrosas e Praça Rondon — no estilo da igrejinha de Vila Murtinho. Ambas vêm sendo desfiguradas pelos inconsequentes prefeitos migrantes, que vacilam e destroem nossa história.
O empreendimento falhou
Não foi “a fio d’água”, conforme o anunciado pelos consórcios construtores. E assim, o povo foi ludibriado por políticos nutridos pelo dinheiro sujo da poderosa empreiteira que comprou o silêncio de centrais sindicais, deles próprios, políticos, e governos. Todos eles, a peso de propina, conforme vem denunciando agora a imprensa nacional.
Silenciar é terrível. Pelo menos aqui nesta Porto Velho que se vergou às mirabolantes promessas de empregos, pouco ou nada se falou a respeito. Anestesiaram a população.
Entendo que todos nós temos que colaborar com o restauro da igreja da outrora bela Vila Murtinho e da orla danificada da Estrada de Madeira-Mamoré.
Basta de lavagem de dinheiro em seu nome! Não se iludam com mais um canto da sereia, a exemplo desse anunciado na forma de projeto bandido, parido entre as paredes suspeitas do Município e do Governo de Rondônia.
A administração Hildon Chaves “importaria” as docas de Belém, apoiado pelo Iphan e pelo SPU, afrontando à lei e a decisão do Tribunal Regional Federal.
Esse atentado contra a legislação do patrimônio histórico da EFMM engendra tenebrosa manobra, com acintoso desrespeito à ordem para a suspensão imediata do contrato de cessão de uso gratuito entre o Município de Porto Velho, retornando a administração do complexo para a União.
Quem deve se posicionar urgentemente, exigindo o fim da fraude e o cumprimento da lei é o Ministério Público Federal.
Enquanto isso, dá-lhe festas “de Deus e do diabo” no pátio transformado em piseiro! Festas promovidas sob o manto da Bandeira do Município.
Precisamos de J u s t i ç a, como nunca antes neste pedaço da Amazônia e neste País!
Justiça que pressupõe acompanhar e cobrar os consórcios hidrelétricos aqui do rio Madeira, não aqueles do escritor Dam Brown, autor do livro O Consórcio, ficção não lançado no Brasil.
A ficção, o surreal, o novo banditismo político de Rondônia assemelham-se. Tocaram hidrelétricas a ferro e a fogo, no ritmo da maciota sindical, ao tempo em que até movimentos sociais se locupletaram na grana maldita da empreiteira-mor.
Se antes criticávamos republiquetas que abriam portas a negócios escusos, hoje não podemos nos excluir de exercermos, em muitos aspectos, o papel de republiqueta sul-americana sob ditadura.
O estrago na Vila Murtinho é capítulo de lágrimas na história pós-erradicação da Madeira-Mamoré. É crime hediondo, sim, e desta maneira precisa ser investigado para que, ao menos se respeitem famílias de moradores na vila e no seu entorno durante a epopeia do trem.
(*) Nascido na região, o autor é arquiteto, pesquisador do patrimônio histórico amazônico, diretor do premiado filme Trilhos e sonhos-Dreams and tracks, e presidente da Associação de Preservação do Patrimônio Histórico e Amigos da Madeira-Mamoré (Amma).
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