Por Heitor Alves Soares * “Não pode mais haver legenda de aluguel ou de partido apenas como suporte para assunção do cargo político”
O exercício do poder político na atualidade é feito por intermédio de representantes eleitos na forma prevista na Constituição da República. Nem sempre foi assim. Em tempos remotos, o exercício dessa prerrogativa era atribuído aos próprios cidadãos que participavam das decisões sobre os rumos da Nação, embora a expressão cidadãos não contemplasse todos os integrantes da comunidade política. No entanto, nas sociedades modernas, ante a complexidade das tarefas atribuídas ao Estado e o crescente aumento populacional, surge a necessidade de estabelecer um grupo de pessoas que representasse os interesses de todos. Todos sabem que os interesses dentro uma sociedade são os mais diversos e antagônicos entre si. Aliás, a gênese da democracia pode se creditar à existência desses interesses antagônicos, que precisavam ser resolvidos de forma pacífica, sem o uso da força física, resultando daí a idéia de que a deliberação adotada pela maioria seria acatada pela minoria, um dos princípios fundamentais da democracia. Desse antagonismo, inerente à sociedade, também floresce a ideia de partidos que preconizavam a manutenção das coisas como elas estavam (conservadores) e outros que sustentavam a renovação, a mudança (liberais), embora ainda sem essa denominação.
A origem remota dos partidos políticos presume-se tenha início na junção de pessoas que tivesse uma ideologia comum, um conjunto de idéias, ações e plataformas sobre o destino de determinada sociedade política. Para a maioria dos sociólogos, os partidos políticos surgiram na Inglaterra, por volta de 1680, os então nominados Tories e os Whigs, que mais tarde se tornariam os partidos Conservador e Liberal. Na França, argumenta-se que os primeiros partidos ocorreram no período da Revolução Francesa e constituíam-se de associações, clubes e agremiações, sendo o mais conhecido deles a Sociedade dos Amigos da Constituição, que mais tarde ficou conhecido por Clube dos Jacobinos. Nos Estados Unidos, costuma-se referir à Convenção da Filadélfia como marco inicial do Partido Democrático.
Nos países de tradição histórica, a exemplo dos acima referidos, há basicamente dois partidos: o bipartidarismo. Em outros, há vários partidos, a exemplo do Brasil atualmente com mais de trinta: o multipartidarismo. Independente da quantidade de partidos, o fato é que em ambos os sistemas exige-se estrita observância dos programas políticos e das regras estatutárias por parte dos seus filiados. Afinal, o eleito o foi em grande parte pelo apoio conferido pelo partido ao eleito, especialmente considerando o sistema de representação proporcional, embora nem sempre isso aconteça na realidade brasileira. Quem vota, de regra, escolhe determinado candidato e a respectiva legenda pela plataforma política
No nosso país, a regra da fidelidade partidária, conquanto prevista há mais de vinte anos na Carta da República, somente foi instituída de fato a partir de atuação da Justiça Eleitoral em 2007 quando editou a Resolução n. 22.610, confirmada sua validade posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal. Até então, o famigerado “troca-troca” de partido não acarretava qualquer conseqüência jurídica para o mandatário. Pelo entendimento da justiça, o mandato pertence ao partido, não ao político.
A partir dessa regra, diversos agentes políticos tiveram seus mandatos retomados pelas respectivas legendas, sob o argumento de infidelidade partidária. O fato é que a infidelidade não se configura apenas com a saída voluntária do partido. Semanticamente, fidelidade se dá quando a pessoa não trai a confiança que lhe foi depositada. O exemplo clássico é o do casamento: exige-se que ambos os cônjuges não se envolvam com terceiros. Quando a traição acontece, rompe-se o vínculo de confiança, tanto que o Código Civil autoriza o fim do casamento nessa hipótese.
A filiação ao partido político pressupõe o acatamento, por parte do filiado, das diretrizes e programas legitimamente estabelecidas nos seus estatutos. A própria razão de existir dos partidos é a de que seus filiados comunguem das mesmas idéias e objetivos. Quando o político se desvia reiteradamente dos programas políticos ou das regras estatutárias, na prática, ele está sendo infiel àquilo que comprometeu quando se filiou à agremiação. Essa constatação é mais evidente quando se analisa uma das situações em que o Tribunal Superior Eleitoral autoriza o partido político a reivindicar o mandato, ou seja, na hipótese de mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário. Também o oposto se verifica, quando o próprio partido se desvia de seu programa partidário, o detentor de mandato eletivo pode pleitear à Justiça Eleitoral a declaração de justa causa para abandonar a legenda, sem colocar em risco o exercício de seu mandato.
Em razão do descumprimento reiterado dos programas e diretrizes, é lícito ao partido expulsar o filiado, assegurando-lhe, entretanto, o direito ao contraditório e a ampla defesa. Nessa hipótese, como foi infiel à legenda, o próprio partido pode solicitar de volta a vaga ocupada pelo excluído porque o mandato lhe pertence. Não há qualquer incompatibilidade dessa interpretação com a Resolução 22.610/07. É que a expulsão é muito mais grave do que o abandono puro e simples da legenda. Pressupõe, como afirmado, a insurreição à ideologia do partido, às diretrizes e às regras estatutárias, de modo que a confiança depositada pelo partido quando da filiação foi rompida.
É certo que dentro dos partidos, existem divergências próprias do meio político. Há os mais liberais, os mais conservadores, os mais ortodoxos, mas, no geral, os integrantes da agremiação se propõem ao mesmo objetivo e compartilham dos mesmos ideais, sob pena de termos micropartidos dentro da própria estrutura partidária.
Recentemente, o Tribunal Regional Eleitoral de Rondônia julgou procedente representação proposta pela Procuradoria Regional Eleitoral contra deputado estadual, acolhendo a tese de que a expulsão não apaga a infidelidade. Ao contrário, é a demonstração objetiva de que o político foi infiel ao partido. Pertinentes as palavras do desembargador Rowilson Teixeira naquele julgamento ao afirmar “O candidato usa o partido, se elege por ele, não cumpre suas responsabilidades, é advertido, é expulso, não recorre, filia-se a outro partido, continua na cadeira de deputado estadual. A infidelidade não começou com a expulsão, é anterior a ela”.
A conseqüência prática dessa compreensão é a de fortalecimento da democracia. Não pode mais haver legenda de aluguel ou de partido apenas como suporte para assunção do cargo político. Os filiados devem sim promover efetivamente os valores, a ideologia e os objetivos definidos nos seus Estatutos. Quando todos tiverem essa compreensão, talvez o brasileiro passe a votar mais no partido do que no próprio candidato, como acontece atualmente.
* Procurador regional eleitoral em Rondônia
Fonte: MPF/RO
Segunda-feira, 25 de novembro de 2024 | Porto Velho (RO)