Domingo, 27 de julho de 2008 - 07h59
Frei Betto *
Adital - No dia 12 de julho os EUA decidiram reativar sua IV Frota Naval - a que vigia os mares do Sul -, atuante entre 1943 e 1950, em decorrência da Segunda Guerra, e desde então desativada. Compõem a frota 22 navios: quatro cruzadores com mísseis; quatro destróieres com mísseis; 13 fragatas com mísseis; e um navio-hospital.
Segundo as autoridades usamericanas, o objetivo é "realizar ações humanitárias". Então, para que tantos mísseis? E, nesse intuito, por que não começar por permitir que Porto Rico recupere a sua soberania, suspender o bloqueio a Cuba, devolver a base naval de Guantánamo (retirando os prisioneiros de lá e do limbo jurídico a que estão condenados) e reduzir os subsídios agrícolas que estrangulam o livre comércio?
Segundo o almirante Gary Roughead, chefe das operações navais, a IV Frota visa a combater o tráfico de drogas, de armas e de pessoas, bem como a pirataria que ameaça o fluxo do livre comércio nos mares do Caribe e da América do Sul.
Não seria mais sensato começar por combater o tráfico de drogas e armas dentro dos EUA que, segundo relatório da ONU divulgado em junho, figuram entre os maiores consumidores desses dois produtos letais?
É a velha história do lobo-mau pretendendo enganar o chapeuzinho vermelho. Quem acredita que nariz tão grande é apenas para cheirar a netinha? Não é muita "coincidência" a IV Frota ser reativada no momento em que Cuba aprimora sua opção socialista, Daniel Ortega volta a presidir a Nicarágua, o Brasil descobre reservas petrolíferas sob a camada pré-sal, e a América do Sul se vê governada por pessoas como Chávez, Lula, Correa, Kirchner, Morales e, em breve, Lugo, que não morrem de amores pelo Tio Sam e se empenham em reduzir a dependência de seus países em relação aos EUA?
O comandante da IV Frota é o contra-almirante Joseph Kernan, de 53 anos. Não fez carreira na Marinha convencional, e sim na força de elite (SEAL) destinada a operações especiais de combates não-convencionais e repressão ao terrorismo. Muito humanitário...
Os EUA sentem-se incomodados com a atual conjuntura latino-americana. Em especial, com o fato de o presidente Lula empenhar-se na criação da UNASUL (União das Nações Sul-Americanas) e do Conselho Sul-Americano de Defesa (agora apoiado até pela Colômbia), dois organismos que, como o Mercosul e a Alba, excluem a participação dos EUA e tornam inócuos o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana de Defesa, que sempre estiveram sob controle da Casa Branca.
A exemplo da União Européia, a UNASUL integrará o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações, incluindo a Guiana e o Suriname. A integração completa desses dois blocos foi formalizada em Brasília em maio deste ano, durante reunião dos presidentes sul-americanos. A UNASUL ficará sediada em Quito; seu Banco do Sul, em Caracas; e o parlamento em Cochabamba, na Bolívia.
Ainda por trás da fantasia de vovozinha, Tio Sam quer impedir que a China tome conta dos mares do Sul. Hoje, 90% do comércio mundial depende de navios, e Pequim se empenha em ampliar e proteger suas rotas, incluindo as que conduzem ao nosso Continente.
O governo brasileiro já manifestou sua desconfiança à Casa Branca. As recentes descobertas de petróleo nas costas brasileiras, no momento em que o barril passa dos US$ 140, com certeza suscitam a cobiça dos EUA, cujos fornecedores, como a Venezuela, não são confiáveis.
Com tantas embarcações de alta tecnologia e poder de fogo em nossos mares, os usamericanos poderão pesquisar a plataforma submarina e controlar a navegação de nossos países rumo à África e à Ásia.
Ensina a zoologia que todo animal acuado se defende com ferocidade. É o caso de Tio Sam, cuja moeda perde poder de compra, a economia mergulha numa crise de longo prazo, o atoleiro no Iraque não mostra nenhuma luz no fim do túnel, e os brancos republicanos se vêem na iminência de transferir o poder para um negro democrata.
[Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros].
* Frei dominicano. Escritor.
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