Terça-feira, 4 de abril de 2017 - 13h17
Na abertura do julgamento da chapa Dilma-Temer pelo TSE, a convivência entre Gilmar Mendes e Michel Temer chama a atenção de toda pessoa preocupada em preservar a respeitabilidade das togas negras que expressam a severidade da Justiça, a venda nos olhos que simboliza isenção, a balança que é sinônimo de equilíbrio -- tudo isso para compor um ritual que diz que homens e mulheres, independente de origem social, raça ou credo político, tenham direitos iguais diante da lei.
Desde que Michel Temer tornou-se presidente da República, em abril de 2016 como interino, em 31 de agosto como definitivo, os dois se encontraram seis vezes. Nem sempre foram eventos oficiais, com pauta definida e resoluções comunicadas ao país. Mas eventos fora de agenda, cujo conteúdo permanece reservado aos participantes. No dia 28 de maio, Gilmar foi ao Jaburu. Em 2 de agosto, foi a vez de Temer ir a um jantar na casa do ministro. Em 10 de janeiro, viajaram para Lisboa no avião presidencial. No dia 22, o presidente do TSE voltou ao Jaburu para um jantar com Temer. Em 6 de fevereiro, os dois se encontraram novamente no final de semana. Em 12 de março -- quando faltavam 25 dias para a abertura do julgamento, nova conversa.
No final de um encontro, com a presença de Moreira Franco, os três em trajes informais, como convém às conversas num domingo à tarde, a assessoria de Gilmar Mendes disse ao Fantástico que se tratava de "uma conversa casual, entre amigos há mais de 30 anos."
É uma situação grave, tanto pela movimentação dos personagens como pelo cenário político em que ela ocorre. Entende-se a questão a partir do artigo 145 do novo Código de Processo Civil. Em seu parágrafo I, o artigo prevê a suspeição juiz que seja "amigo ou inimigo íntimo de qualquer das partes." É impossível negar que Gilmar pode ser enquadrado, simultaneamente, na condição de amigo de uma parte e inimigo da outra.
Dois exemplos. Jogou contra Dilma num lance decisivo, ao impedir a posse de Lula na Casa Civil e evitar que o plenário do Supremo tivesse a chance de debater a questão coletivamente. Aliado assumido de Temer, Gilmar é um dos responsáveis pelo avanço programado da reforma trabalhista, como explica Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, com base no trabalho dos acadêmicos Luiz Guilherme Migliora e Rafael de Fillipis: "em outubro do ano passado, Gilmar determinou, liminarmente, a suspensão de todos os processos e decisões da Justiça do Trabalho que tratem de acordos coletivos. A liminar afetou súmula do TST que estendia direitos previstos em acordos coletivos até que novas normas fossem pactuadas."
Para entender a relevância de amizades e inimizades na Justiça, que permitem proteger ou perseguir, é bom lembrar que as restrições não incluem apenas os próprios acusados, mas também advogados. Foi por isso que Edson Fachin, com um ano e dez meses na corte, contra 15 anos de Gilmar, declarou-se suspeito para julgar um habeas corpus de Lula -- ele é padrinho da filha de um dos advogados que assinou a petição. A atitude pode até chamar atenção, mas reflete a postura de quem segue as regras explícitas do jogo. Está prevista no parágrafo 1º do mesmo 145. Até para proteger o exercício da função, ali que, antecipando-se a qualquer ação que possa ser levada ao julgamento do tribunal, todo juiz pode "declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões."
Há outro ponto, de particular interesse para hoje. O item II do artigo 145 afirma que "há suspeição" quando o juiz "aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa." Todo cidadão brasileiro tem o direito de especular o teor das conversas tão frequentes de Gilmar Mendes com Michel Temer e imaginar que o processo no TSE tenha entrado em pauta.
Em junho de 2016 -- coincidência ou não, dias depois de um jantar no Jaburu -- quando a aprovação do impeachment pelo Senado parecia assegurada, a ameaça maior sobre o futuro de Temer até 2018 se encontrava no TSE do qual Gilmar se tornara presidente pela segunda vez apenas um mês antes.
No esforço para derrubar Dilma de qualquer maneira, o PSDB pagava o preço de quem tinha ido com muita sede ao pote. Não só havia seguido o caminho convencional, de batalhar pelo impeachment através do Congresso, em aliança com o suíço Eduardo Cunha, mas também sustentava a denúncia no TSE, apresentada dias depois da eleição.
Interessados na impugnação completa da chapa, os advogados do PSDB acusavam "Dilma e Michel" -- assim, na primeira pessoa -- de "abuso de poder político", e pretendiam com isso impedir sua posse. Como se não bastasse a jurisprudência antiga nesses casos, que assegura tratamento em bloco para titular e vice, a denúncia era explícita, daquela vez. Também pedia a posse imediata de Aécio Neves.
Em junho de 2016, Gilmar falou a vários jornalistas sobre aquilo que chamou de "nova configuração" do caso. Prevendo que o julgamento só iria ocorrer no ano seguinte, Gilmar lembrou que, em situações normais, o TSE não separa o presidente e o vice e que a "responsabilidade recai sobre os dois." A diferença, esclareceu, é que Dilma fora afastada e, "num cenário em que o impeachment venha a ser aceito, o processo teria que tramitar contra ele, não mais contra a presidente Dilma." Nesta nova situação, o foco deveria mudar -- apontando para o vice.
Estava configurada, assim, a estratégia A de Michel Temer a partir de hoje -- deixar Dilma no fogo, enquanto ele tentará fazer-se de inocente. Caso venha a dar com os burros n'água, resta a estratégia B -- conservar os direitos políticos e tentar uma eleição indireta pelo Congresso, acrobacia fácil de anunciar, difícil de entregar quando se trata de presidente no fundo do poço.
Adversário público do Partido dos Trabalhadores desde 2012, quando acusou Lula de tentar fazer uma chantagem para inocentar os acusados na AP 470, Gilmar teve um papel protagonista no julgamento do TSE caso desde o início.
Relator das contas de campanha da chapa Dilma-Temer, seu voto foi acompanhado de suspense até os últimos parágrafos. Depois de um discurso com argumentos que sugeriam que as contas poderiam ser impugnadas, o que implicaria em suspender a posse de Dilma e confrontar os votos ainda frescos de mais de 54 milhões de eleitores, pediu a aprovação "com ressalvas". Por esse cuidado, as contas foram aprovadas por unanimidade. Mas as "ressalvas" deixaram uma janela escancarada para que as investigações pudessem prosseguir, ao sabor de um momento político cada vez mais desfavorável ao governo -- situação produzida, em grande parte, pelo próprio Judiciário.
Em agosto de 2015, a ministra Maria Tereza Moura, a quem coube julgar as denúncias do PSDB, anunciou um voto que pedia o arquivamento. Gilmar virou o debate para estabelecer uma nova maioria, auxiliado por um novo momento político, alimentado pelas delações e novas denúncias da Lava Jato. Para defender o arquivamento, Maria Tereza explicou que eram fatos ocorridos depois da apresentação das denúncias, colocando-se fora da Justiça Eleitoral. Também lembrou um ponto essencial -- a falta de denuncia de denúncias contra Dilma. "Até agora não se imputou à candidata nenhum fato", disse Maria Tereza. Mesmo assim, em oito meses, o jogo tinha virado no TSE e o processo seguiu o curso de hoje.
A novidade relevante é conhecida. De Aécio, candidato a presidente no TSE, a coalização golpista passou para Michel Temer, responsável pelos votos que Eduardo Cunha garantiu no Congresso. As alianças mudaram. A configuração do governo também.
Mas, mesmo fora do lugar do ponto de vista do pacto político que derrubou Dilma, a denúncia permanece mais atual do que nunca.
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