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Infelizmente, o bicho comeu


Infelizmente, o bicho comeu  - Gente de Opinião

O maior desafio intelectual é perceber as descontinuidades, inovações e rupturas no desenrolar da história. Às vezes essas quebras acontecem rapidamente. Outras vezes seguem um ritmo mais lento. Com frequência, elas só são percebidas posteriormente, pelo trabalho dos intelectuais de ofício, que usam o cérebro como ferramenta, são pagos para isso e comem pelo menos três vezes ao dia.

 

Num país ou numa região colonizada e dependente, o desafio é ainda maior. Os atos decisivos costumam ter origem externa e só se consumam quando estão definidos, como caixas pretas, que trazem consigo capital, tecnologia e mão de obra metropolitanas, para mandar e fazer. É o que acontece na Amazônia.

No seu mais recente e decisivo capítulo, esse novo - e, talvez, último - ciclo pode ser datado: começou em 1973, com o primeiro choque do petróleo. Aproxima-se, portanto, de meio século de desenvolvimento, de uma intensidade sem paralelo no período anterior - e poucas vezes experimentado em qualquer outro lugar do planeta.

Quem saiu na frente foi o Japão, o mais afetado dos países do topo da economia mundial. Subitamente, certas atividades produtivas se tornaram muito difíceis ou inviáveis, sobretudo as que usam mais intensamente a energia.

As 41 plantas japonesas de alumínio teriam que ser fechadas - como foram. Os japoneses, que já conheciam muito bem a face extrativista vegetal e agrícola da Amazônia, fizeram nova ancoragem com o projeto da maior fábrica de alumínio do mundo e, para supri-la, a quarta maior das hidrelétricas.

Experimentando novas faces da realidade brasileira (e amazônica), como a ineficiente e corrupta burocracia estatal, ainda assim, em uma década, o polo do alumínio (com suas etapas "para trás": alumina e bauxita), reduzido em suas dimensões, ainda assim grandiosas, entrou em funcionamento.

Os japoneses conseguiram instalar a maior das suas fábricas de metal primário (uma das múltiplas commodities criadas no período) a 20 mil quilômetros do seu território, pagando por ele menos do que se o produzissem internamente.

Outra façanha foi viabilizar a exploração da melhor jazida de minério de ferro do mundo, na província de Carajás, no coração do Pará, hoje o maior minerador do Brasil e dos maiores do mundo. Mesmo ela estando a quase 900 quilômetros do litoral e apesar da desistência da maior siderúrgica da época, a americana US Steel, que estava associada à Companhia Vale do Rio Doce, então inda estatal. Estados Unidos e Japão travavam então uma guerra comercial intensa e a Amazônia entrou, sem saber e sem querer, nesse front. Pró-Japão.

Entraria também em outra guerra titânica, esta ainda em curso, agora dos EUA com a China, que, por sua vez, desbancou e superou o Japão em sua penetração - profunda e silenciosa - nos setores de ponta da Amazônia. O grande país asiático controla da energia intensa (já investindo nas linhas de transmissão dos mamutes hidrelétricos) aos minérios ricos (compra 60% do ferro de Carajás).

Essa gangorra de poderosos sobe e desce em intensidade e velocidade que não se refletem no cotidiano amazônico (nem no brasileiro). Há surpresa quando se verifica que a produção de ouro nos garimpos, a maioria deles clandestinos (e criminosos), do que na lavra empresarial.

É uma história à margem da história, como nos 10 anos em que uma extração mecanizada de ouro, a do igarapé Bahia, em Carajás, mais uma vez, superou a centenária Mina de Morro Velho, em Minas Gerais. O ouro acabou, gerando mais metal do que a mitológica Serra Pelada, e nem debate sobre o seu beneficiamento surgiu.

Sem instituições do conhecimento envolvidas com a realidade situada fora dos muros universitários, sem intelectuais públicos, acessíveis nas praças de debates, sem uma imprensa capaz de visualizar o germe das transformações no dia a dia, derrubando agendas repetitivas e insensíveis, a tarefa de formar opinião pública é impossível. Tanto quanto desfazer as caixas pretas e cumprir a tarefa libertadora das amarras externas: tornar a colônia contemporânea do colonizador.

Seria preciso alertá-la para quando a descontinuidade começar a se estabelecer e atiçá-la para que o leite não derrame, Inês não morra e o fato não se consume, fazendo da história um trem imenso e intangível, como o que percorre os quase 900 quilômetros entre o mais rico subsolo da Terra e o porto de lançamento das riquezas desse útero para além-mar.

O que fica do lado daqui é o caos e a destruição em massa e um enriquecimento de marajás entre os que se associaram a essa hemorragia de riquezas naturais

Subitamente, descobrimos que a área mais percorrida na Amazônia pelo colonizador, identificada pelo fogo, a tecnologia mais primitiva que, há milênios, esse pioneiro usa para "amansar" a terra, não é mais Amazônia. O "arco de fogo", entre Tocantins, Mato Grosso e Pará, é uma savana pobre, já considerada irrecuperável. Aquela bela floresta de pouco tempo atrás, ela, infelizmente, o bicho comeu

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