Quinta-feira, 27 de setembro de 2018 - 08h21
MILTON SALDANHA
Jornalista, escritor, filho de oficial do Exército
Não é frase minha, é uma tese de historiadores, com a qual concordo 100%.Nossa República nasce de um golpe militar, sem participação popular. Não foi de uma discussão com a sociedade, envolvendo o parlamento. Nem empolgando a s ruas. Nem poderia ser, nenhum regime opera para derrubar a si próprio.
O debate ficou restrito à elite intelectual e política, aliada aos fazendeiros do café, inconformados com a Abolição da escravidão, e alto comando militar. Uma minoria, que caberia num salão de baile.
Aos banqueiros também interessava a mudança. O Encilhamento, uma fase de euforia e especulação financeira desenfreada, já sob o novo regime, ilustrou bem isso. Teve algo em comum com a fase do chamado “milagre econômico”, nos primeiros anos da ditadura de 1964, como efeito de uma oferta mundial de crédito. O resultado foi o estouro das contas externas.
Na farra, os rentistas iam dormir, aplicando no over night, e acordavam mais ricos. Enquanto os trabalhadores só se ferravam, sob o arrocho salarial e proibição das greves.
Ainda assim tem gente que chama isso de “sucesso”. Sem dizer de quem.
O problema é que o golpe criou um paradigma: passou a ser norma sempre que algum grupo se acha iluminado para salvar o País das suas crises, sem perceber que são endêmicas, porque estruturais. Estão ligadas ao processo de produção e de renda excludentes, porque a natureza do sistema é concentradora: menos de cem famílias detém o controle da riqueza nacional. É o número de famílias da minha rua. Compare isso com a colossal extensão e população do Brasil.
A organização partidária, sem a qual ninguém tem acesso aos centros de decisão, é o filtro para decidir quem pode ou não aspirar ao apito do jogo. Sem muito dinheiro, ninguém se candidata a nada. Logo, o sistema partidário é por natureza polo da corrupção. Como ninguém tira dinheiro do próprio bolso, por esperteza, ou por não ter no montante necessário, a única via para pagar a conta é o assalto aos cofres públicos. Para chegar neles, só o voto não basta, será preciso também o golpismo. Que a proclamação da Republica ensinou, como mãe do sistema. E que se perpetua e se repete na História, centenas de vezes, até o recente golpe parlamentar que derrubou Dilma.
Basta observar que foi o ultra corrupto Cunha quem comandou o processo para se perceber que isso não poderia levar a algo diferente do trágico governo atual de Michel Temer. Feito o serviço sujo, Cunha foi descartado e posto em cana, onde se espera que continue.
Ah, o governo era ruim”, vão dizer os golpistas. Ruins, meus caros, todos foram. Apontem o que não foi. Incluindo-se na lista o período da ditadura mais recente, que teve 21 anos de autoritarismo para arrumar o País, e deu no que deu. Só acredita nessa fantasia da intervenção militar quem é muito idiota e nada leu. Ou muito esperto, mirando onde vai se dar bem.
A tradição do golpismo carrega junto a lenda do apoio popular. Já ouvi até gente da esquerda afirmando que o golpe de 1964 teve apoio popular. É a maior mentira de todos os tempos.
Pesquisas, arquivadas na Biblioteca Nacional, indicam que o presidente deposto, João Goulart, faria seu sucessor. E mais: as eleições municipais, cinco meses antes do golpe, foram vencidas nas grandes cidades pelo antigo PTB e suas coligações, que era o partido do governo deposto.
O que chamam de apoio popular foram as Marchas com Deus e pela Liberdade, nas maiores capitais dos Estados, com a presença maciça de brancos e da classe média alta. Rigorosamente, uma minoria, com seu comando encastelado na Fiesp. Mas que tinha o dinheiro, inclusive da CIA, para subornar parlamentares e quem mais lhes interessasse. Em paralelo, a grande imprensa era maciçamente golpista, por seu atrelamento natural ao capital.
Outra frente foi o alto clero católico conservador. Isso rachou a Igreja. Os padres e bispos progressistas, inspirados na figura do Papa João XXIII, um camponês com preocupações sociais, não seguiram as diretrizes das batinas golpistas.
Na política convencional, a direita mais expressiva estava na UDN – União Democrática Nacional, que sabia que jamais chegaria ao poder pelo voto. Seus expoentes eram Carlos Lacerda e Jânio Quadros. Ambos depois expelidos pelo monstro que ajudaram a gestar.
Jânio quebrou a regra, elegeu-se presidente, mas isso só aconteceu porque ocorreu um acordo de bastidor com parte da esquerda, principalmente a comunista. E porque seu opositor, o marechal Teixeira Lott, era franco e honesto demais para a política que se costuma praticar no Brasil. O Lott não topava trambiques, e ninguém se atrevia a propor-lhe. Jânio, ao contrário, negociava tudo, principalmente em seu estado natural, o etílico.
Portanto, à luz dos fatos, não existiu esse apoio popular ao golpe de 1964. É uma grande mentira, que precisa ser desmascarada.
Mas que sempre estará no ventre golpista. Sem mentir ao povo, nenhum golpe se consuma.
O chato é quando acaba, mas a mentira fica.
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