Quinta-feira, 3 de março de 2011 - 21h24
O último domingo na cidade foi sacudido pelos rumores da morte súbita de Manelão. Incrédulas, as pessoas comentavam o infausto e a notícia se espalhou rapidamente, antecipando uma morte que a rigor, ainda não ocorrera. Enquanto ele, Manelão agonizava, o anuncio de sua morte o precedia. Inusitadamente, esse fato reitera a condição do morto de sempre se por a frente dos acontecimentos. A notícia facilitou abrandar o insólito da morte, dando tempo a que todos a absorvessem. Não faltaram rezas nem o desejo sincero e chocado de que o General da Banda Vai Quem Quer, superasse e vencesse a luta contra o próprio corpo. Enquanto a mídia desmentia a toda hora o infausto, anunciando o grave estado de Manelão, a família anunciava que ‘ HAJA O QUE HOUVER, A BANDA SAÍ ‘. Decisão difícil, estranhante, mas necessária, do ponto de vista empresarial. A partir daí, desenhava-se o rito de uma enxéquia inusitada. Os amigos e foliões, desorientados e confusos, corriam do hospital para a TV e desta para a família, a cata de notícias. Às doze horas da segunda-feira, a sentença; sim, Manelão perdeu a guerra para a vida. O Mercado Cultural abrigaria o corpo, para proceder ao velório. Como era de se esperar, amigos, foliões e curiosos, renderam-lhe homenagens. Nesse instante, a vida perdida se reinventa e quebra o paradigma da dor e do pranto, inerentes a condição da morte. As pessoas foram ao velório como quem vai para um bloco. A perda era lamentada com hinos e marchas de carnaval; havia confetes, serpentinas e música ...ao vivo, para prantear Manelão, o morto.
Possivelmente este foi um velório único e inusitado na vida da cidade e privilegiados foram os que puderam acompanhá-lo, porque então se deu o imponderável;
Como se pedisse passagem – numa linguagem carnavalesca – à turba abriu alas e a seu modo cantou e dançou sob o corpo de seu rei, o General da Banda. Contrariando toda a lógica da tradição ( silencio ameno ,murmúrios, tristeza,conversas entrecortadas pelos feitos e qualidades do morto )a irreverência da folia tomou assento(não cabe aqui dizer alegria )e subverteu a ordem, se instalando num contexto onde,teoricamente,não caberia.
A saída do cortejo foi marcada por fogos de artifício que, como se sabe, são símbolos de júbilo. Este foi feito a pé (como não se usa mais) como faz para o desfile de um bloco e nele, acompanhado do carro de som, soltando confetes e serpentinas, a pequena multidão abria passagem. O morto seguia a frente dos que o homenageavam, que pareciam dizer; nós, ao nosso modo, estamos pranteando aquele que nos comandou por mais de trinta anos, a folia.
Senhora do insólito, a pequena multidão (proporcionalmente pequena pela dimensão da Banda do Vai Quem Quer e a importância do morto) enterrou Manelão ao som de seu hino. O Cemitério dos Inocentes – relegado ao esquecimento e abandono inerentes a sua própria condição de fim de linha - jamais viu antes uma manifestação tão solta e espontânea de afeto. Provavelmente os mortos , se pudessem, teriam despertado ao som das marchinhas de carnaval, surpresos e perplexos com o ilustre vizinho que ousou chegar com tamanho alarde.
A ficção como se sabe, tem um limite com a verossimilhança. Mas nenhum escritor imaginaria tal feito. Jorge Amado chegou perto, quando seu personagem Vadinho, morreu em pleno carnaval. Enquanto corria o velório (com muitas lágrimas de dona Flor) os blocos passavam sobre sua janela. Mas Vadinho, imaginem, foi enterrado sobriamente. Bom, ele não era general da banda. Nem ajudou a construir a historia do carnaval de Porto Velho. Muito menos foi rei momo – senhor absoluto da folia – dono por três dias da chave da cidade cuja ordem são folguedos.
Há que se fazer aqui em honra de Manelão, o justo registro dessa capacidade irreverente e exitosa que é a de promover alegria. Seu rito de passagem configura essa quebra de dogma e deixa claro que, ao partir, ficam as marcas das ações vivenciadas. Shakespeare já dizia sabiamente que o bem é quase sempre enterrado com os ossos de que o pratica. Não com Manelão, o rei morto. Nenhum outro em seu lugar – e como ele – será posto.
A Banda do Vai Quem Quer, democraticamente, sábado, sairá e explosões de homenagens dar-se-ão em sua memória. Nada será como antes, ainda que tudo esteja quase igual. Porque a cidade sem Manelão ficou mais pobre e o carnaval, triste. Como triste será todo aquele que da vida não souber reconhecer – enquanto ela pulsa – que a alegria é a sua melhor face.
Provavelmente, Manelão estará neste momento, subvertendo a ordem de entrada – dando trabalho a São Pedro – conclamando os chegados de última hora para o improvisado bloco dos surpreendidos. Ele ficará as portas do céu ( folião convicto) fazendo barulho ,cantando e dançando á sua própria chegada. Com certeza só transporá o outro lado, na quarta feira de cinzas. E o céu, sacudido por sua batuta, suavemente como convém ao sagrado, saberá desta ofegante epidemia, que se chama carnaval.
FONTE: KATIA AMORIM*
*A autora é professora, escritora e filha do pioneiro na radiodifusão em Porto Velho, o saudoso Humberto Amorim.
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