Segunda-feira, 19 de abril de 2010 - 17h05
Edmundo Gomes *
É do cancioneiro popular que vem o mote para minha reflexão sobre a comemoração desse Dia do Índio, em 19 de abril, nesta segunda-feira.
Que outro sentido pode-se inferir do conteúdo destas duas frases, senão que o avanço da sociedade branca, européia, capitalista, que se formou após a expansão européia em busca de produtos que antes eram obtidos em seu comércio mediterrâneo, agora obstruído, só pôde se efetivar com a dizimação das populações indígenas encontradas nas Américas?
Como uma espécie de “Monumento aos Mortos”, elege-se um dia em que a consciência social e política das novas sociedades, constituídas após o massacre, é exorcizada de sua cumplicidade histórica, pois a dominação e o preconceito perduram por mais de cinco séculos!
Mas se é assim do ponto de vista efetivo das relações sociais e políticas, que se constituem não sem nenhuma tensão social, não é sem nenhuma afirmação de sua identidade cultural que os povos indígenas do Brasil, em particular, vivem este momento.
As populações indígenas de Rondônia, que tiveram, novamente, a violência deflagrada contra elas quando o Estado Brasileiro resolveu ocupar o seu território, a partir dos anos 70, do século passado, realizando a migração de populações inteiras vindas de outros Estados do Sul e do Sudeste, onde não encontravam mais terras para plantar ou apenas para morar, as lutas dos Povos Indígenas por suas terras, pelo direito à sua cultura, e mesmo por sua existência física, como populações social e culturalmente diferenciadas, teve seu coroamento no processo Constituinte do final dos anos 80, resultando na existência de um capítulo, com apenas dois artigos, dedicado aos Índios.
Mas não precisava mais, para dar reconhecimento à causa por que vinham lutando havia tantos anos, e para criar grandes reações, vindas de governantes estaduais, de fazendeiros e grandes proprietários de terra, incluindo, entre estes, muitos políticos mesmo no Estado de Rondônia.
Desde a promulgação da Constituição muitos avanços foram dados, pelos Povos Indígenas, na efetivação de seus direitos. Embora haja sempre uma necessidade de acompanhar e conferir, do ponto de vista de sua adequação às diferentes e particulares culturas indígenas, muitas novidades surgiram como desdobramento.
Apesar de poder representar um enfraquecimento do órgão federal de assistência aos índios, a Fundação Nacional do Índio (Funai), os direitos dos índios à Educação, à Saúde e à Assistência Previdenciária se constituíram como uma realidade objetiva. Apesar de existirem muitas populações indígenas isoladas, muitas daquelas já contatadas talvez não saibam mais o que seja viver sem um professor indígena (ressalte-se que não é em todos os Estados que os professores que dão aulas para os indígenas, nas aldeias, são um dentre eles; em Rondônia, entretanto, a quase totalidade dos professores que lhes ministram aulas são indígenas), ou mesmo sem a assistência médica, que, embora com muitas deficiências, é-lhes devida pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). A assistência previdenciária, ainda que com problemas nos regulamentos e portarias que as institui, tem muitas prestações destinadas às Populações Indígenas.
Se a instituição de um dia para comemorar a existência dos índios do Brasil e das Américas tem, efetivamente, um caráter reificado (pois as sociedades que se constituíram sobre a exterminação de muitas Nações Indígenas é que são os seus instituidores), é preciso lembrar que a permanência e a resistência indígenas conquistaram o seu reconhecimento definitivo, ao ter inscrito na Constituição Federal os seus direitos “à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Mas não ficou só aí a Constituição. Ela completou o seu trabalho ao reconhecer que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Muita mudança, para um Brasil que tratou os índios sempre como se fossem crianças, como pessoas incapazes de gerir sua própria vida social. Isto teve um significado histórico importante, admitido até por Darcy Ribeiro em palestra dada na Livraria Sapiens, de Niterói, RJ, em 1980. O instituto da tutela pelo Estado para com os Povos Indígenas, forçou o Estado a impedir que muitos fazendeiros exterminassem, sem mais, muitas populações indígenas. O que não impediu, entretanto, que tal ocorresse muitas vezes, como denuncia, e denunciou durante toda a década de 1970, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Linha 3, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
E ainda, tal não exclui aquilo a que Antonio Gramsci chamou de “reforma moral e intelectual”, pois mesmo entre servidores dos órgãos que têm relação com a questão Indígena há muita resistência a vê-los como portadores legítimos de Direitos, a quem devemos tratamento respeitoso e não preconceituoso, possibilitando a efetividade do Mandado Constitucional.
Comemorar o Dia do Índio, então, deve ser, para nós, todos os que temos a Cidadania Brasileira um momento de reflexão, quiçá com a ajuda do próprio texto Constitucional, mas também de textos antropológicos como “O Pensamento Selvagem”, de Claude Lévi-Strauss, e “Índios do Brasil”, de Julio Cezar Melatti, para podermos internalizar esta realidade nova, há pelo menos 22 anos, em que somos checados em nosso etnocentrismo e, até mesmo, em nosso des-velado racismo.
* Analista pericial em Antropologia do Ministério Público Federal em Rondônia
Fonte: MPF/RO
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