Quinta-feira, 15 de julho de 2010 - 13h01
A campanha em favor da “ficha limpa” mobilizou, em todo o Brasil, milhões de pessoas que acreditaram na possibilidade da decência e da ética na política. Em Brasília houve quem apostou que seria mais fácil a vaca voar do que esse projeto de lei de iniciativa popular passar pelo Congresso Nacional. Surpresa! A vaca não voou, mas o projeto passou, a lei já foi sancionada e está em vigor. Agora é vigiar e clamar pela sua aplicação correta. O País agradece a tantos cidadãos que se empenharam para barrar, antes das urnas, pretendentes a mandatos políticos que não podem ostentar idoneidade moral para governar ou legislar. Será bom para o Brasil. Muito bom.
Mas, sejamos justos. Nem todos os políticos foram ou são “fichas sujas”. Muitos desempenharam com dignidade e grandeza a sua missão. No passado e no presente. Quero lembrar um deles, Tomás Morus, um político inglês. Não é que faltem exemplos também entre nós, mas porque esse é emblemático. Nasceu em Londres, em 1478; estudou Direito em Oxford, casou, teve 3 filhas e um filho. Homem de vasta cultura, amigo de notáveis protagonistas do Renascimento, escreveu vários livros sobre a arte de governar e em defesa da religião - era católico fervoroso. Em 1504 foi eleito para o Parlamento e o rei Henrique VIII confiou-lhe importantes missões diplomáticas e comerciais; chegou a ser membro do Conselho da Coroa, vice-tesoureiro do Reino e, em 1523, presidente da Câmara dos Comuns. Em 1529 foi nomeado chanceler de Sua Majestade.
Quando o soberano, não atendido pelo papa em sua pretensão de divórcio, resolveu ser, ele mesmo, o chefe na Igreja da Inglaterra, separando-a de Roma, o fiel chanceler começou a ter problemas. Não aprovando a ingerência do rei na Igreja e não aderindo à sua política discriminatória contra os católicos, Tomás Morus renunciou ao cargo e retirou-se da vida pública, para sofrer, com sua família, o ostracismo e a pobreza. Foi encarcerado na Torre de Londres e submetido a várias formas de pressão para prestar juramento de fidelidade ao rei. Preferiu permanecer fiel à sua consciência e, com firmeza, denunciou no tribunal o despotismo do soberano. Condenado à morte por “infidelidade ao rei”, foi decapitado no dia 6 de julho de 1535.
Da prisão, escreveu à filha Margarida: “Fica tranquila, minha filha, e não te preocupes com o que possa me acontecer neste mundo. (...) Até agora, Deus me deu a graça de tudo desprezar, do fundo do coração – riquezas, rendimentos e a própria vida – ao invés de jurar contra minha consciência”. E manteve esta posição com serena firmeza. Não traiu a consciência por vantagens, poder, riquezas, prestígio, nem passou por cima da verdade e da decência, mesmo para salvar a própria vida. Permaneceu “ficha limpa”, sabendo que isso lhe custava a cabeça. Literalmente.
Em 1935, quatro séculos depois de seu martírio, o papa Pio XI declarou-o “santo” e, no ano 2000, João Paulo II proclamou-o patrono dos governantes e políticos. De fato, vários chefes de Estado e de Governo, numerosos dirigentes políticos, além de Conferências Episcopais, haviam apresentado sugestão ao papa, nesse sentido. Tomás Morus foi um político comprometido com a verdade e com os valores éticos. O que mais impressiona nesse grande homem público é a retidão e a inflexível fidelidade à própria consciência. Colaborou com a Autoridade e as instituições, enquanto eram legítimas; exerceu o poder na medida da justiça, como serviço ao povo e a seu país. Mas sua grande firmeza de caráter e sua sólida estatura moral não lhe permitiram cair na tentação de usar o poder para sua vantagem e ganhos pessoais. Colocou sua atuação pública ao serviço dos mais pobres e desprotegidos, promoveu a paz social, a educação integral da juventude, a defesa da pessoa e da família. Diante das lisonjas do poder, das honrarias e das riquezas, conservou uma serena jovialidade, inspirada no sensato conhecimento da natureza humana e da futilidade do sucesso. Manteve o bom humor, mesmo diante da iminência da morte.
Tomás Morus harmonizou, de forma extraordinária, sua intensa vida pública com suas convicções interiores. Um bom político, de fato, não pode separar-se da verdade, nem dissociar sua ação da moral. A dignidade dos homens públicos é certificada por uma boa consciência. Como explicar, diante do povo, vantagens desonestas, sem afundar ainda mais no charco da mentira e da desonestidade? A vida de Tomás Morus é um belo exemplo de ética na política. Coisas que ficaram no passado? Não creio. É o mesmo anseio manifestado, ainda hoje, pelos milhões de brasileiros que apoiaram o projeto de lei de iniciativa popular “ficha limpa”. O futuro confirmará, com toda a certeza, que esta lei terá contribuído muito para melhorar o nível ético da política brasileira.
Estamos num ano eleitoral e o povo brasileiro é convidado, mais uma vez, a fazer um discernimento acurado sobre candidatos e partidos, para escolher e votar. Esta é mais uma boa chance dos cidadãos para deixar claro quais rumos querem ver na política do nosso País. Tomás Morus tem algo a ensinar e nos lembra, sobretudo, que a verdade e a ética são inegociáveis. Não têm preço. Também alerta que a corrupção da consciência é uma vilania que pode levar ao despotismo e às maiores injustiças. Com freqüência, clama-se por reformas profundas para melhorar a política do País e elas, certamente, são necessárias. Porém, mais necessários ainda, na condução da vida política de um povo são os políticos íntegros. Chegou a hora de conhecê-los e de votar neles.
Fonte: CNBB/Cardeal Odilo Pedro Scherer
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