Sábado, 18 de novembro de 2006 - 13h14
Lembro-me como se fosse hoje, dia 08 de outubro de 2006, da época que estudava na Escola Municipal Marcílio Dias, em Tutóia/MA (tutoia.8m.com), minha terra natal. Naquela época, anos 60, cursava o ensino fundamental, mas apesar de praticamente não ter veículos auto-motores em Tutóia, tínhamos aula sobre trânsito. Lá eu aprendi sobre os perigos que os carros representam. Aprendi como me comportar como pedestre no trânsito. Afinal, há muitos perigos nas ruas. Além dos carros, motos há também bicicletas e até mesmo pessoas. Dependendo como você se choca com alguém, pode se machucar ou até morrer com um tiro, sempre de acordo com o humor do indivíduo com quem você se chocou, ou com o seu próprio humor. Tudo isso foi ensinado ao longo de todo o ensino fundamental até o médio nas escolas Cassimiro de Abreu e Almeida Galhardo.
Fomos realmente preparados. Apesar de não existir sinais de trânsito na cidade conhecíamos seus significados. Sabíamos identificar quando encontrávamos um deles em alguma fotografia das raras revistas que tínhamos acesso. Quando fui pela primeira vez a Parnaíba/PI, uma cidade maior, com bastante carros, já tinha uma idéia de como proceder. Já sabia o que era uma faixa de pedestre, aquela cheia de listras brancas pintada no asfalto para nós passarmos por cima e atravessar a rua com alguma segurança, antes da qual os motoristas devem parar, ou pelo menos o sentimento de estar fazendo o procedimento correto. Depois, vi um semáforo pela primeira vez. Mas já sabia que quando estava vermelho os carros tinham que estar parados, e isso significava que eu estava autorizado a atravessar a rua. Mas também podia me imaginar como motorista, pois já sabia que quando o sinal estava verde, poderia seguir em frente, mas ainda prestando atenção para ver se algum pedestre que não teve a sorte de ter aulas sobre trânsito, antes mesmo de conhecer um, não estava avançando o sinal, ou um motorista na mesma condição. E assim, fui educado para me comportar no trânsito, antes mesmo de ter um veículo ou mesmo de ter muito movimento de carros na minha cidade, Tutóia/MA. Isso me ajudou muito, quando fui para Belém/PA, e depois em Porto Velho/RO, onde moro até hoje. Tenho muito orgulho de ter nascido em um país onde a educação é levada a sério. Onde a educação é voltada para a vida prática. Um país que me ensina como me comportar em vários aspectos, principalmente como cidadão, até como me comportar nas ruas, com trânsito de carros ou somente com trânsito de gente, na escola, desde pequeninho. O que me fez ser um cidadão cumpridor dos meus deveres e cobrador dos meus direitos, apesar de ainda cometer alguns deslizes. Mas aí a culpa é minha, eu fui ensinado, agora o problema é exclusivamente meu.
Em Porto Velho/RO, tirei a minha CNH Carteira Nacional de Habilitação, em 1990. Posso dizer que foi moleza, pois muita coisa eu já sabia, pois aprendi na escola e colocava em prática na vida real, foi só relembrar e bingo, tirei a carteira. Nesses anos como motorista, tive apenas um acidente grave: atravessei um sinal em um momento de profunda desconcentração, que acumulada com a desconcentração do outro motorista, foi jogado para cima de uma calçada. Sai ileso, aliás, todos nos saímos muito bem da nossa irresponsabilidade.
Essa estória poderia ser uma história. A única coisa verdadeira nos parágrafos acima são os lugares onde morei, as escolas onde estudei e o acidente, o restante é utopia, pelo menos no Brasil, não conheço a realidade de outros países.
- Meu irmão vai ficar aqui. Eu te amo meu irmão. Você não merecia isso. Meu irmão tinha um sonho. Queria ser jogador de futebol e queria jogar no Maracanã. Meu irmão está com muita sede. Ele está com os lábios secos. Ele está com calor. Cuida do boné do meu irmão, pelo amor de Deus. Senhor ilumine o meu irmão. Senhor, ele não merecia isso. Senhor, por que ele, Senhor? Meu irmão vai ficar aqui. Num buraco, tapado com cimento. Ele está com calor. Dá água para ele. Ele está com os lábios secos. Senhor, tenha dó da outra família que também teve seu filho chamado pelo Senhor.
- Era um garoto iluminado. Amigo. Todos nós gostamos dele. Menino de ouro. Ativo. Calado, mas ativo. Determinado. Estudioso. Muito querido por todos. Ele era um anjo.
- Meu filho vai ficar aqui. Eu vou embora sozinha. Minha vida está um inferno. Vou enlouquecer. O que eu vou fazer agora? Ontem, pela manhã, ele me estendeu a mão, me pediu benção e disse: Mamãe, já estou indo. Eu disse: tenha muito cuidado, meu filho. E ele respondeu: pode deixar mamãe.
- O trânsito está muito perigoso. Dirigir em BR é muito perigoso. Quando chega a hora, chegou. Deus sabe o que faz. Eu não deixaria meu filho sair assim.
Dia 07 de outubro de 2006. Porto Velho, Rondônia, Brasil. Um grupo de garotos sai bem cedo, para participar de um torneio de futebol, em Ariquemes, cidade distante 196 km, da Capital, Porto Velho.
Segundo o Jornal Estadão do Norte, do dia 08 de outubro de 2006 o acidente vitimou duas crianças e um adulto, a motorista, após a Van que transportava alguns atletas mirins ter sido imprensada por dois caminhões. Segundo um Policial Rodoviário Federal: "se o caminhão bate frontalmente com a Van, provavelmente todas as crianças teriam morrido". Ainda segundo a polícia: "apesar das várias sinalizações ao longo da rodovia, são poucos os motoristas que as respeitam integralmente. Essa imprudência sempre resulta em acidentes feios e geralmente com vítimas fatais". Além da desobediência à sinalização para ultrapassagem, a velocidade máxima nunca é respeitada pelos condutores que apesar de serem multados teimam em trafegar em alta velocidade. "Os condutores deixam para desacelerar só quando vêem uma blitz ou se aproximam do posto da PRF", segundo um patrulheiro. Há registros de desrespeito a velocidade máxima que beiram o ridículo, em pistas que não se deve trafegar acima dos 40 km por hora, há condutores que andam a mais de 140 km por hora. "É um absurdo, mas existe".
Falha humana. A esse fator é atribuído 99,9% dos acidentes automobilísticos. Não posso provar, mas pergunte-se: quantos acidentes de trânsito que você conhece foram provocados por falha técnica? Não conheço nenhum. O que há são muitas justificativas como buraco na pista, falta de sinalização, falta de visibilidade, pressa, muita pressa, esperteza, amor a velocidade, falta de policiamento, cansaço, álcool, drogas. Resumindo, desconcentração no ato de dirigir.
A desconcentração é geralmente atribuída a fatores como pouco perigo no que estamos fazendo. Concentração exige informação e treino. Dirigir um carro, geralmente, não é encarado como algo de grande responsabilidade, e sim como uma atitude de status. Dirigir um carro é poder. Chega a ser diversão, mesmo quando trata-se de trabalho.
O governo federal, estadual e muito menos o municipal, não deveriam tirar dinheiro para conscientização de motorista. O que os órgãos de trânsito deveriam fazer é cobrar dos seus respectivos executivos a inclusão da educação no trânsito no ensino básico, médio e fundamental, além de sinalizar devidamente as vias de trânsito automobilístico e fiscalizar e punir os motoristas e pedestres infratores.
Deveriam também cobrar critérios para aquisição de veículos e exigir critérios mais eficientes para a obtenção da carteira de habilitação. Um carro já poderia ser considerado uma arma de grande poder de destruição e com uma característica muito interessante, que é causar suicídio involuntário. No Brasil, morre mais pessoas de que qualquer dessas guerras (o Bush chega a ficar com inveja) que existem por aí, e observe que somos um povo pacífico, imagine se nos rebelarmos, hein?
Imagine uma pessoa que nunca teve nenhuma orientação formal sobre condução de um veículo. De uma hora para outra, uma pessoa que nunca dirigiu precisa apenas de 15 aulas de 1 hora, um curso teórico sobre mecânica, primeiros socorros e as leis, 20 horas. Faz o teste simples de direção e mais um motorista na rua. E agora com CNH. Quando dirigia sem carteira já era arrogante, imagine agora com carteira. Dane-se o mundo, agora estou dirigindo.
Dirigir, definitivamente, não é uma atitude mecânica, é totalmente emocional. Segundo Alice Beatriz Bittencourt de Fernándes, autora do livro A Falha Humana nos Acidentes de Trânsito, da Musa Editora Musa, "a vida é um direito e respeitá-la é sentimento indispensável. É preciso educar os sentimentos. É preciso reconhecer que o homem não é só intelecto e que a afetividade também faz parte do ser humano. Medidas preventivas devem ser tomadas e a educação para o trânsito seguro deve ser intensificada nas escolas, na família, nas igrejas através de campanhas educativas, auto-escolas bem organizadas e também pela inserção do tema nos currículos escolares."
Vejam só, muitas mortes, mutilações poderiam ser evitadas se o respeito à vida, que começa com o respeito às pessoas, fosse um princípio muito valorizado e praticado. Talvez seja exatamente esse o ponto: a vida humana está relegada a qualquer plano, menos ao primeiro. Mata-se por qualquer motivo. O trânsito pode ser comparado a uma floresta onde impera a lei do mais forte. Pela hierarquia, iniciando pela base da pirâmide: pedestre, ciclista, motoqueiro, condutor de carro pequeno porte, de médio porte e os condutores de caminhão e agora de avião. O poder aumenta de acordo com o som instalado nesses veículos. O condutor de um carro equipado com um som muito potente pode passar a ser predador de um carro de porte médio e até de um caminhão sem som. Pois atrás do som há o poder aquisitivo e todo o direito de utilização da pista, calçadas e até por cima de seres vivos, cachorros, gatos e animais humanizados.
Outro caso é a pura falta de educação. Se um usuário do trânsito, em qualquer parte da pirâmide dos condutores, for bem educado, começar a dirigir já com a cultura da responsabilidade da preservação da vida, iniciada desde quando começou a ir à escola, e no âmbito familiar, o mundo seria diferente em todos os aspectos. A educação principal é realmente o respeito à vida. Na verdade o que está acontecendo atualmente, é que em qualquer atividade em que há risco de vida, a preservação da vida está em segundo plano. O que está acontecendo no trânsito é pura conseqüência da desvalorização do principio VIDA HUMANA.
Alice afirma em seu livro "se a finalidade da educação é um ideal a ser atingido, os objetivos a curto e médio prazos têm-se mostrado insuficientes, aquém das expectativas." Ora, ninguém é educado para preservar vida em curso de Direção Defensiva de 20 horas ou menos.
Há um paradoxo muito interessante: quanto mais se fabricam veículos com mais poder de matar menos se exige do condutor requisitos humanos.
Uma citação do livro da Alice. Buscaglia (1996) em seu livro Vivendo, Amando e Aprendendo, transcreve um texto de Haim Ginott, que lhe foi passado por uma diretora de escola: "Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhuma pessoa devia presenciar. Câmaras de gás construídas por engenheiros ilustrados. Crianças envenenadas por médicos instruídos. Bebês mortos por enfermeiras treinadas. Mulheres e bebês mortos a tiros por ginasianos e universitários. Assim, desconfio da educação. Meu pedido é o seguinte: ajudem a seus discípulos a serem humanos. Os seus esforços nunca deverão produzir monstros cultos, psicopatas hábeis ou Eichmanns instruídos. Ler, escrever, saber História e Aritmética só são importantes se servem para tornar os nossos estudantes humanos". Comentário da Alice: "É um depoimento estarrecedor. O processo educativo não deve prescindir das conquistas tradicionais científicas e tecnológicas que constituem o patrimônio cultural, mas precisa impregná-lo de sentimento, afetividade, ética e civilidade".
Vamos fazer uma auto-crítica e umas críticas sinceras: Nós realmente estamos construindo seres humanos em nossas casas? O atual modelo educacional está contribuindo com a formação humana de nossos filhos? A sociedade está nos fazendo refletir sobre a questão humana? Os valores não estão invertidos? Estamos valorizando mais o material que os relacionamentos? Se você respondeu sim a todas as perguntas, pergunto: nós e nossos filhos temos alguma chance de seremos verdadeiros seres humanos? Há espaço para o aspecto humano na atual e futura forma de viver em sociedade? Teremos alguma chance de vida humana no trânsito? Em casa? Na escola?
Não adianta, dirigir é comportamento e comportamento tem a ver com caráter. Portanto, dirigir é ser e não estar, logo, digirir é caráter, você é bom ou mau caráter. Tem a ver com educação, formação, princípíos, valores. E nossos valores estão desvalorizados, ao contrário do Real. Quem desvalorizou os nossos valores?
Acredito que ainda verei muitas cenas como as de hoje: um caixão com o garoto de 12 anos dentro, que estava brincando de realizar seu sonho que era ser um jogador de futebol, cercado por mais 20 outros tão jovens quanto ele, chorando. Sua irmã, inconsolável, passando a camisa sobre o caixão, tentando enxugar o suor, pois ela acreditava que ele estava sentindo calor, e se perguntando: por quê?
O que realmente faz sentido hoje? Desculpem-me, mas, definitivamente, ou nós fazemos alguma coisa séria para obrigar nossos governantes parar de brincar de fazer educação e principalmente revermos os nossos conceitos de educação familiar ou essa história se repetirá com muito mais freqüência. O pedido de desculpas é porque qualquer assunto que seja abordado, sempre volta para o lugar comum, nossa responsabilidade, nós somos os verdadeiros culpados. Estou quase chegando a conclusão que os políticos não tem culpa de nada, nós somos os verdadeiros responsáveis. Somos nós os verdadeiros operadores das regras sociais, somos nós quem permitimos os desvios de conduta, pois muitas das vezes, somos nós infratores. Precisamos nos auto-criticar sistematicamente, e claro, criticar os nossos políticos. Mas eles são produtos do nosso meio.
E para encerrar uma frase de Buscaglia retirada do livro da Alice: "Ensinamos às pessoas, tudo no mundo, a não ser a coisa mais essencial: a vida. Ninguém lhe ensina a ser um ser humano e o que significa ser um ser humano".
Preservar a vida através do respeito às pessoas, principalmente no trânsito, é um princípio para MUDAR PARA VIVER MELHOR.
Esse texto é dedicado ao Sr. ANTÔNIO LOBO LELO, pai do BRUNO GUSTAVO, de 12 anos que morreu em acidente de trânsito, em Porto Velho/RO.
CONVITE: Se vovê está no Orkut, cadastra-se na comunidade MUDAR PARA VIVER MELHOR, e contribua com a disseminação dessa filosofia de vida. O endereço é http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4897543.
Fonte: Sérgio Ramos (www.sergioramos.com.br)
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