Quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024 - 07h18
Consulta-me, o eminente Senador Hamilton Mourão, sobre a PEC 42/23, que
pretende eliminar o direito de pleno exercício da cidadania e de direitos
políticos de militares das Forças Armadas e das Policiais Estaduais, alterando
cláusula pétrea da Lei Suprema (artigo 60, §4º, inciso IV).
Nesta esteira, segundo o texto inicial da referida PEC, o artigo 14 passaria
a dispor nos seguintes termos:
“Art. 14. (...)
§ 8º Os militares alistáveis dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios são elegíveis, atendidas as seguintes condições:
(...)
§ 8º-A O militar alistável das Forças Armadas é
elegível e, no ato do registro da candidatura, fica transferido para a:
I - reserva não remunerada, se não preencher as
condições de transferência a pedido para a inatividade remunerada; ou II -
reserva remunerada, se preencher as condições de transferência a pedido para a
inatividade remunerada.
(...)
RESPOSTA
Em breve opinião legal, respondo ao ilustre parlamentar minha opinião a
respeito.
Todo o Título II da Constituição (artigos 5º a 17) é considerado o mais
relevante da Lei Suprema.
É que uma Constituição é destinada ao povo, cabendo aos governantes servirem-no,
pois para isto, numa democracia, foram pelo povo escolhidos.
Ora, o referido Título é dedicado aos direitos e garantias fundamentais,
sendo o disposto no artigo 5º, que enumera grande parte dos direitos individuais,
e os artigos 12 a 17 dedicados a nacionalidade e a cidadania (direitos políticos),
os que completam o elenco e dimensão do ser social que é o homem, ou seja, como
indivíduo e como integrante do meio em que vive e exerce sua cidadania.
Tenho para mim, nada obstante posições doutrinárias contrárias, que também
os direitos sociais complementam as garantias fundamentais da pessoa humana
(cidadão ou residente), sendo expressão sobrevivencial da espécie, colocando-os,
portanto, entre os direitos individuais, aqueles do artigo 6 a 11.
Não sem razão, deu o Constituinte ao Título II a denominação de “Dos
Direitos e garantias fundamentais”.
Assim sendo, entendo que - e foi esta a posição de Celso Bastos e minha,
nos Comentários que fizemos pela Saraiva de 1988 a 1998, em 15 volumes e em
torno de 10 mil páginas, da Carta da República -, o indivíduo, sua
nacionalidade, cidadania e dimensão laboral, conformam a integridade de sua
personalidade, que ficaria amputada se qualquer destas dimensões fosse lhe
tirada.
Nos 20 meses da Constituinte, muitas vezes consultados por
Constituintes, pelo presidente Ulysses Guimarães e relator
Bernardo Cabral, sobre participarmos de audiências publicas, foi o que
sentimos, os dois, naqueles trabalhos em que parlamentares e especialistas atuaram
intensamente.
Na ocasião, decidiram os elaboradores do texto máximo que as 2 cláusulas
pétreas da Constituição anterior (República e Federação) deveriam ser
alargadas, consideralvemente; daí surgindo o artigo 60, §4º da Carta Magna com
a seguinte dicção:
Art. 60. A
Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Entendo até mesmo que o §4º, ao falar em direitos e garantias
individuais, isto é, pertencentes a todos os cidadãos, residentes e pessoas no
território nacional, que teriam proteção sob determinados aspectos legais, que a
imodificabilidade constitucional estender-se-ia além do Título II, sempre que direitos
fundamentais de dimensão individual fossem atingidos, como, por exemplo, no
tópico do artigo 150, em que se percebe esta extensão, sendo o seguinte o seu discurso:
Art. 150. Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios: (...). (Grifo meu).
O certo, todavia, é que os direitos e
garantias fundamentais PODEM SER ACRESCIDOS, mas não há possibilidade
constitucional de reduzi-los sem que seja ferido drasticamente o direito do
indivíduo em uma democracia. É, para mim, cláusula pétrea todos os direitos
individuais garantidos pela Lei Suprema, estando entre eles, enquanto houver
democracia no país, o direito de poder exercer a cidadania em sua plenitude nos
termos da Lei Suprema aprovada em 05/10/1988.
Ora, o §
8º do artigo 14 da Constituição versado está como se segue:
Art.
14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto
direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
(...)
§ 8º O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições:
I - se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da
atividade;
II - se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela
autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da
diplomação, para a inatividade.
É que a cidadania é a dimensão maior do ser gregário, que é o ser
humano, pois de poder viver e decidir no ambiente que vive.
Ora, se a simples inscrição para concorrer nas eleições fará o militar ou
perder todos os direitos de sua carreira, inclusive o de remuneração na reserve
ou não, se houver pedido para a inatividade, há uma imensa diminuição de
direitos da cidadania incompatível com um Estado Democrático de Direito.
Tornar o militar, enquanto na ativa – que exerce função tão relevante, a
ponto de o Constituinte de 88 ter denominado o Título V dedicado às Forças
Armadas e Policiais Militares e Guardas Municipais de “Da Defesa Do Estado
e das Instituições Democráticas” -, um cidadão amputado
na sua ampla cidadania, é macular drasticamente o direito maior que os cidadãos
tem, numa real democracia, razão pela qual entendo que a PEC 42/23 é de
manifesta inconstitucionalidade.
O §8º
não pode ser modificado, pois garante direito que não pode ser decepado do
exercício da cidadania. Os militares não são cidadãos de segunda categoria por
terem escolhido a carreira das armas. Não podem ser desconsiderados pela
sociedade como párias inúteis no exercício da cidadania, sem direito de
concorrer a cargos públicos para servir o país de outra forma, a não ser com
perda de direitos adquiridos em sua carreira militar.
Certa vez, o Ministro Francisco Rezek, em audiência na Suprema Corte, ao
detector uma manifesta inconstitucionalidade, utilizou-se da seguinte imagem,
dizendo que a fumaça do bom direito era tão forte contra a lei impugnada que
ele mal conseguia ver os Ministros que se encontravam na bancada oposta no
plenário físico da Instituição.
É como vejo esta PEC que pretende reduzir a nobreza de uma função que os
Constituintes, no Título V, consideraram relevante para a defesa da Pátria e
das Instituições, tornando os militares cidadãos inexpressivos, de segunda
categoria, com restrições ao sagrado direito, num regime democrático, de
concorrer às eleições.
São
Paulo, 06 de fevereiro de 2024
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Ives Gandra da
Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip,
Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e
Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor honorário das Universidades
Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia),
doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das
PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do
Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e ex-presidente da Academia
Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advog ados de São Paulo (Iasp).
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