Terça-feira, 4 de junho de 2024 - 15h34
O Ministério Público Federal (MPF) alerta que a Lei 14.757/2023
- que flexibilizou as regras para a concessão de títulos de terra pública - vai
gerar insegurança jurídica e colaborar para o acirramento dos conflitos no
campo e para a grilagem de terras na Amazônia Legal. A norma extingue as
chamadas cláusulas resolutivas, que são condições impostas a pessoas que
receberam títulos de assentamento concedidos pela União até 2009, para ocuparem
terras públicas destinadas à reforma agrária, com finalidade agrícola e social.
Entre as cláusulas, estavam a
proibição de venda por dez anos, respeito à legislação ambiental e uso da terra
para agricultura, entre outras. Caso essas condições não fossem cumpridas, o
título era anulado e a terra devolvida ao poder público. Com a Lei 14.757/2023,
aprovada em dezembro, pessoas que não cumpriram essas condições passarão a ter
direito sobre as áreas ocupadas irregularmente. Segundo o procurador regional
dos Direitos do Cidadão de Rondônia (PRDC), Raphael Bevilaqua, a norma obriga a
União a entregar milhões de hectares de áreas públicas na Amazônia Legal, que
hoje são de sua propriedade, em benefício de latifundiários e especuladores
imobiliários.
“Com a extinção das cláusulas que
condicionaram a transferência desses imóveis ao atendimento de certas
finalidades públicas, haverá a venda de bem público a particular com dispensa
de licitação, por valor inferior ao de mercado, sem a exigência de qualquer
contrapartida. Isso equivale a entregar milhões de hectares de imóveis públicos
a quem não deu função social à terra, promovendo uma verdadeira antirreforma
agrária no Brasil”, destaca Bevilaqua. O dispositivo havia sido vetado pelo
presidente da República, mas o veto acabou sendo derrubado, no último dia 9,
pelo Congresso Nacional.
Segundo o PRDC de Rondônia, a lei
fere uma série de disposições constitucionais, como o direito à reforma agrária
e o princípio da função social da propriedade. Além disso, ela causa
insegurança jurídica em relação a essas áreas públicas, muitas delas já em
processo de destinação para a reforma agrária. Segundo o procurador, só em
Rondônia, mais de 50% das áreas em disputas possessórias e destinadas à
reforma agrária são públicas e apropriadas indevidamente com base em títulos
nulos. Tramitam no estado pelo menos 130 ações judiciais relacionadas ao
descumprimento de cláusulas resolutivas, sendo que ações dessa natureza também
foram ajuizadas pelo Incra e pela União em outras unidades da federação.
São casos em que os imóveis que
foram vendidos pelo Incra nunca foram efetivamente ocupados por que os
adquiriu, mas sim por terceiros sem qualquer relação com o contrato original,
ou foram vendidos a outras pessoas antes do cumprimento das cláusulas
resolutivas. Há também casos de terras ocupadas por grupos de trabalhadores que
atualmente reivindicam de forma individual ou coletiva a propriedade dessas
áreas, por usucapião ou com pedidos de regularização fundiária, bem como
requisições para incorporação ao Programa Nacional de Reforma Agrária, entre
outras situações.
Antirreforma
agrária – Outro ponto da lei apontado por Bevilaqua como preocupante
é o que prevê, para essa regularização, a atualização dos laudos que atestam o
grau de utilização da terra e de eficiência na exploração de acordo com as
condições atuais da propriedade, sem a necessidade de vistoria. No entanto, os
índices de produtividade que balizam a aferição do cumprimento da função social
da terra estão desatualizados – desde 1975 – e seriam incapazes de refletir o
que seria a produção razoável a se exigir de um imóvel de grandes dimensões nos
dias atuais. Dessa forma, segundo o procurador, a desapropriação para fins de
reforma agrária ficará prejudicada.
O PRDC de Rondônia lembra que a floresta amazônica possui 143 milhões de
hectares de terras ainda não destinadas ou que apresentam incertezas sobre sua
destinação. Isso representa 28,5% do total da Amazônia legal e é o equivalente
aos territórios de França, Alemanha e Espanha somados. Toda essa área é
potencialmente afetada pela nova lei.
“Não foram preservadas pela Lei
sequer as situações em que o domínio esteja sendo questionado nas esferas
administrativa ou judicial, que sejam objeto de desapropriação por interesse
social para fins de reforma agrária, nem as áreas sobre as quais recaiam
interesses públicos ou sociais, chancelando um verdadeiro saque ao patrimônio
público nacional”, afirma o PRDC.
Todas essas ponderações em
relação à Lei 14.757/2023 constam de documento encaminhado por Raphael
Bevilaqua ao procurador-geral da República a quem cabe analisar se é o caso de
acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para questionar a constitucionalidade
da norma.
Títulos
– Entre 1970 e 1980, o Estado Brasileiro promoveu titulações
de terras usando diversos tipos de contratos para assegurar a manutenção da
atividade agrária (destinação social da terra), o cumprimento das condições de
pagamento e a proibição temporária de venda do imóvel rural.
Como fruto dessa prática, áreas
da Amazônia passaram a ser exploradas por todo tipo de empreendedores que,
muitas vezes, nem sequer tinham qualquer relação com a atividade agrícola:
comerciantes, especuladores da Bolsa de Valores, bancos comerciais, fundos de
investimento, multinacionais automobilísticas, entre outros. Só em Rondônia,
1,58 milhão de hectares foi destinado a apenas 1,1 mil licitantes.
Nesse contexto, as cláusulas resolutivas
serviam para extinguir de forma automática os contratos daqueles que não
cumprissem as condições estabelecidas. Hoje, esses contratos existem apenas
fisicamente e não têm validade no mundo jurídico, o que resulta num mercado
bilionário ilegal de títulos podres, que causam conflitos judiciais e mortes
violentas.
Os estados de Rondônia e Pará são
os líderes nacionais no número de mortes em conflitos agrários. Segundo o MPF,
quase 77% das áreas com disputas fundiárias/possessórias em Rondônia são de terras
públicas apropriadas indevidamente por pessoas com base nesses títulos nulos. O
MPF defende que essas terras podem ser destinadas para a reforma agrária, sem
que haja pagamentos indevidos de indenizações – usando recursos públicos apenas
para pagamento de eventuais benfeitorias e não o pagamento pela terra, que é da
União.
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