Quarta-feira, 13 de setembro de 2017 - 07h04
Carta Aberta ao Zezé de Camargo
Por Ernesto José de Carvalho, o Ernestinho, no Viomundo
Caro Mirosmar, mais conhecido como Zezé de Camargo,
Acordei hoje e de cara recebi com tristeza sua entrevista, onde o senhor afirma que não houve Ditadura no Brasil e sim uma liberdade vigiada. Deixe-me lhe contar uma história.
Meu pai, assim como você e milhões de brasileiras e brasileiros, veio pra São Paulo atrás de uma vida melhor, também vindo do interior do país, no caso do meu pai e seus quatro irmãos e uma irmã saíram de Muriaé-MG, nos anos 50, todos com idade abaixo de 15 anos.
Também trabalharam na roça pra ajudar no sustento da família (ouvi dizer que também foi seu caso), ao chegar a São Paulo, período ainda da industrialização, passaram a trabalhar no pesado, meu pai Devanir trabalhava como louco de dia e à noite fazia curso para se tornar torneiro mecânico, meus tios Jairo e Joel, gráficos, e o Daniel e Derly, metalúrgicos.
A história deles se confunde com a sua e a de milhões de retirantes até aqui, só até aqui.
Diferentemente de você todos eles passaram a se indignar com o sofrimento vivido pela grande maioria de seus semelhantes, em condições de extrema pobreza causada pela enorme desigualdade social, imposta por uma política escravagista, excludente, elitista e cruel.
No início dos anos 60, todos eles já estavam comprometidos com a construção de uma resistência constitucional via sindicatos de classe, movimentos sociais e partidos políticos — assim como deve ser num estado democrático.
A eleição de 1960 levou à presidência pelo voto direto o Sr. Jânio Quadros e seu Vice João Goulart.
Com a renúncia de Jânio (forças ocultas, lembra?), João Goulart assumiria a presidência em 1961, propondo as reformas de base, Educacional, Política, Agrária e Fiscal, que atenderiam às demandas da população mais vulnerável e desprotegida economicamente.
Por essa razão, unicamente por ela, setores da elite econômica se aliaram aos militares — digo, alguns setores do Exército brasileiro — e passaram a conspirar para que o Vice-Presidente não assumisse o cargo.
Entre 1961 e 31 de Março de 1964, o que se viu no país foi uma sequencia de um jogo antidemocrático, criando uma tensão política insustentável.
Na noite de 31 de Março de 64, tiraram nosso presidente à força do cargo.
A partir daí, para manter o status quo, os militares implementaram uma das mais sanguinárias ditaduras do mundo, caro Zezé.
Perseguiram e mataram seus opositores políticos — como o Deputado Rubens Paiva, preso e morto nos porões da Ditadura — jornalistas como Wladimir Herzog, preso e morto nos porões da ditadura, artistas presos, torturados, banidos do país e muitos assassinados, também nos porões da Ditadura.
Muita gente, mas muita mesmo, de diversos setores da sociedade, resistiu à violência do estado, muitos camponeses assim como meu pai e tios, também resistiram, diferentemente de você, que virou as costas aos seus contemporâneos, à sua gente simples, da roça, que carrega em seus semblantes a pele marcada pelo sol forte do trabalho duro do campo.
Essa gente nunca se esqueceu das belas paisagens do campo, da simplicidade do interior, da solidariedade dos vizinhos, da confiança entre homens e mulheres.
Acima de tudo, eles nunca perderam a dignidade.
Meu pai Devanir José de Carvalho foi preso e torturado até a morte em 5 de Abril de 1971, aos 28 anos; minha mãe foi presa e banida do país aos 25 anos; meu tio Jairo José de Carvalho, preso, torturado e banido do país aos dezessete anos; meu tio Derly José de Carvalho, preso, torturado e banido do país aos 30 anos; meu tio Daniel José de Carvalho capturado aos 26 anos, nunca encontramos seu corpo; meu tio Joel José de Carvalho capturado aos 25 anos, nunca encontramos seu corpo; eu, aos três anos de idade, sai do Brasil clandestinamente com minha mãe, vagando por vários países, fugindo de outras ditaduras e do pavor de sermos capturados pelos senhores que “vigiavam” a sociedade brasileira.
Desculpe, caro Mirosmar, a Ditadura existiu, e foi uma das mais sanguinárias da história recente da humanidade.
Ernesto José de Carvalho
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