Segunda-feira, 6 de janeiro de 2014 - 06h33
"Não será surpresa se as promessas rondonianas da Constituição de 1988 forem abandonadas de vez e se novas manifestações de ódio aos índios pipocarem pelo país", escreve Marcelo Leite, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 05-01-2014.
Eis o artigo.
Foi preciso que índios mantivessem por sete anos a cobrança ilegal de pedágio nos confins da Transamazônica e que habitantes de Humaitá e Apuí (AM) pusessem fogo na Funai para que o país se desse conta da existência de um povo e de uma terra indígena chamados Tenharim.
Até então, essa ignorância específica se confundia com o desconhecimento geral sobre a realidade de 241 povos indígenas do Brasil. Considerá-los sempre em sua generalidade - a "questão indígena" -, como preferem a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e o aliado Palácio do Planalto, é o caminho certo para não resolvê-la.
Desse ponto de vista abstrato, sempre parecerá desmesurado que as 690 áreas reconhecidas aos índios ocupem 13% do território nacional. Um olhar mais detido, contudo, revelará que 98,5% desse 1,1 milhão de quilômetros quadrados se encontram na Amazônia.
A floresta é aquela parte do país na qual sobreviveu ou se refugiou a população sobrevivente de indígenas. Só nas últimas décadas foi alcançada pela frente de expansão agropecuária, que já esbarra em limites para a incorporação contínua de terras baratas ou griláveis.
O mero 1,5% de terras indígenas fora da Amazônia é um bom indicador da dificuldade de reconhecê-las no Brasil perto da costa, onde os índios foram primeiramente exterminados ou assimilados. E é aí que se concentra boa parte da centena de terras ainda por homologar.
Essa também é a fonte primária das dificuldades judiciais e eleitorais que o Ministério da Justiça busca reenquadrar com a portaria que deve dificultar o reconhecimento. A situação é particularmente conflituosa em Mato Grosso do Sul, mas também há litígios no Sul e no Nordeste do país.
Esses processos remanescentes estão com 20 anos de atraso. Pela Constituição Federal, deveriam ter sido encerrados em 1993.
Nessas duas décadas, o agronegócio cresceu. De 1997 a 2013, o saldo de sua balança comercial saltou de US$ 15 bilhões a quase US$ 80 bilhões. Sem ele, o comércio exterior do país seria deficitário.
A iniciativa política está nas mãos dos ruralistas, favorecidos ainda pela representação distorcida de Estados produtores de bens primários na Câmara dos Deputados e pelo peso adquirido, no governo do PT, pelo maior partido dos rincões, o PMDB.
Nessa configuração, não será surpresa se as promessas rondonianas da Constituição de 1988 forem abandonadas de vez e se novas manifestações de ódio aos índios pipocarem pelo país.
Fonte: Unisinos
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