Segunda-feira, 2 de outubro de 2017 - 10h28
Passados 25 anos do maior massacre da história dos presídios brasileiros, ainda pode levar mais alguns anos para que alguém cumpra pena pelo Massacre do Carandiru. A expectativa do Ministério Público, autor da denúncia que levou policiais ao banco dos réus, é que o caso possa levar mais dois anos para ser analisado e julgado. Isso se o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir manter os cinco júris populares já realizados sobre o caso, em que 74 policiais foram condenados pelas mortes de 111 detentos.
“Há todo um envolvimento de minha instituição no sentido de tentar segurar aquele resultado. Nossa projeção, nossa expectativa, é que isso [ocorra] em dois anos. E vamos fazer de tudo para que essa expectativa vingue. Mas não posso garantir. Pode ser daqui quatro, cinco anos”, disse a procuradora de Justiça criminal, Sandra Jardim, em entrevista à Agência Brasil. “O que posso dizer é que o tempo só é benéfico para a impunidade”, ressaltou ela.
Mais de 20 anos após o massacre, cinco julgamentos foram realizados sobre o caso e, em todos eles, os policiais que estavam em ação naquele dia e que confessaram ter atirado foram condenados. A defesa dos policiais decidiu recorrer ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pedindo a anulação dos julgamentos alegando que não seria possível individualizar a conduta dos policiais, dizendo quem atirou em quem. Em setembro de 2014, os desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Tribunal do Júri aceitaram a argumentação da defesa e anularam os julgamentos anteriores. O Ministério Público recorreu e, em abril deste ano, a 4ª Câmara Criminal do tribunal manteve a decisão de anular os julgamentos, mas determinou que os policiais sejam julgados novamente. Novos recursos foram apresentados, tanto pela defesa dos policiais quanto pelo Ministério Público, que levou quatro recursos para serem analisados pelo próprio Tribunal de Justiça paulista, dois deles especiais e dois extraordinários. Na semana passada, o TJ concedeu os dois recursos especiais e rejeitou os outros dois, ao qual o MP disse que deve recorrer novamente.
“Estamos estimando que, entre o recurso que vamos ter que colocar e os recursos que a parte contrária tem para responder, estimamos até abril [de 2018] para terminar aqui, ainda no Tribunal de Justiça em São Paulo. Em abril, temos a projeção de que vai subir [para a instância superior, o STJ]. Aí, subindo, esperamos para distribuir. Desde que suba, vamos pedir uma audiência com o relator do processo assim que for distribuído”, disse a procuradora, ressaltando que assim que o processo chegar ao Superior Tribunal de Justiça, o Ministério Público deve pedir urgência. “Vamos a Brasília tentar sensibilizar o ministro-relator da importância de julgar isso no mais breve espaço de tempo. Até porque a prescrição está correndo. Embora esses crimes tenham um lapso longo – porque voltou a correr em fevereiro de 2010, quando teve a pronúncia – já se passaram sete anos e, em mais 13 anos, está prescrito”, explicou.
Dos vários crimes associados ao massacre, todos estão prescritos, com exceção do homicídio qualificado, disse a procuradora. “Todos que eram lesão – os policiais foram denunciados por inúmeras lesões corporais e tentativas – esses todos prescreveram. Todos os qualificados, como os homicídios, não prescreveram”, disse ela. “Se não condenar, não tiver uma sentença condenatória em 13 anos, está prescrito”, lembrou.
Apesar da demora, a procuradora Sandra disse à reportagem da Agência Brasil que espera que os policiais cumpram pena pelo massacre antes que o crime de homicídio qualificado prescreva: “tenho maior esperança nisso”.
A demora no julgamento do caso também é esperada pelo advogado de defesa de parte desses policiais, Celso Vendramini. “Todos os recursos são demorados porque a falha não é da Legislação brasileira. A falha é que o material humano é muito pouco. O Judiciário está falido não por incompetência dos magistrados, mas porque faltam juízes. Por esse motivo é que se demora para julgar recursos. O que não se pode é passar o processo do Carandiru na frente dos outros. Tudo tem sua ordem de chegada”, disse o advogado. Questionado pela reportagem se ele acreditava que o caso ainda iria demorar, ele respondeu positivamente. “Calculo que sim”, disse.
Justiça desigual
Tanto o advogado dos policiais que são acusados pelas mortes na penitenciária do Carandiru quanto uma das vítimas da ação recorreram ao princípio da igualdade para falar à Agência Brasil sobre os 25 anos da maior tragédia ocorrida em presídios brasileiros: o Massacre do Carandiru.
O contexto foi diferente, mas ambos concordam em como a Justiça pode ser desigual na busca por ser justa.
Para David Oreste, 73 anos, sobrevivente do massacre, o caso demonstra que “a Justiça não é igual para todos”. Ele, que cumpriu pena por assalto e estava preso no Carandiru quando ocorreu o massacre, lamenta que, passados 25 anos, ninguém tenha cumprido pena por essas mortes. Se ele cumpriu pena por assalto, diz Oreste, os policiais também deveriam cumprir pena pelas mortes provocadas no Pavilhão 9.
“Eles [policiais] não cumpriram [pena]. É como se diz: a Justiça não é igual para todos; é desigual. Mas fazer o que? É a Justiça que vai dizer sim [se são culpados] ou não. Acredito que eles não vão ser presos não”, disse ele, que conta que nunca vai esquecer o que aconteceu naquele dia. “Isso não vai sair nunca da minha cabeça”, disse.
“Eu cumpri 20 anos e mais dez de condicional. São 30 anos: 20 no fechado e dez no condicional. Agora estou livre completamente”, disse David Oreste. “A gente sente uma revolta porque o pessoal chegou atirando, matou mais de 200 pessoas. A gente estava com 2.212 presos no Pavilhão 9 naquele dia. No outro dia tinham só 2 mil, então morreram mais de 200. Conseguiram apurar 111, mas é claro que morreram muitos mais”, disse. “É um crime absurdo, um massacre. Massacre é um crime quase igual aquele contra a humanidade. Não tem perdão, não tem desculpa”.
Oreste relembra o que aconteceu naquele dia. “O problema ali começou com uma divergência entre alguns companheiros. Os guardas abandonaram o pavilhão e disseram que os presos estavam armados, com armas de fogo. Aí mandaram entrar os caras armados [policiais] e eles chegaram atirando. A maioria dos caras que morreram, morreram despidos, sem roupa. Se o cara estava despido, não tinha arma. Então foi um massacre. Morreram muitos em cerca de uma hora mais ou menos”, contou ele.
Já o advogado Celso Vendramini, que defende parte dos policiais denunciados pelo caso [ele defende os policiais que integram o Grupo de Ações Táticas Especiais, o Gate e o Comandos e Operações Especiais, o COE], disse em entrevista à Agência Brasil, que não se pode condenar todos os policiais pelas mortes porque pode haver aqueles que, mesmo estando no Carandiru naquele dia, não tenham atirado. E também porque há policiais que são de policiamento de área – e não de batalhões especiais como são os acusados – que disseram que estiveram no Carandiru naquele dia, que atiraram e que sequer foram denunciados pelo Ministério Público.
“A lei tem que ser igual para todos. Do presidente até a mais humilde pessoa brasileira”, disse. “A condenação dos policiais no caso do Carandiru foi a maior injustiça que aconteceu no Judiciário paulista brasileiro. Veja bem, não estou dizendo que os policiais são inocentes. Estou dizendo que, como advogado, trabalho em cima de provas e não existem provas para se condenar ninguém ali. Foi uma coisa política”, disse Vendramini.
Para o advogado dos policiais, faltou investigação no caso Carandiru. “O Carandiru, se tivesse sido feito o que tem que ser feito, você conseguiria chegar aos autores porque tem PM inocente ali, que não deu tiro nenhum e que está respondendo junto”, disse Vendramini. “Não duvido que tenha policiais que tenham cometido excessos, mas a Justiça tem que mostrar quem foi”, acrescentou. “Não dá para condenar para que sirva de exemplo. Tem que condenar a pessoa certa, tem que condenar quem realmente praticou [o crime]. Excessos podem ter havido de ambos os lados, de presos e de policiais. Mas quem foi que cometeu esses excessos? Isso o Ministério Público tem de provar”.
Para a procuradora Sandra Jardim, o argumento utilizado por Vendramini sobre a necessidade de individualização de conduta “é falacioso”. “Toda vez que o Ministério Público examinou a prova e ele próprio entendeu que havia uma injustiça e o próprio policial disse que deu um tiro em uma barricada ou não deu um tiro lá dentro, o próprio Ministério Público pediu a absolvição”.
“Eram 330 policiais que tomaram parte da invasão e, desses 330, já foram destacados aqueles que disseram: ‘Não, eu não atirei’. Todos que disseram que não atiraram foram excluídos pela denúncia. O critério da denúncia foi admissão de autoria pelos próprios soldados e oficiais da corporação que admitiram que atiraram”, explicou a procuradora.
Já o secretário de Segurança Pública da época e o governador Luiz Antonio Fleury Filho não responderam pelo crime porque, segundo ela, “isso não chegou na esfera de previsibilidade deles”.
“Parou na esfera de previsibilidade do coronel Ubiratan Guimarães. O secretário de Segurança Pública delegou para este coronel, que compareceu lá. Quando o secretário pega o telefone e pergunta a ele [Ubiratan] se ele avaliou e tem certeza [sobre a invasão] e o Ubiratan diz que está tudo sob controle, não passa na esfera de previsibilidade dele. Porque ninguém que é governo vai dizer para entrar lá e matar as pessoas às 16h porque amanhã tem eleição e eu estou querendo ganhar. Isso foi uma tragédia e derrubou o secretário da época. O que acho que pode ter havido é o equívoco político”, falou a procuradora. “Politicamente eles erraram, mas juridicamente, dizer que estava na esfera da previsibilidade, que ele [secretário] podia imaginar que o coronel entraria daquele jeito, ninguém imaginava”, ressaltou.
Para ela, é importante a Justiça brasileira dar uma resposta para o massacre “para que ele não se repita”. “De algum modo, a decisão que manda a um novo júri, correndo risco deles [policiais] serem absolvidos, não acena com a pena da esperança para uma sociedade melhor. Ela indica para o policial que ele pode ir lá matar gente e não vai dar nada”, disse a procuradora.
Já David Oreste, sobrevivente do Carandiru, não acredita que essa resposta vá ocorrer algum dia. “A Justiça surpreende. Foi lá e anulou [os julgamentos]. O que eu imagino que vai acontecer? quando completar 30 anos [do massacre], vai ser uma anulação definitiva”, disse ele, desesperançoso.
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