Segunda-feira, 4 de julho de 2022 - 10h45
Estados Unidos, 1973. A
Suprema Corte decide que a Constituição daquele país deve proteger a liberdade
individual das mulheres grávidas e garantir a elas a opção de realizar um
aborto sem restrição governamental alguma. Ao final, foram revogadas diversas
leis federais e estaduais sobre aborto. O caso (Roe x Wade) foi um marco, um
avanço no âmbito dos direitos individuais e remodelou a política
norte-americana.
Estados Unidos, 2022.
Uma Suprema Corte de perfil conservador anulou a decisão da década de setenta e
permitiu novamente a criminalização do aborto no país. O caso em questão (Dobbs
x Jackson) reflete o novo quadro da política, da polícia e da sociedade
norte-americanas, hoje fortemente influenciadas pelo trumpismo - o Tea Party era ruim, mas podia piorar. E não é só. A
decisão de agora abriu-se espaço para um debate até então inimaginável, com
temas como o uso de anticoncepcionais – cláusulas que pareciam “pétreas” estão sob
ameaça real.
Corta para o Brasil,
2022. Em Santa Catarina, uma juíza tem posição contrária à realização de aborto
em uma menina de onze anos de idade, estuprada meses antes. Após grande (e
desnecessária) polêmica, o procedimento ocorreu. Os grupos de extrema-direita,
porém, celebraram o “feito” da juíza e excomungaram a criança estuprada.
Ainda no mesmo Brasil,
uma jovem atriz teve a intimidade devassada por um jornalista, que publicou a
informação de que ela, após ser vítima de estupro, deu o bebê para adoção. Os
grupos de extrema-direita partiram para o ataque e criticaram fortemente a
atriz – que, diga-se, é vítima de uma tragédia.
Apenas para outro
registro, somente em 2021 nada menos do que 17 mil garotas de até quatorze anos
de idade tornaram-se mães, segundo dados do SUS. São números oficiais, em que
não são contabilizados os casos “paralelos”, abortos clandestinos (que muitas
vezes geram óbito) e afins. Em pleno século XXI, podemos afirmar que Gilead é
aqui.
Lá como cá,
“celibatários involuntários” – o indivíduo que nenhuma mulher aguenta – e
estupradores não respondem pela violência sexual, porque as “famílias de bem”
seriam expostas. Porém, todos condenam o aborto.
Lá como cá, pelo ritmo
atual, em breve estaremos em discussão sobre a Lei do Divórcio – se bem que,
aqui, os “familiares de bens” já tem outras famílias. Talvez vejamos voltar a
proibição do uso de biquínis, a obrigação da burca (feminina, é claro) ou, quem
sabe, também retornem, com a força de lei, o casamento arranjado e a virgindade
antes das núpcias. Mas, se apertar um pouco mais, o baronato é capaz de
reinstituir o direito à “prima note”. Afinal, por que razão os pobres deveriam
ter tantos privilégios conjugais?
Lá como cá, são essas
“famílias de bens” que protagonizam e patrocinam o capitalismo mais selvagem
que o neoliberalismo pode produzir. Todos esses familiares de bens são
favoráveis ao armamentismo da sociedade civil, negam o aquecimento global –
porque isso afeta a produção do capitalismo –, investem contra os serviços públicos
(pobres devem ser limitados, em sua existência) –, propagam todo tipo de
negacionismo, Fake News, teorias da conspiração contra as vacinas, bem como
aplaudem os trilhões acumulados em suas parcas “famílias de bens”.
Lá como cá, enquanto os
dízimos chegarem em velocidade e constância, o aborto seguirá sendo a bola da
vez: “Vamos rezar, meus irmãos!”. Esses familiares de bens pouco se importam se
as crianças, meninas, jovens e mulheres pobres (sobretudo, as negras) serão
assediadas, abusadas, estupradas. O que importa é manter os bens unidos, na
Sagrada Família. Tampouco as “famílias de bens” se importunam com a
importunação sexual contra as mulheres: na Delegacia da Mulher alguém ainda
lhes perguntará se “a roupa era muito sensual e provocativa”. Seria a delegada?
Ou alguma juíza – isso mesmo, uma mulher – perguntará a uma criança grávida de
estupro: “você não pode segurar o bebê mais algum tempo”?
Lá como cá, o
fanatismo, o obscurantismo desse tipo de Clerical-Fascismo – com início na
Áustria de 1920/30 – seguirá o curso do retrocesso moral, a perda total da
perspectiva humana. Por que? Porque muito mais significativos são os bens da
família. As pessoas, a começar pelas crianças violentadas por pais, tios,
irmãos, primos, avôs, são bens, algumas são até vendidas como escravas sexuais,
mas a fortuna familiar vem em primeiro lugar. E no ápice do ápice está a
hipocrisia e os crimes que a acompanha.
Para prosseguir com o
debate, é preciso, por isso, antes retomar pontos fundamentais e indiscutíveis
sobre o assunto: independentemente das leis vigentes, procedimentos de abortos
acontecem e continuarão a acontecer. O que defendemos, então, é a legalização e
a promoção da realização de abortos seguros. Isso porque, quem morre hoje no
Brasil realizando abortos clandestinos são mulheres pretas e pobres, sem
condições de recorrer às clínicas seguras no exterior, e no momento de
desespero, recorrem às clínicas clandestinas, ao mercado ilegal de Cytotec e às
diversas plantas com combinações pavorosas que colocam suas próprias vidas em
risco.
Dessa forma, garantir o
aborto seguro é uma questão de saúde pública, e não de opinião ou crença. O
Direito Reprodutivo, portanto, é aquele que deveria garantir a liberdade das
pessoas que gestam se querem ou não ter filhos, no momento da escolha ou em
qualquer outro e quantos filhos a pessoa desejar. Isso tudo de forma livre,
segura e responsável. Por isso, o Direito Reprodutivo também deveria garantir o
acesso à informação sobre métodos contraceptivos, dos direitos e deveres de
todas as pessoas na criação dos filhos e de viver suas sexualidades sem medo da
violência.
Neste mesmo sentido,
não é possível anunciar argumentos em alto e bom som contra a legalização do
aborto falando sobre métodos contraceptivos, quando o projeto de educação é o
sucateamento da mesma, com também projetos cada vez mais conservadores e até
reacionários: a educação sexual é tantas vezes violentada por esses mesmos que usam do seu desconhecimento por
crianças e pessoas em situação de vulnerabilidade a fim de, justamente,
abusá-las.
A educação sexual é um
espaço seguro e de empoderamento para jovens saberem como se defender de
pessoas que buscam a ignorância dos demais como forma de elevar o seu poder. A
educação sexual é o caminho por onde o diálogo sobre sexualidade passa a ser
informativa e esclarecedora de fato.
Afinal, a Pesquisa
Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) de 2019 mostra que cerca de 36% dos jovens de
13 a 17 anos já tiveram alguma relação sexual. Os dados nos deixam mais
alarmados quando a pergunta foi sobre o Percentual
de escolares de 13 a 17 anos, dentre os que já tiveram relações sexuais, em que
um dos parceiros usou camisinha (preservativo) na primeira relação sexual; tendo
uma média de 64,1%. Ou seja, cerca de
35,9% dos escolares (jovens que frequentam a escola, onde a educação sexual
deveria ser aplicada) de 13 a 17 anos
não fizeram uso de preservativo na primeira relação sexual.
Isso nos mostra mais
uma vez que, por diversos meios, os jovens estão fazendo sexo. E nos calarmos
diante disso só reproduz a ignorância sobre os fatos, sobre a necessidade, por
exemplo, do uso de preservativo não só como forma de prevenção de gravidez
indesejada, mas contra ISTs (Infecções Sexualmente Transmitidas). Então, pregar
a abstinência sexual como forma de prevenção sequer condiz com a realidade:
jovens têm vontades, hormônios e são corpos livres.
Por isso, a educação
sexual é o meio para que o Direito Reprodutivo seja assegurado. Só assim
poderemos discutir a legalização do aborto a partir de patamares de escolha
justos. Só assim poderemos falar justamente sobre o uso de métodos
contraceptivos.
Ainda assim, o direito
à escolha deve ser sempre respeitado.
Nossa proposta é
utópica: apenas as mulheres deveriam votar e decidir sobre a ampla legalização
do aborto, num plebiscito unicamente feminino. É claro que a Constituição não
permite, e ainda que também a violem a cada segundo...talvez isso ocorra por se
tratar do feminino. É óbvio que nesse plebiscito não estariam em discussão os
casos permissivos de “aborto legal”. No entanto, de qualquer modo, deveria ser
reafirmada a regra feminista: “Meu corpo, minhas regras”. Sempre.
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