Quinta-feira, 29 de agosto de 2024 - 17h15
Em 2024, 214 municípios brasileiros terão
candidaturas únicas, um número superior às eleições de 2020. O que isso nos
mostra? Quais os significados mais gerais e os problemas inerentes ou
decorrentes desse fenômeno da política brasileira? Vejamos um pequeno passo a
passo.
1.
Por que existe essa regra?
Existe
em cumprimento ao Princípio Democrático, como estabelecido na Constituição
Federal de 1988. À primeira vista seria uma contradição e de fato não deixa de
ser, mas, digamos que não é uma contradição insolúvel, sem solução. Vamos
pensar que sem a possibilidade de candidatura única o resultado seria muito
pior, do ponto de vista da democracia representativa.
Afinal,
sem essa possibilidade, quem seriam os/as próximos/as prefeitos/as e
vice-prefeitos/as nos 214 municípios brasileiros com candidaturas únicas?
A
regra – ainda que não se tenha uma legislação mais clara, atualizada sobre a
candidatura única – pode ser entendida como uma “excepcionalidade”, casos que
fogem à regra, a fim de que a representatividade mínima seja assegurada. Também
podemos pensar que a candidatura única permite a expressão do eleitorado nas
eleições municipais e que, sem nenhuma candidatura, a expressão popular
eleitoral (ou seja, a representação por meio do voto) seria igualmente nula.
Como
complemento devemos ter em conta que em 214 municípios brasileiros com
candidatura única, a urna eletrônica trará três opções: voto no candidato/a,
voto nulo, voto em branco. Desse modo, neste caso que está longe do ideal
democrático, os eleitores podem manifestar suas declarações eleitorais.
Em
decorrência disso, é importante destacar que é possível arguir contra a falta
de legitimidade em algum ou alguns desses 214 municípios. A simples somatória
dos votos válidos ao/à candidato/a não assegura, de modo imediato, a sua posse.
Se
o/a candidato/a único/a obtiver baixíssima votação, a eleição em si pode ser
anulada. No caso concreto: o candidato que obtiver menos votos do que a
somatória de votos nulos e em branco. O eleitorado disse, claramente, que não
se vê representado (ironicamente) na ausência de representação, ou seja, a
candidatura única desagrada totalmente o eleitorado, especialmente quando há
maioria de votos nulos ou em branco. Não é o caso de aprofundarmos aqui, porém,
cabe pensarmos que pelo voto nulo o eleitorado manifesta seu total desacordo
com essa forma de democracia representativa. Então, o voto nulo, em si, expõe
um problema muito maior acerca da representatividade e do pluralismo político
na democracia brasileira.
2.
Essa regra não fere princípios democráticos?
Se
pensarmos a democracia representativa, como está delimitada na Constituição
Federal de 1988, sobretudo a partir dos pressupostos e dos princípios que regem
o Estado Democrático de Direito, sim, a excepcionalidade da candidatura única
fere diretamente o ideal democrático constitucional.
Vejamos
que a Constituição é clara ao prefigurar o “pluralismo político” logo no artigo
1º:
Art.
1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da
pessoa humana;
IV - os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa;
O
Princípio do Pluralismo Político aqui se norteia pela diversidade de correntes
e de ideais ou ideias políticas, desde que não propaguem o fim da própria
democracia – como vemos em discursos de incitação ao ódio social. Portanto, não
se trata de garantir um número cada vez maior de partidos políticos. Aliás,
esse é outro enorme problema da democracia representativa brasileira.
Por
outro lado, como dissemos no início, se não houvesse nem mesmo uma candidatura
única, o “problema democrático” seria muito maior: sem a possibilidade de
representação (única, neste caso) o Pressuposto da Representatividade seria
aniquilado. Também podemos pensar que se trata de uma contradição entre a
representatividade (pressuposto fundamental) e a representação em si. É verdade.
No entanto, o Princípio do Pluralismo Político não pode naufragar o Pressuposto
da Representatividade.
Portanto,
a excepcionalidade da candidatura única viria para assegurar – ainda que bem
distante da normalidade e do ideal – que o Pressuposto da Representatividade
fosse assegurado.
3.
Quais os impactos para o município?
Os impactos são variados, em todas as
áreas. Pode-se dizer que com baixíssima representatividade política, o
município andará no final da fila daqueles que buscam compensação financeira em
seus governos estaduais. É claro que indica fortemente o abatimento, a recusa
ou a contestação do eleitorado: é interessante observar, após a proclamação dos
resultados, o percentual contabilizado de votos nulos e em branco.
O
fenômeno da candidatura única nos indica a pouca ou questionável “saúde
política” desses municípios, porque, caso algum candidato/a sofra a contestação
acerca da legitimidade de seu processo eleitoral, se os votos nulos e em branco
tiverem maior somatória do que os votos válidos depositados na candidatura
única, além de tudo, ainda haverá forte questionamento quanto à legitimidade
jurídica/institucional.
Neste
caso, a ilegitimidade política/institucional estaria praticamente decretada no
caso de haver mais votos nulos e em branco, do que votos válidos.
Sem
contar que o eleitorado seguirá ainda mais descrente na solução democrática da
vida pública – começando pelo seu município. O que, por si, é péssimo.
4.
Há impactos para a eleição de vereadores?
Sem
dúvida que sim. Se as opções são poucas, as escolhas são reduzidas. Pode-se
pensar que a democracia sairá reduzida, menor do que quando teve início o
processo eleitoral.
Se
fossem quatro ou cinco candidaturas válidas e legítimas disputando a prefeitura
(Poder Executivo municipal), com muito mais candidatos/as à vereança, as
ofertas eleitorais estariam muito mais contempladas pelo Princípio do
Pluralismo Político.
Neste
sentido, também caberia pensar numa espécie de máxima – não só política: se o
Ideal é validável, justo, Ético, quanto mais longe desse ideal pior será.
5.
Quais as regras para candidaturas únicas?
Apesar
de constar como excepcionalidade no contexto do Pressuposto da Representação e
do Princípio do Pluralismo Político, a candidatura única deve seguir a
legislação regular. Isto é, salvo a prescrição do caso excepcional da
possibilidade de candidatura única, as normas constitucionais e derivadas – por
serem gerais (é o efeito erga omnes) – devem ser observadas.
6.
No que mais a candidatura única nos faz pensar?
Gostaria de finalizar indicando, talvez, o
maior problema político/institucional demonstrado nesses casos de candidatura
única. Por que isso ocorre, ainda hoje, em 2024?
Primeiro, e me parece o principal, a
candidatura única explicita o crescimento desordenado na criação de pequenos,
às vezes minúsculos, municípios pelo país afora.
Muita gente defenderá tal expediente, com
bandeiras como: devemos assegurar a Autonomia municipal para que a soberania
popular seja preservada. Sim, isso é fato. Todavia, há uma realidade que não
pode ser descartada pelo idealismo, em razão de algum princípio que se traga.
Municípios com dois, três mil habitantes
(muitas vezes com menos de mil eleitores) têm que, não só criar como manter
estruturas burocráticas de governança: prefeituras, Câmaras Municipais e muitas
outras instituições que são inerentes a um município.
Se municípios maiores já sofrem sem recursos,
o que dizer pensando na baixa ou nula arrecadação dos municípios muito pequenos,
com dois, três mil habitantes?
O problema realista, então, passaria
obviamente pela revisão da existência de muitos desses 214 municípios muito
pequenos e que, agora, ainda sofrem com o descrédito da candidatura única e que
atinge diretamente os princípios e os pressupostos constitucionais da
representação e do Pluralismo Político.
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