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Vinício Carrilho

Consciência é a Consciência da Consciência - é a coisa conhecível por “alguém que pode conhecer”


Consciência é a Consciência da Consciência - é a coisa conhecível por “alguém que pode conhecer”  - Gente de Opinião

Coisa, objeto conhecível por alguém (sujeito cognoscente) é o que se pode conhecer em algum momento. Esse “pode conhecer” tem três sentidos básicos: dados secretos que revelam ou a intimidade das pessoas, ou segredos empresariais ou segredos de Estado (segurança nacional); vemos que o limite da ciência, do conhecimento, chegou até aquele ponto – não conseguimos ver mais longe; condições, estruturas, dominações, ideologias, impedem que muitos “vejam” o que é reservado a poucos (por exemplo, o sucateamento da educação pública, das universidades federais), pois, o recorte de classe social/racista é o principal obstáculo da imensa maioria do povo brasileiro acessar o conhecimento (e que, em tese, poderia libertar da opressão classista, racista).

O terceiro aspecto é o que nos interessa mais diretamente, pois esse sujeito (ser social), ao mesmo tempo que está conhecendo a coisa, conhece a si mesmo antes de tudo. “Conhece-te a ti mesmo” (diria Sócrates) para conhecer o mundo.

Ainda que não vigore uma concepção organicista – como se vivêssemos num formigueiro – ou sob regimes totalitários (em que a individualidade praticamente desaparece em nome do “todo”), é claro que nenhum de nós vive fora da sociedade. Assim, até aqueles que pesquisam essa mesma sociedade (quem analisa, quem faz Ciência Social), quando o fazem, olham para si mesmos. Ao olharem para a sociedade, olham para si. Isso já desfaz a pretensa distância entre o sujeito do conhecimento (cientista social) e o objeto da análise (sociedade). Ou seja, não há uma contradição entre quem faz investigação social e o objeto em investigação, – porque o/a cientista social, de um modo mais ou menos direto, está olhando, investigando, a si mesmo/a e ao seu tempo, a sociedade em que vive (e trabalha, pesquisa). Com isso também se rompe o mito da neutralidade na prática científica: a própria escolha do objeto de pesquisa já diz muito sobre quem escolheu, porque escolheu, para qual finalidade.

A contradição, separação entre sujeito e objeto, se desfaz. Porém, podemos perguntar: todas as pessoas não analisam, questionam algo sobre a realidade social, sobre a sociedade em que vivem? Então, de alguma forma, a análise social (e consequentemente, a de si próprio) não se restringe aos cientistas sociais, mas é válida a todas essas pessoas que também estariam olhando, investigando, falando de si mesmas. Ou seja, quando falamos de pessoas que vivem em determinada sociedade, em um tempo histórico determinado (feudalismo X capitalismo, século XX, século XXI) estamos dizendo que todas essas pessoas (os seres sociais) são objeto e sujeito de suas falas, de suas análises, sugestões e críticas, ao mesmo tempo. Em outras palavras, a separação/contradição entre sujeito (seres sociais) e objeto verificado (a sociedade, as relações sociais) precisa ser desconstituída: Homem (humanidade) e sociedade formam um único e mesmo conjunto orgânico, múltiplo, entre empatia e entropia, que chamamos de sociedade humana.

Pensando na educação, podemos questionar: o que a manutenção dessa visão baseada na contradição homem x sociedade, objeto x sujeito/ser social pode trazer? Trata-se de uma educação dominante, em que educadores/as veem os educandos como objetos. É nesse sentido que se fala sobre a objetificação social, com pessoas vistas na condição de objetos a serem preenchidos de conteúdos; portanto, passivas. Esta também é a ideologia dominante. Ora, se o conhecimento do mundo pressupõe o conhecimento de si, enquanto o conhecimento social for distante, com o acesso ao conhecimento muitas vezes impedido ou desvirtuado, é evidente, também não haverá acesso ao conhecimento de si – e que possa transformar a si e ao mundo. É precisamente isso que interessa a quem domina, que o conhecimento social fique distante dos dominados, que não acessarão também o conhecimento sobre si. E isso só importa para os dominantes, na medida que é o conhecimento de si e do mundo que produz um sujeito ativo para a transformação desse mesmo mundo (e de si).

Num sentido mais específico, de acordo com a afirmação de Paulo Freire, podemos entender cognoscibilidade[1] – na falta de uma tradução mais apurada – como a ideia de que se trata da capacidade de entendimento acerca dos fatos, da realidade, dos atos, das situações, ocorrências e fenômenos (naturais ou sociais). Daí chegamos à capacidade/possibilidade de “entendimento sobre as pessoas”, os sujeitos do conhecimento, em seus contextos e entendimentos (de si e do mundo). Retomar o conhecimento de si, por meio do conhecimento do mundo que está no nosso entorno, é (re)tomar a humanidade em si e para si. Ou seja, quando apreendemos o mundo a nossa volta, compreendemos também a nós mesmos.

Essa apreensão, compreensão do objeto cognoscível (do mundo ao entorno), e de nós mesmos, só pode se dar por um meio construtivo e dialógico de conhecimento, pois assim o objeto cognoscível (a realidade, a natureza, a sociedade, os seres sociais) não nos é dado como algo separado e externo, assim como o sujeito não é preenchido por um conhecimento sobre aquilo que ele quer entender (como se fosse algo separado dele). Pelo contrário, é no próprio processo de conhecimento que se entende que sujeito e objeto do conhecimento são a mesma unidade cognoscível: é o que chamamos de sociedade humana em constante transformação, ainda que sejam apenas os meios de dominação os mais transformados, para serem melhor ajustados.

Entender as relações dos seres sociais, suas ações e performances, suas realidades objetivas e suas subjetividades, só teria sentido se o objetivo fosse transformar a ambos (transformando objetivamente, transformamos a subjetividade). O sujeito cognoscente é o indivíduo que tem consciência de si e do mundo do qual faz parte – com essa consciência ele se reconhece como sujeito ativo e capaz da modificação:

A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo [...] a consciência é consciência da consciência[2] (Freire, 1985, p. 77 – grifo nosso).

Isto é, na relação dialógica que se estabelece que entre o sujeito do conhecimento e o objeto cognoscível não há distinção entre sujeito e objeto – na educação não pode haver polo passivo, como um oco a ser preenchido. Sem essa superação, alguns seres sociais serão eternamente objetificados, coisificados, “fossilizados” em uma determinada realidade que se quer “imutável”, pois é essa realidade que melhor serve à dominação.

Em outros termos, essa reflexão é uma parte ativa do que entendemos como Educação para a descompressão. Assim, também podemos avaliar um caminho verificável (pelo raciocínio lógico-dedutivo) que conduz da consciência em si até a “consciência que é a consciência da consciência”, ou seja, consciência em si e consciência para si – para o Outro, para o entorno, para o mundo, que se quer transformar radicalmente, abolindo-se as formas de opressão[3].

 

Referência

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 



[1] É impossível não pensar em Marx quando vaticina que os educadores devem ser educados. Porém, em termos práticos, também se pode/deve destacar a clara intenção em Paulo Freire quando destaca a radical (definitiva) superação entre educandos e educadores – ou, mais sintomaticamente, entre sujeito e objeto da cognição (pois, os educandos são pessoas em interação social): “Sem esta [superação], não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível” (Freire, 1985, p. 78- grifo nosso). Isto é, os sujeitos só poderão conhecer o mundo e a si mesmos por meio de uma educação baseada na comunicação horizontal, que tenha o diálogo como fundamento, com respeito às diferentes vozes (relação dialógica). A educação da ideologia dominante, que coloca educandos como ocos e passivos, que separa sujeito e objeto da cognição, deve ser superada justamente para que os educandos possam analisar o mundo a seu redor, e, assim, a si mesmos.

[2] É possível pensarmos, em analogia, ao estágio superior alcançado pelo homo sapiens sapiens – o Homem que não apenas sabe pensar, mas, sobretudo, que sabe que é capaz de pensar, pois tem consciência do seu pensamento. Ou, ainda, o Homem que sabe ser capaz de pensar o que significa o seu próprio pensamento. Quando superarmos a separação/clivagem entre objeto e sujeito do conhecimento na educação pública, especialmente o conhecimento das formações sociais, será possível visualizarmos que o indivíduo cognoscente (consciente) tem em sua consciência uma possibilidade de analisar o significado do que é a consciência (a sua e enquanto conceito).

[3] Como última observação, cabe indicar que dominação e opressão não são sinônimos, sendo a dominação uma condição inerente a qualquer organização ou organismo social – resta-nos avaliar de qual forma de dominação estamos tratando e se essa forma nos convém; por exemplo, entre a dominação racional-legal e o autogoverno instigado pela Autoeducação para a descompressão.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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