Domingo, 28 de abril de 2024 - 19h21
Coisa, objeto conhecível por alguém (sujeito cognoscente) é o que
se pode conhecer em algum momento. Esse “pode conhecer” tem três sentidos
básicos: dados secretos que revelam ou a intimidade das pessoas, ou segredos
empresariais ou segredos de Estado (segurança nacional); vemos que o limite da
ciência, do conhecimento, chegou até aquele ponto – não conseguimos ver mais
longe; condições, estruturas, dominações, ideologias, impedem que
muitos “vejam” o que é reservado a poucos (por exemplo, o sucateamento da
educação pública, das universidades federais), pois, o recorte de classe
social/racista é o principal obstáculo da imensa maioria do povo brasileiro
acessar o conhecimento (e que, em tese, poderia libertar da opressão classista,
racista).
O terceiro aspecto é o que nos interessa mais diretamente, pois esse
sujeito (ser social), ao mesmo tempo que está conhecendo a coisa, conhece a si
mesmo antes de tudo. “Conhece-te a ti mesmo” (diria Sócrates) para conhecer o
mundo.
Ainda que não vigore uma concepção organicista – como se
vivêssemos num formigueiro – ou sob regimes totalitários (em que a
individualidade praticamente desaparece em nome do “todo”), é claro que nenhum
de nós vive fora da sociedade. Assim, até aqueles que pesquisam essa mesma
sociedade (quem analisa, quem faz Ciência Social), quando o fazem, olham para
si mesmos. Ao olharem para a sociedade, olham para si. Isso já desfaz a
pretensa distância entre o sujeito do conhecimento (cientista social) e o
objeto da análise (sociedade). Ou seja, não há uma contradição entre quem faz
investigação social e o objeto em investigação, – porque o/a cientista social,
de um modo mais ou menos direto, está olhando, investigando, a si mesmo/a e ao
seu tempo, a sociedade em que vive (e trabalha, pesquisa). Com isso também se
rompe o mito da neutralidade na prática científica: a própria escolha do objeto
de pesquisa já diz muito sobre quem escolheu, porque escolheu, para qual
finalidade.
A contradição, separação entre sujeito e objeto, se desfaz. Porém,
podemos perguntar: todas as pessoas não analisam, questionam algo sobre a
realidade social, sobre a sociedade em que vivem? Então, de alguma forma, a
análise social (e consequentemente, a de si próprio) não se restringe aos
cientistas sociais, mas é válida a todas essas pessoas que também estariam
olhando, investigando, falando de si mesmas. Ou seja, quando falamos de pessoas
que vivem em determinada sociedade, em um tempo histórico determinado
(feudalismo X capitalismo, século XX, século XXI) estamos dizendo que todas
essas pessoas (os seres sociais) são objeto e sujeito de suas falas, de suas
análises, sugestões e críticas, ao mesmo tempo. Em outras palavras, a
separação/contradição entre sujeito (seres sociais) e objeto verificado (a sociedade,
as relações sociais) precisa ser desconstituída: Homem (humanidade) e sociedade
formam um único e mesmo conjunto orgânico, múltiplo, entre empatia e entropia,
que chamamos de sociedade humana.
Pensando na educação, podemos questionar: o que a manutenção dessa
visão baseada na contradição homem x sociedade, objeto x sujeito/ser social
pode trazer? Trata-se de uma educação dominante, em que educadores/as veem os
educandos como objetos. É nesse sentido que se fala sobre a objetificação
social, com pessoas vistas na condição de objetos a serem preenchidos de
conteúdos; portanto, passivas. Esta também é a ideologia dominante. Ora, se o
conhecimento do mundo pressupõe o conhecimento de si, enquanto o conhecimento
social for distante, com o acesso ao conhecimento muitas vezes impedido ou
desvirtuado, é evidente, também não haverá acesso ao conhecimento de si – e que
possa transformar a si e ao mundo. É precisamente isso que interessa a quem
domina, que o conhecimento social fique distante dos dominados, que não acessarão
também o conhecimento sobre si. E isso só importa para os dominantes, na medida
que é o conhecimento de si e do mundo que produz um sujeito ativo para a
transformação desse mesmo mundo (e de si).
Num
sentido mais específico, de acordo com a afirmação de Paulo Freire, podemos
entender cognoscibilidade[1] –
na falta de uma tradução mais apurada – como a ideia de que se trata da
capacidade de entendimento acerca dos fatos, da realidade, dos atos, das
situações, ocorrências e fenômenos (naturais ou sociais). Daí chegamos à
capacidade/possibilidade de “entendimento sobre as pessoas”, os sujeitos do
conhecimento, em seus contextos e entendimentos (de si e do mundo). Retomar o
conhecimento de si, por meio do conhecimento do mundo que está no nosso entorno,
é (re)tomar a humanidade em si e para si. Ou seja, quando apreendemos o mundo a
nossa volta, compreendemos também a nós mesmos.
Essa
apreensão, compreensão do objeto cognoscível (do mundo ao entorno), e de nós
mesmos, só pode se dar por um meio construtivo e dialógico de conhecimento, pois
assim o objeto cognoscível (a realidade, a natureza, a sociedade, os seres
sociais) não nos é dado como algo separado e externo, assim como o sujeito não
é preenchido por um conhecimento sobre aquilo que ele quer entender (como se
fosse algo separado dele). Pelo contrário, é no próprio processo de
conhecimento que se entende que sujeito e objeto do conhecimento são a mesma
unidade cognoscível: é o que chamamos de sociedade humana em constante
transformação, ainda que sejam apenas os meios de dominação os mais
transformados, para serem melhor ajustados.
Entender
as relações dos seres sociais, suas ações e performances, suas realidades
objetivas e suas subjetividades, só teria sentido se o objetivo fosse
transformar a ambos (transformando objetivamente, transformamos a
subjetividade). O sujeito cognoscente é o indivíduo que tem consciência de si e
do mundo do qual faz parte – com essa consciência ele se reconhece como sujeito
ativo e capaz da modificação:
A
libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que
se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis,
que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo
[...] a consciência é consciência da consciência[2] (Freire,
1985, p. 77 – grifo nosso).
Isto
é, na relação dialógica que se estabelece que entre o sujeito do conhecimento e
o objeto cognoscível não há distinção entre sujeito e objeto – na educação não
pode haver polo passivo, como um oco a ser preenchido. Sem essa superação,
alguns seres sociais serão eternamente objetificados, coisificados,
“fossilizados” em uma determinada realidade que se quer “imutável”, pois é essa
realidade que melhor serve à dominação.
Em
outros termos, essa reflexão é uma parte ativa do que entendemos como Educação
para a descompressão. Assim, também podemos avaliar um caminho verificável
(pelo raciocínio lógico-dedutivo) que conduz da consciência em si até a
“consciência que é a consciência da consciência”, ou seja, consciência em si e
consciência para si – para o Outro, para o entorno, para o mundo, que se quer
transformar radicalmente, abolindo-se as formas de opressão[3].
Referência
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
[1] É impossível não pensar em Marx quando
vaticina que os educadores devem ser educados. Porém, em termos práticos,
também se pode/deve destacar a clara intenção em Paulo Freire quando destaca a radical
(definitiva) superação entre educandos e educadores – ou, mais
sintomaticamente, entre sujeito e objeto da cognição (pois, os educandos
são pessoas em interação social): “Sem esta
[superação], não é possível a relação dialógica, indispensável à
cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto
cognoscível” (Freire, 1985, p. 78- grifo nosso). Isto é, os sujeitos
só poderão conhecer o mundo e a si mesmos por meio de uma educação baseada na
comunicação horizontal, que tenha o diálogo como fundamento, com respeito às
diferentes vozes (relação dialógica). A educação da ideologia dominante, que coloca
educandos como ocos e passivos, que separa sujeito e objeto da cognição, deve
ser superada justamente para que os educandos possam analisar o mundo a seu
redor, e, assim, a si mesmos.
[2] É possível pensarmos,
em analogia, ao estágio superior alcançado pelo homo sapiens sapiens – o
Homem que não apenas sabe pensar, mas, sobretudo, que sabe que é capaz de
pensar, pois tem consciência do seu pensamento. Ou, ainda, o Homem que sabe ser capaz de pensar o que significa o
seu próprio pensamento. Quando superarmos a separação/clivagem entre
objeto e sujeito do conhecimento na educação pública, especialmente o
conhecimento das formações sociais, será possível visualizarmos que o indivíduo cognoscente (consciente) tem em sua
consciência uma possibilidade de analisar o significado do que é a consciência
(a sua e enquanto conceito).
[3] Como última observação, cabe indicar
que dominação e opressão não são sinônimos, sendo a dominação uma condição
inerente a qualquer organização ou organismo social – resta-nos avaliar de qual
forma de dominação estamos tratando e se essa forma nos convém; por exemplo,
entre a dominação racional-legal e o autogoverno instigado pela Autoeducação
para a descompressão.
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