Domingo, 26 de março de 2023 - 08h10
Vinício
Carrilho Martinez (Dr)
Associate Professor at Federal
University of São Carlos (UFSCar)
Líder do Grupo de Pesquisa Sociedade e
Educação (UFSCar/CNPq)
https://www.youtube.com/@ACienciadaCF88
Sem
considerar os detalhes críticos sobre a técnica – como o eixo deslocado para
fora do umbigo –, utilizarei a figura de Leonardo Da Vinci, o Homem Vitruviano,
para pensar e reagir na comparação com a nossa Constituição Federal de 1988
(CF88). Dia 25 de março é o seu dia, e deveria ser o nosso dia também – se
entendermos a CF88 como um guarda-chuva que nos abriga e obriga a fazer ou
deixar de fazer.
A
figura geométrica desse gênio do Renascimento é icônica, instigante,
resplandecente em sua perfeita harmonia. Para efeito de nossa comparação,
pensemos (podemos supor) que o quadrado significa o Direito Internacional, a
ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ordem internacional. O
círculo pode simbolizar a dinâmica social, a sociedade, as taxas flutuantes da
política e dos níveis de interação social, sempre oscilando entre mais e menos
efeitos reativos, regressivos, repressivos ou inclusivos, expansivos.
O Homem Vitruviano, mesmo com o eixo de
equilíbrio fora do umbigo (se colocássemos um compasso ficaria claro), indica
toda a nossa organicidade em movimento: às vezes estamos mais concêntricos,
enquanto Nação, em outras fases nos movimentamos para além dos círculos de
determinação e de contenção.
Também penso que cada célula do Homem
Vitruviano representa um de nós, uma cidadã e um cidadão, guardados nesse corpo
chamado de Constituição. Portanto, hoje, o Homem Vitruviano fará a
representação constitucional. Cada célula também tem implicações com os direitos,
os deveres, as garantias, as liberdades ali guarnecidas – sendo ainda o próprio
sistema imunológico (os remédios constitucionais) em combinação com o sistema
circulatório. Com Justiça Social, o sangue constitucional é vermelho vivo.
As pernas do Homem Vitruviano são,
respectivamente, a separação/contenção dos poderes constituídos e a defesa
intransigente dos direitos fundamentais. As pernas são a base, a sustentação, a
força e o equilíbrio de toda a massa muscular que mantém a ossatura societal em
pé.
Os
braços são nosso alcance, nossa coordenação motora fina, aliada à força e ao
movimento de pinça (polegar e indicador) a nos diferenciar das demais espécies.
Não são apenas a longa manus de uma
ordem expedida, mas sim o objetivo que traçamos para alcançar e realizar.
Braços, mãos e dedos articulados nos fizeram humanos – assim como a teleologia
constitucional está imbricada nos Direitos Humanos. É a mesma teleologia de
olhos agudos, astutos, atentos, mirando o futuro a ser construído com o devir,
o vir-a-ser de cada um, cada uma, de todos nós.
A
figura não está em três dimensões (3D), todavia, ainda que estivesse, nós
veríamos que o Homem Vitruviano apenas se movimenta para os lados – às vezes
alargamos a Democracia, a própria eficácia do conjunto complexo dos Direitos
Humanos, às vezes sofremos rescaldos andando para a direita –, porém, a CF88
nunca anda para trás. A CF88 obedece ao Princípio do não-Retrocesso
Moral/Social e por isso não se admitem mudanças constitucionais que mitiguem
direitos já auferidos.
Diria
que a cabeça do Homem Vitruviano significa, sintetiza, os postulados, os
expedientes motivacionais, os princípios constitucionais e humanistas que
conferem a forma constitucional desde 1988. Do Estado Democrático de Direito,
da solidariedade e da dignidade humana ao Processo Civilizatório, à diversidade
cultural, ao pluralismo político e ideológico (não-regressivo); passando pelo
Princípio da Unicidade Constitucional, pela negação ao Direito de Sedição e
pela garantia constitucional (explícita) do chamado Direito a ter direitos.
Então, nossa cabeça tem mente e corpo, emoção (empatia, Utopia) e razão: a
Constituição Dirigente (ou Constituição Cidadã) deve nos guiar e não servir de
argumento para a inércia, a letargia, a procrastinação institucional.
Infelizmente
a Constituição tem um “Tendão de Aquiles”, um ponto fraco – aparentemente o
Homem Vitruviano também. No nosso caso, diria que é o desenho privatista que se
locupletou desde a feitura da Constituição e o exemplo mais simples está no
capítulo destinado à Ciência e tecnologia. Trata-se de uma suposta Teoria da
Tríplice Hélice, colocando-se em paralelo a Universidade Pública, o Estado e o
mercado. Como se essas três dimensões/representações tivessem o mesmo escopo e
fundamento no cerne da sociedade nacional. Quando foi que o mercado investiu em
Ciência, no Brasil? Outro exemplo é o quase inexistente controle externo sobre
o Poder Judiciário – fenômeno que nos faz lembrar sempre de uma máxima:
autonomia sem auditoria é autocracia. Isto restou evidenciado no Golpe de
Estado de 2016 e na Lava Jato – até, praticamente, seu desbaratamento.
Por
essa linha, também diria que a CF88 adquiriu um problema de bílis, as inúmeras
emendas constitucionais antipopulares, o severo controle (e corte) dos gastos públicos
nas áreas sociais, com o acréscimo da conhecida Reserva do Possível – que torna
impossível investir na contenção da miséria humana –, além do inchaço do
Presidencialismo, um superpresidencialismo, em eterna barganha com o
Legislativo. Sem que se supere o patrimonialismo, o poder local, e com pouca
capacidade diante das forças internacionais, o presidencialismo de coalizão só
faz aumentar sua coleção de colisões destrutivas, improdutivas, reativas e
reacionárias.
A
CF88 tem um coração pulsante, apesar das reformas e dos atentados sofridos
desde a década de 1990, ou seja, desde o seu nascimento. O efeito pulsante está
em todos os pontos fortes da Constituição Dirigente, como a defesa do meio
ambiente sustentável e equilibrado, realçando-se o meio ambiente como sujeito
de direitos (no Estado Ambiental), a aposta na educação pública – mesmo com
abertura ao mercado privado, há uma garantia à Educação Permanente, isto é, ao
longo de toda a vida –, e a arquitetura da Saúde Pública: o famoso SUS.
Os
olhos da CF88, como em todo bom Homem Vitruviano (que não é, de perto e nem
longe, o “cidadão de bem”), estão alongados no tempo; às vezes precisamos de
óculos, trocar de lentes. No entanto, não é uma Constituição estrábica ou de
cegueira aprofundada. Pode, sim, ser acusada de uma ou outra miopia, como vemos
na baixa e limitada (burocratizada) inclusão do povo nas formas de participação
política. Deveríamos ter avançado no modelo de um constitucionalismo
plurinacional, no aprofundamento dos meios da democracia direta e na aposta do
Princípio da Corresponsabilidade (pública). Perdemos em alguns desses momentos,
contudo, não há nada que não possa ser revisto no momento certo, e que não é
agora.
É
por isso, e por tantas outras, que podemos dizer que a Constituição faz gritar
os direitos no ouvido do povo – o que nos resta a fazer é ouvir, com atenção,
para assim agir e requerer a nossa melhor plenitude constitucional.
Nossa
Constituição de 1988 ainda poderia ser referenciada como jovem e adolescente,
se olhássemos com carinho pelos direitos das crianças e dos adolescentes
defendidos desde 1988 – ou como uma jovem mulher na casa dos 30 anos, como
Balzac a definiria. Mas, essa história ficará para outro dia.
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