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Vinício Carrilho

Ensaio ideológico da educação


Ensaio ideológico da educação - Gente de Opinião

Houve uma grande tentação para não escrevermos essa provocação, logo no título. Houve também uma tentação para que brotasse uma inspiração do tipo “A imaginação sociológica” de C. W. Mills (1975), a acompanhar nossa escrita. Mas, é claro que nada disso iria ocorrer, porque estamos falando de um clássico contemporâneo da sociologia.

Ficou mesmo na aspiração. O que, diga-se, não é pouca coisa. Porque é uma enorme inspiração, se te acompanhar minimamente.

Então, como só propomos um ensaio, sem a pretensão de tese ou do rigorismo acadêmico-científico (quando isso ocorre nos famosos artigos com a chancela Qualis A), vamos tentar explicar. Começando pelo título, veja-se que não falamos em ensaio sociológico da educação. Pois isto iria requerer uma análise empírica, quiçá numérica, da educação brasileira.

Então, optamos pelo máximo da provocação num Ensaio apenas ideológico da educação. E aqui cabe outra observação: trataremos a ideologia como visão de mundo – todo mundo tem uma – e não como, rotineiramente, é descrita na forma de engodo, névoa, mentira, manipulação ou superficialidade.

Como um Ensaio ideológico da educação, pode-se dizer, no que se refere ao Brasil (e além de nós), aponta diretamente para uma visão de mundo que mantemos sobre a educação. Antes de avançar, é preciso ressaltar essa visão de mundo: é inclusiva, democrática (pluralista), republicana (honesta), de qualidade (que alfabetize, em primeiro lugar), humanista e crítica (que vá do senso comum ao senso crítico), com profundo apreço à Ciência, à filosofia, à Ética, à própria “imaginação sociológica”.

Se o Ensaio recobrisse um sentido amplo, sem a limitação dos aportes nacionais, seria possível dizer que o recorte ideológico seria baseado em uma visão de mundo comunista e crítica ao capitalismo. Neste caso, o Ensaio ideológico se voltaria à “obrigação da coerência ideológica” na defesa da “socialização dos meios de produção”.

Se ocorresse de fixarmos um Ensaio ideológico socialista, seria possível advogar uma efetiva distribuição da riqueza, o achatamento do desnível entre as elites (plutocráticas) e o povo. De outro modo, bem local, se nós nos dedicássemos a uma visão apenas social, no enfoque trazido pela Constituição Federal de 1988 (CF88), o combate às desigualdades e à miserabilidade, a prescrição e a exigência normativa acerca da “função social da propriedade” (artigo 170 da CF88[1]), o desenho constitucional do Estado Social – com destaque à busca da Justiça Social –, então, os predicados ideológicos seriam um tanto diferentes.

Desse modo, já descartando as visões de direita e extrema direita (via de regra assentadas em escolas cívico-militares, no ensino religioso e na educação financeira para crianças de famílias famintas), podemos nos manter nas três premissas iniciais: comunista, socialista, social-democrata.

É óbvio que as três têm dimensões muito diferentes, tanto na composição teórica quanto em sua práxis. E descrever em detalhes cada uma delas não seria possível neste exíguo espaço. Também não é nosso objetivo.

O objetivo é nos mantermos nas linhas gerais das três premissas que podem/devem guiar nosso Ensaio ideológico da educação. E agora com uma especificação adicional: traremos alguns poucos dados assombrosos acerca da educação pública no Brasil.

Porém, antes de avançar com qualquer número que nos apoie e mantendo-se a fidelidade ao propósito do Ensaio ideológico, vamos rememorar a célebre sentença do senador constituinte Darcy Ribeiro:

A crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto...”

Quando vemos jovens abnegados, fora da matriz que coloniza a imensa maioria dos governantes e dos “políticos profissionais” brasileiros, a usarem música (forró) a fim de atrair adultos de volta à escola, para se alfabetizarem, não é correto concordar com Darcy Ribeiro?

São fantásticas as iniciativas, a visão de mundo, isso que se chama hoje de pró-sociabilidade (antigamente era gentileza). São pessoas iluminadas, no melhor sentido clássico. 

Porém, isso revela outra coisa – revela a duríssima conclusão de Darcy Ribeiro: "A falência da educação no Brasil não é um erro, é um projeto". Não é tática, é estratégia.

Mas arriscamos ir além: o projeto é a primícia (ou quem sabe o meio) que reverbera nas (e encontra consonância com as) práticas culturais: em uma sociedade marcada pelo racismo e sexismo, pela homogeneização das massas, pela valorização da não criticidade e do senso comum, o projeto fortalece essas marcas e dá novos símbolos para os mesmos significados e práticas excludentes. Como um projeto, contudo, traz consigo uma roupagem leve e moderna que esconde seus significados. O projeto de falência da educação se remete, intrinsicamente, às práticas culturais e essas, por sua vez, precisam de projetos para se manter.

Onde está o Estado paquiderme, neoliberal – conchavado com as elites mais tacanhas do país?

Como é que podemos depositar nossas esperanças num jovem que usa o forró como forma de atrair adultos para o retorno à escola, à alfabetização – enquanto brincamos de faz de conta? 

E permita-nos pontuar algo, caso não tenha sido percebido: nossa crítica não repousa sobre o/a professor/a que arrisca suas estratégias (o uso do forró, no exemplo), mas sim sobre o modo extravagante, salvador e midiático com que ações de professoras e de professores são destacadas, o que quase sempre tem como motor não uma interpretação das ações, mas o seu alcance nas redes sociais.

Podemos pensar que não temos direita e esquerda (salvo extrema direita cívico-militar) quando se trata de educação pública. 

Milhares de jovens sem saber ler e escrever, ou adultos que leem e não entendem – passando por governos de direita e suposta esquerda. 

E estão na mesma. 

O exemplo vem desse link[2]. Tem kit robótica, mas não tem língua portuguesa: 62% ou mais (talvez muito mais) das crianças brasileiras não são alfabetizadas adequadamente[3]. Isso não é afirmação ideológica, isso é realidade. É projeto político.

Outra conclusão muito evidente é que não se sabe o que é ideologia, e menos ainda se tem clareza na hora de apregoar um determinado governo e seu projeto de poder. No Brasil isso é muito mais evidente do que na Bolívia, por exemplo, ou no Uruguai, sobretudo, nos tempos de Mujica. Nós não temos nenhum Mujica.

       

E qual é esse projeto de educação para o Brasil? Se olharmos pela ideologia comunista, é fácil dizer que se trata de avançar com a máxima precarização até que surjam efetivos sólidos à total privatização. E seu antípoda seria um “projeto educacional anticapitalista” – algo na linha de Mészáros (2008).

       

Atendendo a algum anseio socialista, tanto podemos vislumbrar o anunciado na Constituição Portuguesa[4] quanto alguma iniciativa isolada de educadoras e educadores brasileiros. É muito raro encontrar algum/a gestor/a com essa disposição ideológica – comunista menos ainda – e essa dificuldade está na escola pública, em geral, assim como está na universidade pública.

       

Restaria, então, algum lampejo democrático e socialdemocrata – leia-se, cumprir com a lisura institucional mínima – e, neste caso, não parece que algum efeito revelador será obtido. Ao menos a curto prazo, não. Aqui, via de regra, toca-se a coisa pública ao sabor de uma tecnoburocracia. Ou seja, confunde-se tudo e se nivela por baixo.

       

Na crítica comunista, podemos seguir avaliando como Mészáros (2008) e uma educação fortemente inclinada a “educar para acatar a Lei do mais forte” (isto é, atender às leis do capital). Seria uma educação com base em dominus (senhorio) e não em dominação, de acordo com a sociologia clássica.

       

Na crítica socialista, e um pouco perdida nas propostas de partidos políticos que se autointitulam de esquerda, além de se elevar a crítica ao sistema capitalista (notoriamente ao rentismo e à uberização), teríamos que colocar ao menos uma questão séria: como é que um “governo de esquerda” promove escolas cívico-militares e aplica milhões de reais na compra de Kits robóticos – com o analfabetismo batendo em sua porta?

Sob uma tentativa de crítica social-democrata, (nem de longe socialista), nosso Ensaio ideológico da educação, além de exigir todos os compromissos selados na Constituição Federal de 1988, traria para o nosso “banquete dos deuses” (num mito de Paideia do novo século), pelo menos, a educação que repudiasse o servilismo, o provincianismo, o coronelismo (imagine que ainda vigora um “coronelismo de esquerda”).

Todavia, esse percurso ideológico socialdemocrata, ao sabor ainda de uma honesta “imaginação sociológica” (Mills, 1975), teria que aprofundar as noções de República, Estado Democrático de Direito, de saudável valorização dos direitos fundamentais (numa práxis de governança) e na crença humanista insuperável de identificação com os Direitos Humanos.

Você que nos lê poderia pensar: “isso não é tão difícil”. De fato, não é impossível, e bastaria que houvesse uma coisa chamada pelo senso comum de “vontade política”. Entretanto, pense que ao assim agir, o tal coronelismo de esquerda estaria sabotando seu próprio projeto político de manter-se no poder –com as massas dóceis, encapsuladas, semialfabetizadas, sem alcance a uma educação de qualidade e crítica.

Com isto ainda podemos explorar o que o projeto de educação no Brasil está a esconder de todos nós, sob as mais variadas carapuças ideológicas (lembrando-se que não contabilizamos aqui a Extremadura fascista da direita). Nem mesmo esse chamado “populismo de esquerda” – inclinado ao regressivo neoliberalismo pós-moderno – é capaz de formular um projeto político de educação (efetivo enquanto práxis) que se referende pela “dominação racional-legal”, pois, isto exigiria que o próprio governante tivesse uma concepção moderna de Brasil.

Ao invés do dominus (escravismo, servilismo), por que não pactuarmos com uma “dominação pública” lastreada na racionalidade, na constitucionalidade progressista, na efetivação dos direitos fundamentais, na defesa intransigente da laicidade no espaço público que compõe o Poder Público? É melhor apenas enunciar que Weber (1985) poderia fazer parte dessa crítica, porém, sem tanto destaque porque os aborrecimentos seriam enormes.

Simples seria a resposta. Muitos interesses econômicos, personalistas, grupais, deixariam de ser atendidos. E isto, bem ou mal, mais devagar do que se gostaria, em si, seria um sinal de começo para revolucionarmos a educação brasileira – e depois, ou em conjunto, toda a sociedade brasileira.

Por fim, cabe dizer que nossa última conclusão reuniu uma Utopia ao nosso apelo ideológico do Ensaio. É curioso pensar que a educação pública poderia retratar (sociologicamente, ideologicamente, politicamente) a realidade prosaica das pessoas, bem como houvesse uma preocupação Ética (filosófica) com cada criança e jovem deste país.

Mas, aí, nem trataríamos mais de uma Utopia.

Pelo andar da carruagem, estaríamos em devaneio, uma alucinação provocada pelo calor infernal (do tipo de Goethe), esse que é típico dos péssimos tratos que conferimos ao meio ambiente: pondo fogo no país, sem ação pública digna do seu nome.

 

Referências 

MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008. 

MILLS, Charles Wright. A Imaginação Sociológica. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. 

WEBER, MAX. O Estado Racional. In: Textos seleciona



[1] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I — soberania nacional;

II — propriedade privada;

III — função social da propriedade;

IV — livre concorrência;

V — defesa do consumidor;

VI — defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação da EC 42/2003)

VII — redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII — busca do pleno emprego;

IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação da EC 6/1995)

Parágrafo único É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (grifo nosso).

[4] Logo em seu preâmbulo, ao vaticinar que: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (grifo nosso).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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