Quinta-feira, 3 de outubro de 2024 - 11h36
Houve
uma grande tentação para não escrevermos essa provocação, logo no título. Houve
também uma tentação para que brotasse uma inspiração do tipo “A imaginação
sociológica” de C. W. Mills (1975), a acompanhar nossa escrita. Mas, é claro
que nada disso iria ocorrer, porque estamos falando de um clássico
contemporâneo da sociologia.
Ficou
mesmo na aspiração. O que, diga-se, não é pouca coisa. Porque é uma enorme
inspiração, se te acompanhar minimamente.
Então,
como só propomos um ensaio, sem a pretensão de tese ou do rigorismo
acadêmico-científico (quando isso ocorre nos famosos artigos com a chancela
Qualis A), vamos tentar explicar. Começando pelo título, veja-se que não
falamos em ensaio sociológico da educação. Pois isto iria requerer uma análise
empírica, quiçá numérica, da educação brasileira.
Então,
optamos pelo máximo da provocação num Ensaio apenas ideológico da educação. E
aqui cabe outra observação: trataremos a ideologia como visão de mundo – todo
mundo tem uma – e não como, rotineiramente, é descrita na forma de engodo,
névoa, mentira, manipulação ou superficialidade.
Como
um Ensaio ideológico da educação, pode-se dizer, no que se refere ao Brasil (e
além de nós), aponta diretamente para uma visão de mundo que mantemos sobre a
educação. Antes de avançar, é preciso ressaltar essa visão de mundo: é
inclusiva, democrática (pluralista), republicana (honesta), de qualidade (que
alfabetize, em primeiro lugar), humanista e crítica (que vá do senso comum ao
senso crítico), com profundo apreço à Ciência, à filosofia, à Ética, à própria
“imaginação sociológica”.
Se
o Ensaio recobrisse um sentido amplo, sem a limitação dos aportes nacionais,
seria possível dizer que o recorte ideológico seria baseado em uma visão de
mundo comunista e crítica ao capitalismo. Neste caso, o Ensaio ideológico se
voltaria à “obrigação da coerência ideológica” na defesa da “socialização dos
meios de produção”.
Se
ocorresse de fixarmos um Ensaio ideológico socialista, seria possível advogar
uma efetiva distribuição da riqueza, o achatamento do desnível entre as elites
(plutocráticas) e o povo. De outro modo, bem local, se nós nos dedicássemos a
uma visão apenas social, no enfoque trazido pela Constituição Federal de 1988
(CF88), o combate às desigualdades e à miserabilidade, a prescrição e a
exigência normativa acerca da “função social da propriedade” (artigo 170 da
CF88[1]), o desenho constitucional
do Estado Social – com destaque à busca da Justiça Social –, então, os
predicados ideológicos seriam um tanto diferentes.
Desse
modo, já descartando as visões de direita e extrema direita (via de regra
assentadas em escolas cívico-militares, no ensino religioso e na educação
financeira para crianças de famílias famintas), podemos nos manter nas três
premissas iniciais: comunista, socialista, social-democrata.
É
óbvio que as três têm dimensões muito diferentes, tanto na composição teórica
quanto em sua práxis. E descrever em detalhes cada uma delas não seria possível
neste exíguo espaço. Também não é nosso objetivo.
O
objetivo é nos mantermos nas linhas gerais das três premissas que podem/devem
guiar nosso Ensaio ideológico da educação. E agora com uma especificação
adicional: traremos alguns poucos dados assombrosos acerca da educação pública
no Brasil.
Porém,
antes de avançar com qualquer número que nos apoie e mantendo-se a fidelidade
ao propósito do Ensaio ideológico, vamos rememorar a célebre sentença do
senador constituinte Darcy Ribeiro:
“A
crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto...”
Quando
vemos jovens abnegados, fora da matriz que coloniza a imensa maioria dos
governantes e dos “políticos profissionais” brasileiros, a usarem música
(forró) a fim de atrair adultos de volta à escola, para se alfabetizarem, não é
correto concordar com Darcy Ribeiro?
São
fantásticas as iniciativas, a visão de mundo, isso que se chama hoje de
pró-sociabilidade (antigamente era gentileza). São pessoas iluminadas, no
melhor sentido clássico.
Porém,
isso revela outra coisa – revela a duríssima conclusão de Darcy Ribeiro: "A
falência da educação no Brasil não é um erro, é um projeto". Não é tática,
é estratégia.
Mas
arriscamos ir além: o projeto é a primícia (ou quem sabe o meio) que reverbera
nas (e encontra consonância com as) práticas culturais: em uma sociedade
marcada pelo racismo e sexismo, pela homogeneização das massas, pela
valorização da não criticidade e do senso comum, o projeto fortalece essas
marcas e dá novos símbolos para os mesmos significados e práticas excludentes.
Como um projeto, contudo, traz consigo uma roupagem leve e moderna que esconde
seus significados. O projeto de falência da educação se remete,
intrinsicamente, às práticas culturais e essas, por sua vez, precisam de
projetos para se manter.
Onde
está o Estado paquiderme, neoliberal – conchavado com as elites mais tacanhas
do país?
Como
é que podemos depositar nossas esperanças num jovem que usa o forró como forma
de atrair adultos para o retorno à escola, à alfabetização – enquanto brincamos
de faz de conta?
E
permita-nos pontuar algo, caso não tenha sido percebido: nossa crítica não
repousa sobre o/a professor/a que arrisca suas estratégias (o uso do forró, no
exemplo), mas sim sobre o modo extravagante, salvador e midiático com que ações
de professoras e de professores são destacadas, o que quase sempre tem como
motor não uma interpretação das ações, mas o seu alcance nas redes sociais.
Podemos
pensar que não temos direita e esquerda (salvo extrema direita cívico-militar)
quando se trata de educação pública.
Milhares
de jovens sem saber ler e escrever, ou adultos que leem e não entendem –
passando por governos de direita e suposta esquerda.
E
estão na mesma.
O
exemplo vem desse link[2]. Tem kit robótica, mas não
tem língua portuguesa: 62% ou mais (talvez muito mais) das crianças
brasileiras não são alfabetizadas adequadamente[3]. Isso não é afirmação
ideológica, isso é realidade. É projeto político.
Outra
conclusão muito evidente é que não se sabe o que é ideologia, e menos ainda se
tem clareza na hora de apregoar um determinado governo e seu projeto de poder.
No Brasil isso é muito mais evidente do que na Bolívia, por exemplo, ou no
Uruguai, sobretudo, nos tempos de Mujica. Nós não temos nenhum Mujica.
E
qual é esse projeto de educação para o Brasil? Se olharmos pela ideologia
comunista, é fácil dizer que se trata de avançar com a máxima precarização até
que surjam efetivos sólidos à total privatização. E seu antípoda seria um
“projeto educacional anticapitalista” – algo na linha de Mészáros (2008).
Atendendo
a algum anseio socialista, tanto podemos vislumbrar o anunciado na Constituição
Portuguesa[4] quanto alguma iniciativa
isolada de educadoras e educadores brasileiros. É muito raro encontrar algum/a
gestor/a com essa disposição ideológica – comunista menos ainda – e essa
dificuldade está na escola pública, em geral, assim como está na universidade
pública.
Restaria,
então, algum lampejo democrático e socialdemocrata – leia-se, cumprir com a
lisura institucional mínima – e, neste caso, não parece que algum efeito
revelador será obtido. Ao menos a curto prazo, não. Aqui, via de regra, toca-se
a coisa pública ao sabor de uma tecnoburocracia. Ou seja, confunde-se tudo e se
nivela por baixo.
Na
crítica comunista, podemos seguir avaliando como Mészáros (2008) e uma educação
fortemente inclinada a “educar para acatar a Lei do mais forte” (isto é,
atender às leis do capital). Seria uma educação com base em dominus
(senhorio) e não em dominação, de acordo com a sociologia clássica.
Na
crítica socialista, e um pouco perdida nas propostas de partidos políticos que
se autointitulam de esquerda, além de se elevar a crítica ao sistema
capitalista (notoriamente ao rentismo e à uberização), teríamos que colocar ao
menos uma questão séria: como é que um “governo de esquerda” promove escolas
cívico-militares e aplica milhões de reais na compra de Kits robóticos – com o
analfabetismo batendo em sua porta?
Sob
uma tentativa de crítica social-democrata, (nem de longe socialista), nosso
Ensaio ideológico da educação, além de exigir todos os compromissos selados na
Constituição Federal de 1988, traria para o nosso “banquete dos deuses” (num
mito de Paideia do novo século), pelo menos, a educação que repudiasse o
servilismo, o provincianismo, o coronelismo (imagine que ainda vigora um
“coronelismo de esquerda”).
Todavia,
esse percurso ideológico socialdemocrata, ao sabor ainda de uma honesta
“imaginação sociológica” (Mills, 1975), teria que aprofundar as noções de
República, Estado Democrático de Direito, de saudável valorização dos direitos
fundamentais (numa práxis de governança) e na crença humanista insuperável de
identificação com os Direitos Humanos.
Você
que nos lê poderia pensar: “isso não é tão difícil”. De fato, não é impossível,
e bastaria que houvesse uma coisa chamada pelo senso comum de “vontade
política”. Entretanto, pense que ao assim agir, o tal coronelismo de esquerda
estaria sabotando seu próprio projeto político de manter-se no poder –com as
massas dóceis, encapsuladas, semialfabetizadas, sem alcance a uma educação de
qualidade e crítica.
Com
isto ainda podemos explorar o que o projeto de educação no Brasil está a
esconder de todos nós, sob as mais variadas carapuças ideológicas (lembrando-se
que não contabilizamos aqui a Extremadura fascista da direita). Nem mesmo esse
chamado “populismo de esquerda” – inclinado ao regressivo neoliberalismo
pós-moderno – é capaz de formular um projeto político de educação (efetivo
enquanto práxis) que se referende pela “dominação racional-legal”, pois, isto
exigiria que o próprio governante tivesse uma concepção moderna de Brasil.
Ao
invés do dominus (escravismo, servilismo), por que não pactuarmos com
uma “dominação pública” lastreada na racionalidade, na constitucionalidade
progressista, na efetivação dos direitos fundamentais, na defesa intransigente
da laicidade no espaço público que compõe o Poder Público? É melhor apenas
enunciar que Weber (1985) poderia fazer parte dessa crítica, porém, sem tanto
destaque porque os aborrecimentos seriam enormes.
Simples
seria a resposta. Muitos interesses econômicos, personalistas, grupais,
deixariam de ser atendidos. E isto, bem ou mal, mais devagar do que se
gostaria, em si, seria um sinal de começo para revolucionarmos a educação
brasileira – e depois, ou em conjunto, toda a sociedade brasileira.
Por
fim, cabe dizer que nossa última conclusão reuniu uma Utopia ao nosso apelo
ideológico do Ensaio. É curioso pensar que a educação pública poderia retratar
(sociologicamente, ideologicamente, politicamente) a realidade prosaica das
pessoas, bem como houvesse uma preocupação Ética (filosófica) com cada criança
e jovem deste país.
Mas,
aí, nem trataríamos mais de uma Utopia.
Pelo
andar da carruagem, estaríamos em devaneio, uma alucinação provocada pelo calor
infernal (do tipo de Goethe), esse que é típico dos péssimos tratos que
conferimos ao meio ambiente: pondo fogo no país, sem ação pública digna do seu
nome.
Referências
MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.
MILLS, Charles Wright. A Imaginação Sociológica. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
WEBER, MAX. O Estado Racional. In: Textos seleciona
[1] Art. 170. A ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:
I — soberania
nacional;
II — propriedade
privada;
III — função
social da propriedade;
IV — livre
concorrência;
V — defesa
do consumidor;
VI — defesa
do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e
prestação; (Redação da EC 42/2003)
VII — redução
das desigualdades regionais e sociais;
VIII — busca
do pleno emprego;
IX — tratamento
favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis
brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (Redação da EC
6/1995)
Parágrafo único É
assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei (grifo nosso).
[2] https://www.leiaja.com/carreiras/2024/10/02/professor-do-sertao-da-bahia-viraliza-ao-usar-luiz-gonzaga-para-alfabetizar-idosos/.
Acesso em 02/10/2024.
[3] https://www.terra.com.br/noticias/eleicoes/sao-paulo/ela-tem-11-anos-esta-no-5-ano-e-se-frustra-por-nao-saber-ler-e-escrever-so-copio,604ac3b441fba8a82ee4856ccff0937ezeijxntx.html.
Acesso em 02/10/2024.
[4] Logo em seu preâmbulo, ao vaticinar
que: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de
defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos
cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o
primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma
sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em
vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (grifo
nosso).
A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes
A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez
Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci
Todos os golpes no Brasil são racistas. Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas. É a nossa história, da nossa formação
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a