Quarta-feira, 16 de outubro de 2024 - 14h57
Dia 5 de outubro de 1988 tivemos a promulgação da Constituição Federal de 1988 (1988), com forte investida contra o regime de exceção, de apoio à legalidade democrática e ao Estado Democrático de Direito. Contudo, já na Constituição de 1946[1] (1946), o Brasil teria de promover algum acerto de contas com o populismo getulista: alinhado a Mussolini e depois pressionado pelos aliados. Nesta Constituição, a igualdade política dos eleitores brancos e negros, e entre homens e mulheres, sairia fortalecida[2], bem como a delimitação dos direitos sociais ganharia novo fluxo. A defesa dos direitos fundamentais já aparece clara, inclusive imputando crime de responsabilidade do Presidente da República:
Art 89 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos; VIII - o cumprimento das decisões judiciárias. Parágrafo único - Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento (BRASIL, 1998 – grifo nosso).
Na Constituição Federal
de 1946 (1946), também se notava um excesso de zelo em relação aos regimes de
exceção (fato compreensível se lembrarmos do nazi-fascismo), com a defesa clara dos direitos e dos princípios
democráticos – tanto no art. 89, III, que punia diretamente o presidente,
quanto no artigo 141, §13: “É vedada a organização, o registro ou o
funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo programa ou ação
contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem”
(grifo nosso). Note-se, mais uma vez, a clara preocupação com os direitos
humanos (na grafia dos direitos humanos
fundamentais)[3].
Retomamos parte desse quadro histórico e
conceitual do Estado Democrático porque esta será a base do posterior Estado
Democrático de Direito. Em Portugal, com a Revolução dos Cravos[4],
a primeira grande frente de luta popular contra a ditadura veio com o movimento
operário. A classe operária intervinha como vanguarda em toda a luta
antifascista, em todo o processo popular em prol dos direitos e das garantias
democráticas[5]. Note-se que aqui popular
é sinônimo de operário (ou de trabalhador,
como se requer atualmente).
É de fundamental importância reter essa imagem da gradativa constitucionalização dos direitos fundamentais, das garantias democráticas e das liberdades públicas, pois este é o fermento ou estopim do quadro institucional e jurídico do Estado Democrático de Direito. Para Paulo Napoleão Nogueira da Silva, trata-se de controlar o arbítrio governamental ou abuso de poder:
O “Estado Democrático de Direito” ao qual alude a Constituição Federal brasileira, assim, é algo mais do que o simples “Estado Democrático”; destina-se a limitar o poder político, tornar em qualquer hipótese garantido o exercício dos direitos substanciais que consagra a todos os membros da sociedade, a tornar impossível o arbítrio governamental, e a tornar – tanto quanto possível, antecipadamente – previsíveis quaisquer consequências do exercício do seu poder pelos cidadãos, assim como as consequências dos atos do Poder Público genericamente considerado (SILVA, 2002, p. 28).
No plano político-constitucional brasileiro, para além dessa importantíssima questão do controle do poder institucional[6], temos que analisar a materialidade da justiça. Mais especificamente, temos a análise consagrada de José Afonso da Silva (1991), para quem trata-se agora de um Estado Material de Direito. Tecnicamente, teríamos um “modelo jurídico-estatal” menos dogmático e menos injusto, ou o perfil de um Estado que pudesse colocar a dogmática a serviço da Justiça Social. Com isto em mente, citando e reinterpretando Verdú, José Afonso da Silva ressalta que:
Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social (SILVA, 1991, p.102).
Então, a partir da constatação de que as máximas e os dogmas do liberalismo eram insuficientes para regular a crescente diacronia social, surge o Estado Social primeiro na forma do Estado do Bem Estar Social. Aliás, essa dinâmica social deverá expandir as cortinas do Estado de Direito Liberal[7]:
Mas ainda é insuficiente a concepção do Estado Social de Direito, ainda que, como Estado Material de Direito, revele um tipo de Estado que tende a criar uma situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana. Sua ambiguidade, porém, é manifesta. Primeiro, porque a palavra social está sujeita a várias interpretações. Todas as ideologias, com sua própria visão do social e do Direito, podem acolher uma concepção do Estado social de Direito, menos a ideologia marxista que não confunde o social com o socialista [...] Em segundo lugar, o importante não é o social qualificando o Estado, em lugar de qualificar o Direito. [...] a expressão Estado Social de Direito manifesta- se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha e da República Espanhola para chamá-lo Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engatasse aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State [...], delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista (SILVA, 1991, p.102-103).
O que nos conduz à análise ou diagnóstico clássico de que apenas o social não qualifica legitimamente o direito quanto aos aspectos democráticos e humanitários. Aliás, um traço que ressaltaremos logo adiante ao apontar alguns documentos que regularizaram a condição do detento e do preso, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Isto se deve ao fato de que tanto os Estados totalitários quanto a democracia liberal podem priorizar o social[8]. Daí a importância de se reler o Estado de Direito à base da democracia[9] e do social:
Talvez, para caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter a expressão Estado de Direito que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado social de Direito, diríamos Estado de Direito Social (SILVA, 1991, p. 103, grifo nosso).
Este é o quadro que só irá se definir mais claramente quando o Estado assumir, portanto, o seu verdadeiro retrato democrático:
É precisamente no Estado Democrático de Direito que se ressalta a relevância da lei[10], pois ele não pode ficar limitado a um conceito de lei, como o que imperou no Estado de Direito Clássico. Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir na realidade social. E se a Constituição se abre para as transformações políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, a lei se elevará de importância, na medida em que, sendo fundamental expressão do direito positivo, caracteriza-se como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição e aí exerce função transformadora da sociedade, impondo mudanças sociais democráticas [...] (SILVA, 1991, p. 107).
De forma decorrente, esse período de
formação do Estado Democrático, também coincide com várias resoluções e
declarações da ONU em defesa dos prisioneiros e detidos (quer sejam políticos
ou militares, quer sejam presos comuns), como por exemplo as “Regras Mínimas
para o Tratamento dos Reclusos (31 de julho de 1957)”. Além de muitos outros
documentos que foram sendo firmados até o final dos anos 1970, como: “Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos ou
degradantes”; “Princípios básicos relativos ao tratamento de reclusos;
Princípios de Ética Médica aplicáveis à função do pessoal de saúde, especialmente
aos médicos, na proteção de prisioneiros ou detidos contra a Tortura e outros
Tratamentos ou Penas cruéis, desumanos ou degradantes”; “Conjunto de Princípios
para a Proteção de todas as Pessoas Sujeitas a qualquer forma de Detenção ou
Prisão”; “Declaração sobre a proteção de
todas as pessoas contra a tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos ou degradantes”; “Declaração sobre os princípios básicos de Justiça
para as vítimas de criminalidade e de abuso de poder” . Este, digamos, é o
referencial mínimo do que se convencionou chamar de direito humanitário – além
das retificações e ratificações inferidas desde a “primeira” Convenção de
Genebra.
Esses documentos ou princípios são tomados como mais uma demonstração dessa preocupação com os direitos humanos fundamentais, porque esta seria a base de sustentação humanitária do Estado Democrático de Direito. Mesmo porque, na concepção de Estado Democrático de Direito Social, não cabe a visão meramente retributiva da pena, análise que se reforça com as exposições de Damásio:
Hoje, em face do Estado de Direito Democrático e Social[11], não há mais lugar para a função exclusivamente retributivada pena [...] No Estado Democrático de Direito[12], o sistema que mais se ajusta à sua natureza é o do direito penal que visa a ressocializar o delinquente, reparar o dano sofrido pela vítima e prevenir o delito (DAMÁSIO, 2000, p. 25-27).
Ou, ainda, como destaca claramente Anabela Rodrigues Miranda, no vigor do Estado Democrático de Direito, o ideal que impulsiona a própria legislação estatal deve ser do direito justo, líquido e certo. Portanto, deve ser um instrumento de liberdade e uma garantia de segurança:
Rejeita-se, assim, que, em nome de qualquer euforia
preventiva, se excluam princípios, como os do Estado de direito, da humanidade,
da tolerância ou da culpa, que essencialmente garantem os direitos individuais
contra exigências coletivas de segurança (...) no tempo presente, a síntese
deve fazer eco do Estado contemporâneo,
de direito, democrático e social[13]. Um Estado em que
a defesa intransigente da dignidade da pessoa não se opõe a uma legitimação
utilitarista da intervenção punitiva estatal, pois os critérios de utilidade
aparecem em relação dialética com as garantias formais e materiais que intervêm
na autolimitação do Estado (RODRIGUES, 2001, p. 35, grifo nosso)[14].
A seguir, também ficará claro, mas é bom
antecipar que, em nossa perspectiva, esse modelo vigente a partir de meados dos
anos 70 vai se transformar e sofrerá (tecnicamente) novos empuxos públicos. No
Brasil, os incrementos trazidos pela própria legislação anunciam a agudização
de aspectos significativos do Estado Democrático de Direito Social, como por
exemplo: a legislação de proteção ambiental (desde a ECO-92, no Rio de
Janeiro); a Lei de Responsabilidade Fiscal (04/05/2000); o Estatuto da Criança
e do Adolescente; o Código de Defesa do Consumidor; o Estatuto do Desarmamento;
o Estatuto do Idoso; o Estatuto do Torcedor.
Há, ainda, outros dados concretos, como
o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo (relembrando a
responsabilidade presidencial de que já tratava a Constituição de 1946) e a
eleição de Lula, um ex-operário (para substituir
Fernando Henrique Cardoso, professor titular da USP e doutor honoris causa em vários países), o golpe
de Estado de 2016, a prisão e a soltura do mesmo Lula e sua eleição
em 2022 (além da tentativa de golpe de Estado
no 8
de janeiro de 2023. Mas, nada
irá indicar melhor que se
trata de um Estado de cunho
tão claramente social quanto o empenho de verbas públicas destinadas às áreas
da saúde (art. 55, da CF) e da educação (art. 212 da CF); aliás, agora
figurando como garantias constitucionais dadas em razão dos direitos públicos
anteriormente proclamados. Isso implica em mais responsabilidade do
administrador público, especialmente no tocante à área social.
Tem-se nessas reflexões aqui
apresentadas o objetivo de articular os temas
públicos e sociais como partes de um mosaico, para visualizar uma figura maior,
na qual a educação aparece como central. Mas, não qualquer educação, é a
educação para os direitos humanos que tem o potencial para rearticular os
sujeitos em relações imersas mais em princípios de justiça, alinhados ao que se
esperaria de um Estado Democrático de Direito.
Na primeira parte, retomamos uma breve
conceituação de Estado Democrático de Direito Social. O aspecto da democracia é
crucial para essa compreensão, porque não basta sucintamente um Estado de
Direito, liberal ou social; precisa ser democrático. É na soberania popular que
pode realizar os princípios dos direitos humanos, uma vez que é na participação
do conjunto de cidadãos na autoridade soberana do Estado que se pode elaborar o
chamado bem pública – mediante a
ordem constitucional democrática.
Na segunda parte, temos um breve esboço
das principais características que conformam o conjunto complexo dos direitos
humanos. Busca-se uma aproximação entre educação e direitos humanos, no sentido
de que são valores humanos essenciais e preliminares a qualquer experiência de
construção coletiva. Ou seja, são construções teóricas, mas também valores
intrínsecos à elaboração da ideia de rede (tendo-se na Internet apenas uma das possibilidades),
pois aí se tem em permanente contato inúmeras culturas e subjetividades – em
que pesem vigorarem, hoje, sob a condição de verdadeiras redes antissociais.
Na terceira parte o objetivo é
demonstrar que por vezes a ideia da rede deve ser o mais elástica possível
(inteligência coletiva, rede pública de ensino e de saúde, Estado em Rede), como uma espécie de busca frenética
por novos nós, e que, em
outros novelos tecidos, cada nó encontrado deve ser aprofundado. Constitucionalmente, esta
condição é a própria edificação (a espinha dorsal) da Constituição Federal de
1988 – o que nos leva ao apelido substantivo de Carta Política de 1988.
Aqui
tentaremos exemplificar a necessidade (e a dificuldade) de que
a ideia de rede deve crescer, expandir-se
horizontalmente; mas que, em certos aspectos e diante de certos valores
(por exemplo, os coletivos, como são os direitos humanos), deve-se estar atento
à necessidade urgente do aprofundamento ou crescimento vertical: enraizamento.
Insiste-se na necessidade do crescimento vertical dos valores humanos
fundamentais ou direitos humanos porque, também como princípio obrigatório da
tolerância, sua prática será mais ou menos sentida entre os usuários de todas
as redes. E aqui o que muda no aspecto técnico é que se fala da necessidade de
uma cultura democrática no manuseio
da própria Internet e em contato com as várias redes públicas de atendimento
popular. Isto é, mudam as expressões,
mas a necessidade é a mesma.
No sentido específico ou técnico, se
pudermos empregar essa expressão, tenhamos em mente o aprofundar de uma noção
de valores equivalentes (o objetivo da lei) e o que se verifica em termos da
inversão prática desses mesmos valores equivalentes, ou seja, diante do debate
político — quando os mesmos valores (por exemplo,
a lei é igual para todos) são confrontados —, o próprio ideal da
equidade jurídica (uma constante nos direitos humanos) pode servir à opressão.
Porém, deve-se ressaltar que, nesse caso, não teremos mais noções e valores
humanos, mas simplesmente leis injustas,
outra torção semântica que se apresenta na realidade, mas que deforma
pejorativamente o virtual, a potência latente de que se ocupa o ideal de redes
públicas. No caso, a busca por valores humanitários e ideais, como a
própria justiça e o cumprimento
integral dos direitos humanos. No sentido de que também são virtualidades construídas e afirmadas
coletivamente (ou não).
O intuito é destacar que essas
articulações são a própria essência da educação. Além de que é dessa constante rearticulação
de nós e eixos que surge o potencial
da comunicação, uma vez que a relação entre os produtores de mensagens e os
receptores de seus sinais é totalmente transformada, ou seja, intermediadas por
valores humanitários: todos somos produtores e receptores interativos de novas
mensagens quer sejam condizentes com o Processo Civilizatório quer sejam
ressonâncias da barbárie moral, social, cultural. Assim, a contribuição da
ideia de rede e principalmente da Internet para esse fim, o da comunicação e da
educação para a liberdade, será inestimável: no sentido preciso de que se constitui no único meio de comunicação aberto
a novas mensagens políticas – sem que haja censura prévia postada por regimes
de exceção.
A partir disso, podemos apresentar uma ideia bastante geral, mas suficientemente indicativa, do que se entende por Educação Para a Tolerância. Trata-se de um aspecto que se julga importante e necessário porque essa proposta sintetiza alguns pontos de convergência e convivência inatos à cultura democrática, como valores humanos, que gostaríamos de verificar entre os usuários de todas as redes de contato público e popular.
De 1948 em diante – a partir de sua
concepção liberal –, o modelo-padrão do Estado Ocidental esteve diretamente
entrelaçado pelos direitos humanos. No entanto, outras concepções surgiram ao
longo do desenvolvimento do próprio Estado, como a que considera que o Estado
de Direito pode ter vários significados, tantos quantos forem os conceitos de Direito ou de organização a que se
aplique a palavra Estado.
Desse modo, poderá haver um Estado de
Direito feudal, burguês, nacional, conforme o direito natural, racional,
socialista (Martinez, 2013) ou ainda poderemos ter um Estado de Direito baseado
na concepção jurídica da justiça social, entendida aqui de forma absoluta,
abstrata, idealista e não no que se refere
à justiça praticada pelo Estado-juiz – submetido ao Poder Judiciário (Silva,
1991). Sob esse prisma, o Estado
liberal faria crescer as injustiças sociais resultantes do individualismo, o
que estimulou o crescimento dos movimentos sociais, socialistas e
reivindicatórios, que vieram mostrar a insuficiência das liberdades que se
ajustavam somente à burguesia, exigindo então mudanças sociais que atendessem
as necessidades da maioria, não se estabelecendo privilégios (leis privadas) e benefícios restritivos.
Teoricamente, na atualidade, o Estado de
Direito deixou de ser formal, individualista e neutro (hoje, ao gosto do
chamado neoliberalismo), para se
transformar em Estado de Direito Material ou Real[16].
Com o social sobrepondo-se ao individual, na realização dos objetivos – horizonte
intitulado de Estado de Direito Social, relacionando-se o direito à esfera
social –, ver-se-ia estabelecida uma concepção mais democrática, pluralista,
progressista, inclusiva e aberta do Direito e do Estado. O Estado de Direito,
quer como liberal ou social, necessariamente não se caracteriza como
democrático. A democracia funde-se no
princípio da soberania popular, ou seja, na participação ativa do povo na coisa pública (res pública), na República, e não só na formação das instituições representativas por meio do
voto (ainda que direto, livre e secreto). Historicamente, deveria ser
interposto ao Estado Democrático de Direito a tarefa de corrigir e assegurar a
justiça social e assim garantir seguramente a autêntica participação do povo no
processo político (civitatis activae).
Resumindo-se, haveria um Estado de legitimidade justa ou Estado de Justiça Material, fundante de uma
sociedade democrática e capaz de instaurar um processo de efetiva incorporação
de todo o povo nos mecanismos de ratificação do controle das decisões e na
repartição dos rendimentos da produção social, cultural e econômica.
Nesse contexto de fruição do Estado Democrático de Direito, portanto, significa dizer que a lei não deve ser apenas instrumento de arbitragem e regulação social (controle social), mas precisa influir necessariamente na realidade social, já que esta vive em constante mudança. Não sendo estática, a lei deve levar à mudança social, à transformação do status quo e, assim, Estado de Direito e Estado Democrático encontram outro elo de fusão, como lembra Celso Bastos – veja-se ainda Vital Moreira (1987) e Canotilho (1990):
Este conceito é bastante complexo, e as suas componentes – ou seja, a componente do Estado de direito e do Estado democrático – não podem ser separadas uma da outra. O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é Estado de direito (BASTOS, 2001, p. 164).
Quanto ao Estado de Direito, o que se
sustenta até hoje é o exercício técnico-constitucional do controle do poder
político centralizado no Estado (a iniciar-se pelo controle de constitucionalidade). Hoje, pode-se dizer que, trata-se
da definição de Estado de Direito que se azeita pela defesa e na garantia das
liberdades individuais e públicas,
como nos diz Celso Bastos (2001, p. 468): “É
da sua essência, pois, a submissão do Estado ao direito, do que defluirá
a liberdade individual, e o repúdio à instrumentalização da lei e da
administração a um propósito autoritário”.
Chegamos, então, a uma definição mais
articulada em torno da relação Estado-sociedade,
agora bastante pessoal: por Estado Democrático de Direito Social entende-se 1)
a organização do complexo do poder em torno de
instituições públicas, administrativas (burocracia independente) e
políticas (tendo-se por a priori o
Poder Constituinte – legítimo), 2) no exercício legal do monopólio do uso
legítimo da força física (violência), 3) a fim de que o povo (conjunto dos
cidadãos), sob a égide constante da cidadania democrática, regulando-se pelo
princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias, das
liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem público comum, o ethos
público, a salus publica, em
determinado território, 4) de acordo com os preceitos da justiça social (a
igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do
conjunto orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e
promoção destes mesmos valores humanos, e 5) sob estrita correspondência entre
a isonomia e a equidade (salvo os casos normatizados legitimamente em que se
apresenta o discrímen como
salvaguarda das premissas da justiça social. De forma resumida, pode-se dizer
que são elementos que denotam uma participação popular soberana no controle
institucional e ético do próprio Estado e na formulação ampliada, legítima dos
ideais sociais e socialistas presentes da salvaguarda dos direitos públicos,
políticos, culturais, sociais e coletivos.
Notamos que na definição estão postas tanto as construções ou elaborações teóricas do século XX, do Estado Democrático, bem como as conquistas reunidas em torno dos direitos público-subjetivos, além dos elementos fundantes de todo o Estado Moderno. Lembremo-nos, ainda, da força social que demonstram as sociedades instituintes transformadoras do status quo, como a própria Revolução dos Cravos, em Portugal[17].
Pode-se pensar o povo como categoria,
elemento e sujeito histórico, se entendido como a entidade jurídica originária
de um contrato social (observando- se
os aspectos sociais e políticos, a exemplo da necessária solidariedade e
interação social que dão origem a qualquer sociedade). Essa entidade jurídica é
organizada como um conjunto de pessoas que, através do expresso consentimento
jurídico estabelece e pactua desta modalidade e espécie de união jurídica inicial (poder de constituir o Estado e suas diretrizes – o próprio
Poder Constituinte). Neste caso, por consentimento jurídico entende-se o
pacto jurídico ou momento jurídico prevalecente à unificação e constituição do
Estado e certamente anterior ao sentido limitado de ordenamento jurídico. Essa união jurídica inicial teria por
finalidade o bem público comum, o que deveria ser assegurado pelo Estado.
Definido de forma objetiva, vale dizer jurídica, povo equivale ao conjunto dos cidadãos, tendo-se em conta que cada
cidadão é uma pessoa humana participante da autoridade soberana do Estado.
Daí decorre a configuração do Poder
Constituinte, como momento jurídico originário
da própria unificação e constituição do Estado. E é nesse plano histórico e ontológico que se encontra o
lastro contemporâneo, portanto atual e dotado de vigor, dos princípios da
soberania popular e da supremacia constitucional; em suma, a base política e
jurídica do Estado Democrático. Assim, a seguir o caminho da definição técnico-jurídica apontada – como
demonstração da vida (objetividade) e da latência (subjetividade) desse
organismo jurídico – deve-se ter em conta o vínculo existente entre os
princípios que originam e conformam o Estado Democrático de Direito, sobretudo
no tocante à ideia central de que o poder
emana do povo e em seu nome será exercido.
Formula-se, assim, a crítica de que povo não é sinônimo de conjunto de eleitores, posto que é distinto da mera somatória da vontade política dos sujeitos, agentes e portadores de determinados direitos políticos atribuídos pela ordem estatal. Isto é, a base do pacto político e jurídico, livremente firmado na formação do Estado, está vinculada ao sentido mais amplo dos Direitos Públicos Subjetivos. Isso se torna evidente na democracia, agora vista como uma cultura específica, formada por valores e costumes que promovem o senso de responsabilidade pública. Esse ethos público está comprometido com a promoção do bem social e com o combate a todas as formas de injustiças processuais, políticas, econômicas e sociais. Portanto, temos aqui a proposta de um Estado voltado ao futuro, pois no presente esse modelo ainda não se concretizou (como se lê expressamente no artigo 225 de Constituição Federal de 1988).
Portanto, o Estado Democrático de Direito hoje, no Brasil, seria justo pensando-se que este poderia/deveria investir na igualdade diante da lei como uma forma real e viável de erradicar os casuísmos jurídicos e as desigualdades que ainda são mantidas muitas vezes sob o império de leis injustas. Da mesma forma, democracia no Brasil significaria garantir na prática, observar-se efetivamente, a separação dos poderes, sem que o executivo se colocasse forçosamente sobre os demais poderes ou fosse ameaçado constantemente pelo Legislativo, bem como o Legislativo não avançasse nas funções precípuas do Poder Judiciário[18]. Observando-se atentamente a leitura que Teixeira[19] (2001) faz de nossa Constituição, nota-se que sua percepção está a meio caminho entre o Estado de Direito clássico e o Estado Democrático de Direito:
1) O modelo
constitucional vigente determina eleições periódicas para a escolha dos
governantes, assegurando amplo direito de voto e amplas liberdades políticas e
sociais.
2) O modelo
constitucional para a organização do Estado é o
da separação dos poderes, assegurando a cada um deles (Executivo, Legislativo e
Judiciário) independência e autonomia de funcionamento.
3) O modelo constitucional assegura direitos e garantias individuais universalmente consagrados e prescreve a implementação de uma grande variedade de direitos individuais e coletivos (TEIXEIRA, 2001, p. 56).
Também é importante assinalar que a Constituição Brasileira, especialmente nas cláusulas pétreas, resguardou algo do Estado de Direito (liberal)[20] e do Estado Democrático[21]. Mas o constituinte deixou de fora as prerrogativas do Estado Social ao não indicar que a salvaguarda das cláusulas pétreas também recobrisse (claramente, obviamente) os direitos sociais e trabalhistas. Por fim, veremos mais uma tentativa de sistematização desse período novo porque ultrapassou o clássico Estado Moderno, transformando-se no Estado Democrático de Direito que ostentamos hoje. É o esquema proposto por Lenio Luiz Streck (2001, p. 95).
É relativamente clara a conclusão de que
(de acordo com a figura), pelo viés do que Lenio Streck (2001) denomina de Estado Legal, teríamos como
desdobramento institucional uma parcela muito maior (para não dizer total) de
participação e envolvimento popular nos assuntos e negócios do Estado,
extrapolando-se os limites legais. Entretanto, na outra ponta da tabela vê-se
explicitamente um resumo de toda a exposição histórica do processo duplo da
jurisdicização/judicialização do Estado e da sua máquina administrativa. Aliás,
muitos já escreveram no sentido de que o Estado de Direito não pode se insurgir
contra as leis criadas por ele mesmo: a liberdade negativa tem origem no ditado
jurídico segundo o qual o Estado deve suportar as leis por ele criadas
(Malberg, 2001). Salvo o caso patente de leis injustas, absurdas ou
inconstitucionais, ou só mediante o Processo Constituinte é que o Estado poderá
arvorar-se em remodelador do seu perfil político, administrativo e paradigmático. Seria muito fácil alegar esta pretensa necessidade e
assim promover-se verdadeiro golpe
constitucional, como se intentou muitas vezes no passado anterior à
jurisdicização/judicialização do Estado Democrático de Direito.
Agora, daqui por diante, pode-se dizer que a crise de soberania e de legitimidade que afeta toda a estrutura do Estado-nação não anunciará a liquidação do próprio Estado Democrático de Direito? Como restará o “social” diante do desmantelamento das proteções político-jurídicas do Estado Democrático de Direito Social?
Como
já vimos, o Estado Democrático de Direito é uma elaboração político-jurídica, teórica e
passível de realização unicamente econômica, social e cultural, mas que não se
realizou dessa forma (desde 1976), porque os anos 70-80 impuseram um modelo
econômico recessivo, globalizado e de total submissão do Estado-nação ao
capital internacional, à financeirização
especulativa. O melhor, então, seria falarmos de um virtual Estado Democrático de Direito: virtual[22], porque o modelo reúne as melhores
formulações institucionais republicanas, democráticas e federativas, mas também
é virtual (agora limitadamente) porque nunca se tornou um fato concreto, não
sendo um dado atual da política nacional e internacional. Então, se é assim, de
que problema nós estamos tratando?
O Estado Democrático de Direito Social[23]
sucumbiu à luta de classes, de grupos,
interesses, valores, práticas
opostas, descontínuas – como essa estrutura que se apresenta no atual
estágio do capital financeiro. Portanto, não é crível tratar-se de uma falha, quebra
ou trauma na estrutura do conceito, não se trata de inconsistência estrutural, teórica, conceitual,
orgânica. O Estado Democrático de Direito perdeu sim um nexo histórico, haja vista que o próprio Estado Democrático de Direito acena para a construção/edificação do socialismo[24]. A derrota, anunciada já nos anos 90, com o crescente
processo de internacionalização dos capitais e sua fase avançada como se tem na
“financeirização”, portanto, foi política e econômica, e não exatamente porque
houve uma superação teórica, jurídica. Aliás, basta-nos lembrar que, depois
dessa fase da globalização e do neoliberalismo, não se fez, não se produziu
nenhuma outra metateoria que o suplantasse.
Não se trata de um conceito estéril, que
não leva a lugar algum ou que nos faz girar em círculos, como se o próprio
conceito estivesse preso a regras e fórmulas que o impossibilitassem de servir
a uma análise mais profunda e profícua. Não é ideologia ou só tautologia, não
nasceu datado – com prazo de validade. O modelo não nasceu circunscrito à
realidade estritamente europeia, pois é um desdobramento do Estado Democrático
(nos anos 50): reforçando-se a positivação do princípio democrático e da
dignidade humana, e depois acrescentando o ideal da justiça social[25].
Nesse sentido, não se deve confundir a
crise do Estado-nação – a realidade
histórica que se solidificou com o Estado Moderno (nossa concepção atual de
soberania) – com os problemas de consecução do modelo perpetrado pelo Estado
Democrático de Direito. E aqui é válida a lembrança de que o modelo socialista
foi interposto a uma sociedade baseada no modo de produção capitalista. Neste
caso, não há superação conceitual, mas somente reflexo de um modelo social e
político (estatal) que naufragou em virtude da crise econômica experimentada
pelo Welfare State[26]
e da crise política decorrente: a insustentável soberania e legitimidade
do falecido Estado-nação.
No lugar das instituições tradicionais
do Estado-nação (soberania, nacionalismo), vê-se o surgimento do Estado-empresa e de suas instituições
reguladoras, como: arbitragem e privatização da prestação jurisdicional,
flexibilização, extinção de direitos e garantias, terceirização de serviços
públicos essenciais, privatização e desnacionalização de empresas nacionais. Um
modelo político e econômico, é óbvio, não se impõe
pela justiça material, mas sim pelo sistema da contabilidade por partida dobrada: as relações sociais são baseadas
unicamente pela aritmética custo-benefício.
O Estado Democrático de Direito Social,
então, é uma realidade jurídica que
não se defronta com situações globais favoráveis. Por exemplo, se essa
experiência tivesse sido gerada em países mais desenvolvidos economicamente e socialmente talvez este mesmo texto
encontrasse novos argumentos a seu favor, mais concretos e reais, na linha de
sua transformação social e jurídica.
Apesar do que diz nossa própria Constituição, o Estado Democrático de Direito
sempre foi uma promessa, uma proposta, uma expectativa, um projeto, nunca
ultrapassou essa condição teleológica, propositiva – basta ver que o artigo 3º
da CF88 trata exatamente das finalidades ou das intenções nunca realizadas pelo Estado brasileiro. Assim, sempre lhe faltou
uma base histórica em que pudesse se
assentar e a partir da qual iniciar o fluxo da modificação da realidade que o
circunscreve e, consequentemente, de sua própria transformação estrutural (de
conceito em realidade política).
Entretanto, ainda que se perceba apenas
como realidade conceitual, o Estado
Democrático de Direito só se verificaria no confronto com o dado real, com as políticas concretas que viessem concretizá-lo. Assim, é
um contrassenso, uma inconsequência analítica supor que o maior problema (ou
que sua solução) é de base processual – supondo-se que o acesso à justiça
formal é sua maior garantia ou principal característica constitutiva. O devido
processo legal é uma garantia do Estado de Direito, mas não se confunde com os
pressupostos do Estado Democrático de Direito – há muito mais embaixo do tapete
do que o dogmatismo que referencia a justiça dos fóruns[27].
Mesmo porque não há justiça alguma com tanta miséria social. O dogma da
santíssima Trindade[28]
não lhe é a maior preocupação ou o maior desafio – sobretudo se
opusermos essa limitação, esse dogma jurídico às mais reais necessidades de
transformação política, cultural e econômica. O Pai, o Filho, o Espírito
Santo – como uno ou
unidade que mantém a vida e dá
conta da revelação, da verdade – equivale ao eixo, ao núcleo duro do Direito
baseado na segurança jurídica: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito e a coisa julgada”
(CF, art. 5º, XXXVI). Neste
sentido, notaremos facilmente que, se temos em vista o debate social, o
bem maior (a República), o interesse de todos, o contexto coletivo, as
necessidades nacionais, o pacto entre as
partes pode e deve ser revisto e suspenso.
Aliás, outra contradição inerente aos pressupostos do Estado Democrático de Direito refere-se ao fato de que se trata de uma elaboração teórica, mas que só se realizará, materializará com a transformação substancial, radical, profunda (de certo modo, revolucionaria[29]) da política e da economia dos países em questão: Portugal, Espanha e Brasil. No entanto, hoje, em meio à crise de soberania, será possível que esse modelo de Estado, por sua vez embasado no Estado Constitucional clássico, tenha alguma chance de vingar no futuro próximo? Como prevê Canotilho, ainda deveremos continuar a ouvir das características do Estado Constitucional Democrático de Direito, como premissas para entendermos o andamento do Estado atual em boa parte do mundo. Canotilho se ampara nos elementos de sua formação: a) domesticação do domínio e do poder político; b) ampliação da base dos direitos políticos. Além de duas razões subsequentes:
No entanto, ele continua a ser um modelo operacional se pretendermos salientar duas dimensões do Estado como comunidade juridicamente organizada: (1) o Estado é um esquema aceitável de racionalização institucional das sociedades modernas; (2) o Estado constitucional é uma tecnologia política de equilíbrio político-social através da qual se combateram dois “arbítrios” ligados a modelos anteriores, a saber: a autocracia absolutista do poder e os privilégios orgânico-corporativo medievais (CANOTILHO, 1990, p. 90).
Todavia, mesmo diante dessas observações, podemos dizer que no Brasil, sobretudo no meio acadêmico e jurídico, o tema não recebeu tratamento adequado, que ultrapassasse os limites dos manuais: ninguém o estudou de fato. Entre o povo, nunca passou de palavrão – e este é apenas um traço da gravidade de nosso ensino. Enfim, o Estado Democrático de Direito não faz parte da cultura jurídica, não se enraizou com força de transformação, de mudança social. Fato ou observação que invariavelmente nos conduz a repensar a educação e os direitos humanos.
De acordo com a definição clássica, os
direitos humanos são declarados naturais e,
portanto, universais. Esses princípios
naturais e universais constam da Declaração Universal dos Direitos do Homem,
promulgada (e não outorgada) por dezenas de países no dia 10 de dezembro de
1948, junto à Organização das Nações Unidas (ONU) — comemorando-se cinquenta
anos em 1998.
São naturais e universais porque
pertencem a todos os seres humanos e independem de sexo, etnia, idade, poder
aquisitivo, julgamento moral, orientação política, religião, condição física,
orientação sexual, afinidade ideológica. São considerados patrimônios da
humanidade, e assim são entendidos como um tipo de salvaguarda ou pleno
reconhecimento, seja por parte do governo ou de qualquer outra pessoa. Exigem,
portanto, uma defesa intransigente. Seu alcance e abrangência são atestados quando se verifica que temos direito
aos direitos humanos antes mesmo de
termos nascidos. São os chamados direitos das gerações futuras ou direitos de
4ª geração.
Os direitos humanos também são
considerados inalienáveis, indivisíveis, intransferíveis e inamovíveis. Em
primeiro lugar, isto quer dizer que não podemos dispor (alienar: tirar de si) de nossos direitos. São indivisíveis porque não recebemos apenas uma parte desses direitos.
Tome-se o exemplo dos presos: eles não têm direito de liberdade
(dada a pena de reclusão) mas estão
ao alcance do todo o significado das declarações de direitos, como: direito ao
trabalho, à educação, segurança, saúde, lazer, bons tratos, alimentação
adequada.
Contudo, procede perguntar se a liberdade não é um direito humano e se privar alguém do exercício não constitui grave violação dos direitos humanos. No geral, é evidente que sim, mas note-se que a liberdade também é um direito individual e está regulado pela legislação de cada país. Aqui, portanto, faz-se necessária outra distinção: entre os chamados direitos da cidadania ou direitos positivos (referentes a cada Estado e regulados por legislação própria) e os direitos humanos. Ainda no exemplo dos presos, é bom lembrar que também têm suspenso o direito de organização política. Isso se deve ao mesmo fato: o direito de voto ou de organização política é um direito político, estando regulado pelo ordenamento jurídico de cada país.
Por que os direitos humanos são
considerados intransferíveis? São considerados assim, porque, para retomar o
exemplo dos presidiários, nenhuma pessoa pode transferir um direito seu a
outrem. O direito de liberdade não é exceção: uma mãe não pode transferir seu
direito de ir e vir para o filho, indo ocupar seu lugar na prisão. Uma pessoa
que ocupe o lugar de outra na prisão, enganando os guardas na hora da visita,
por exemplo, responderá pelos crimes de
falsidade ideológica e facilitação de fuga.
Todavia, apesar de haver comunicação
entre vários tipos de direitos (no mesmo exemplo, políticos, individuais e
universais), também dizemos que os direitos humanos são inamovíveis. Isto é,
nenhum governo pode alegar confusão entre
os níveis (individual x universal) para negar ou violar um direito humano. Essa
espécie de conflito de interesses entre
o que quer o Estado (chamado de monopólio legítimo do uso da força e do poder)
e o que é direito da pessoa humana é falsa. Para tomar um exemplo radical, o
governo brasileiro não poderia alegar superlotação carcerária para aplicar a
pena de morte (contrariando o artigo 1º, que é o direito à vida), ou alegar falência e deixar de alimentar os
presos.
Isso explica porque não há pena de morte
no Brasil, apesar de muita gente querer. Porque todos os demais direitos
humanos decorrem do direito à vida.
Mas isso só explica em parte. Pois, pode-se alegar que a pena de antecipação da morte existe nos EUA, China, Arábia Saudita.
E por que no Brasil não? No Brasil, vigora o Princípio da Dignidade Humana.
No nosso caso, ocorre, de maneira
diversa, que a Constituição brasileira declara o compromisso com o respeito e
promoção dos direitos humanos (artigo 4º) e especificamente a garantia da inviolabilidade do direito à vida, no
caput (início) do artigo 5º. E, como esses artigos não podem ser alterados — porque
são cláusulas pétreas
ou direitos fundamentais
— fica impedida qualquer
tentativa de reformulação da Constituição através de emendas. Seria
necessário um golpe constitucional, contrariando todo o direito internacional.
Como marco histórico e teórico desses princípios, garantias e direitos fundamentais, a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos são os documentos declaratórios de direitos mais importantes de todo o direito internacional. Pelo fato de terem sido promulgadas por dezenas de países em 1948, tornaram-se um pacto de princípios, interesses comuns e responsabilidades que os obriga a todos da mesma forma. Hoje, tais declarações recobrem todos os continentes e culturas.
Depois de sua
promulgação, porém, e dada a amplitude e universalidade dos princípios
propagados, era necessário que certos temas fossem mais bem detalhados e
legislados de forma específica. O caso mais evidente é a Declaração e Programa de
Ação de Viena (1993), que fixa as noções gerais e abrange questões
específicas como educação em direitos
humanos e outra que talvez seja a mais ampla, a questão do gênero.
A Declaração de Viena, por sua vez,
orienta para que todos os seus signatários se responsabilizem pela promoção e
desenvolvimento de planos e programas de direitos humanos. O Brasil tem seu
próprio Programa Nacional de Direitos
Humanos e atualmente muitos estados já possuem programas estaduais, a
exemplo de São Paulo e de alguns municípios,
como Marília e Lins. A cidade de São Paulo possui um plano e não um programa,
o que de certa forma desobriga o compromisso tácito dos poderes
municipais institucionalizados. Entretanto, no geral, todos esses programas
estipulam metas e orientações a serem seguidas pelo poder público, como a transversalidade do ensino e da prática
dos direitos humanos na educação pública. Também os cursos de ensino superior
de Direito têm matéria obrigatória.
No contexto efetivo, além das intenções, o Brasil deu um passo adiante quando assumiu o compromisso (efetivado em parte) de elaborar tipificações próprias para crimes relacionados às graves violações de direitos humanos. Um exemplo bastante conhecido é a legislação sobre os crimes hediondos, inafiançáveis, e entre eles a punição severa para o crime de tortura (não mais entendido como simples lesão corporal). Porém, o mais importante é que, exemplos como esse desmoronaram o argumento de que a Declaração Universal não tinha poder de lei. Os opositores alegavam que a ONU não poderia obrigar qualquer país a cumprir aquilo que tinham assinado. De fato, não poderia. Mas ocorre que muitos países, como o Brasil, internalizaram os princípios gerais no seu direito penal (e que alcança a todos).
Porém, mesmo que tenhamos definido para
nós mesmos de maneira clara os
desafios extremos colocados pela realidade social e política – e suas extensas
e intensas desigualdades sociais, definidas pelo jurista Fábio Konder Comparato
como crime – é necessário termos em conta a historicidade e os aspectos
culturais dos direitos humanos.
Desse ponto de vista, ainda segundo
Comparato (2001), atualmente, os direitos humanos se encontram na 3ª geração.
Utilizando-se dos ícones da Revolução Francesa, Comparato identifica o anseio
pela liberdade como o baluarte pela
defesa das liberdades individuais, a partir do século XVIII: um marco, portanto, da chamada 1ª geração de
direitos.
Como referência básica da 2ª geração de
direitos, o jurista ressalta a luta pelos Direitos Sociais, e que são
coincidentes, neste sentido, com o grito francês de 1789 pela igualdade. E, como dissemos, enfrentamos
hoje os desafios da 3ª geração — como o direito ao meio ambiente
ecologicamente-equilibrado, direito à paz (vale dizer, desde Kant e sua Paz Perpétua), e à partilha do
patrimônio cultural e científico com toda a humanidade – no que coincidem com o
sonho da fraternidade e com os
Direitos Planetários.
De outra forma, porquê, aparentemente,
não centramos as discussões nos reais problemas
sociais e políticos? Porque esta questão só pode ser tida como aparente.
Efetivamente, quando discutimos um projeto educacional que aprofunde as
questões relativas à realidade tecnológica que nos envolve, de forma alguma, ele se encontra divorciado
da realidade social e política. Porém, é bom que se ressalte, os planos
políticos e tecnológicos se sobrepõem e tanto pior quanto maior for a negativa
dessa realidade.
Parafraseando Comparato (2001), por último, podemos dividir a cidadania em três largos períodos da história: um primeiro, declaratório, que percorre as primeiras Constituições; um segundo em que se incorporam as lutas sociais, mais pela mobilização e participação política, sobretudo decorrentes dos movimentos socialistas do século XIX; um terceiro, por fim, com o destaque da contemporaneidade dos avanços científicos e tecnológicos, o respeito aos direitos das gerações não-nascidas.
A educação é um direito fundamental, e
dessa forma ela é regulada pela Constituição de 1988. Já a Educação em Direitos
Humanos tem inúmeros aspectos – desde a educação que pontua a formação
universal em termos de valores humanos até a educação dirigida para a diferença
(a exemplo da Declaração de Salamanca e
o princípio político que se observa na questão da deficiência física). Ainda
num sentido mais técnico, vemos na educação a proposta da transversalidade no
ensino fundamental e médio e na disciplinarização de seu conteúdo em cursos de
Direito, por exemplo. Porém, é possível destacar um aspecto estrito, mas de
suma importância: a educação nos termos da tolerância.
Nesse sentido, a tolerância se encontra naquela margem nebulosa que não distingue em termos absolutos os campos dos Direitos Humanos dos direitos da cidadania. Tal como a liberdade e a igualdade (consoante nossa Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos).
Como vimos, no quadro do princípio geral, sempre será tolerância em face de algo (Bobbio, 1992), pois tolerância é o oposto do que se verifica nas regras (ou falta de regras) do jogo do vale tudo. Dito de forma invertida, também não condiz com o famoso é proibido proibir. No sentido estrito, da ordem legal da política, a distinção se torna ainda mais tênue; pois não se visualiza com clareza onde começam e terminam as garantias do Estado Democrático de Direito e da tolerância, resumidos em,
a)
princípio da
constitucionalidade, que exprime,
em primeiro lugar, que o
Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição
rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes
e os atos deles
provenientes, como a garantia de atuação livre de regras da
jurisdição constitucional;
b)
princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de constituir uma
democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia
geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º);
c)
sistema de direitos fundamentais que compreende
os individuais, coletivos, sociais e culturais (tít. II, VII e VIII);
d)
princípio da justiça social referido no art.
170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social[31]
(...)
e)
princípio da igualdade (art. 5º, caput,
e I);
f)
princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da
independência do juiz (art. 95);
g)
princípio da legalidade (art. 5º, II);
h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII) (SILVA, 1991, p. 108).
Em um exemplo, o que sustenta hoje o
vínculo entre os níveis de observação ou desacato à consecução da tolerância,
ainda no aspecto legal da política, se expressa no fato de que decorridos mais
de trinta anos da promulgação da chamada Constituição de 1988, vários desses
princípios foram violentamente vilipendiados.
Em que pese tanta desconformidade, nem
mesmo a crítica da aparente não aplicabilidade do ordenamento constitucional
deve constituir impeditivo para não se ter no Estado Democrático de Direito um
caminho para a consecução de uma sociedade justa e igualitária. Pois, como
salientado, o princípio da justiça social lhe configura uma constante, no plano
teórico, e na prática uma (re)visão de
conteúdos e técnicas que melhor se
ajustem aos fins propostos no âmbito social:
Para
a solução do problema social parece ser importante determinar como a ordem
política ou social deve ser constituída, se em base socialista ou capitalista, se tal ordem deve ser estendida até a esfera do
indivíduo ou limitar-se a um mínimo; em resumo, nem tanto determinar como as normas
devem ser criadas, mas principalmente o que deve ser estabelecido pelas normas
(...) Nem mesmo os democratas radicais poderão afirmar que com a questão da
forma do governo também será resolvida a do conteúdo
político, ou seja, do justo e melhor conteúdo da ordem do Estado (Kelsen, 1993,
p.103)[32].
E com isso também se ressalta a abordagem do chamado socialismo jurídico, tal como proposto por Engels, uma vez que não se trata, por definição, de legislação lastreada exclusivamente em valores burgueses. O que está em jogo, ainda que na forma técnico-jurídica, é a definição do próprio formato da democracia e do Estado Democrático de Direito[33] e que, evidentemente, afasta-a do perigo da imposição do pensamento único[34]:
A relatividade do valor, proclamada por determinada confissão política, a impossibilidade de reivindicar um valor absoluto para um programa político, para um ideal político — por mais que estejamos dispostos ao sacrifício para nosso triunfo e pessoalmente convictos dele —, obriga imperiosamente a rejeitar o absolutismo político, quer se trate de uma casta de sacerdotes, de nobres ou de guerreiros, quer se trate de uma classe ou de um grupo privilegiado qualquer (...) A tolerância, os direitos das minorias, a liberdade de expressão e de pensamento, componentes tão característicos de uma democracia, não têm lugar em um sistema político baseado na crença em valores absolutos (KELSEN, 1993, p. 106-202 – grifo nosso).
Para além da formulação racional e técnica da democracia de Kelsen[35], no entanto, há ainda que se combinar democracia política (garantias fundamentais) e democracia social (direitos sociais) que resultem numa democracia participativa (soberania popular, democracia direta ou radical, com respeito aos direitos humanos). Em princípio, Benevides destaca a educação. Pois o chamado núcleo duro, o esqueleto, da democracia deve estar envolto pela elasticidade e globalidade de certos valores, como a solidariedade:
Ao discutir os valores democráticos é importante, no entanto, estabelecer certas prioridades e destacar o valor da solidariedade. A liberdade e a igualdade estão, como se vê, estreitamente ligadas à tolerância. Mas esta é uma virtude passiva, ou seja, é a aceitação da alteridade e das diferenças, mesmo que seja uma aceitação crítica. Enquanto a solidariedade é, em si mesma, uma virtude ativa — por isso muito mais difícil de ser cultivada —, pois exige uma ação positiva para o enfrentamento das diferenças injustas entre os cidadãos. A educação para esses três valores deve ser diferenciada. Não basta educar para a tolerância e para a liberdade, sem o forte vínculo estabelecido entre igualdade e solidariedade. Esta implicará o despertar dos sentimentos de indignação e revolta contra a injustiça e, como proposta pedagógica, deverá impulsionar a criatividade das iniciativas tendentes a suprimi-la, bem como levar ao aprendizado da tomada de decisões em função de prioridades sociais (BENEVIDES, 1996, p. 234).
Nesse sentido, um pouco mais no plano
técnico, uma proposta de educação em direitos humanos ainda deveria ter em
conta a distinção entre legalidade (por exemplo,
o que a Constituição prescreve) e
ilegitimidade (o que se faz para subvertê-la, como as chicanas movidas pelos
poderes, independentemente do que ela resguarde de interesse popular, como já
advertia Kelsen). Também deveria ressaltar o caminho da mais rápida consecução
dos objetivos do Estado Democrático de Direito e aquilo
tudo que o obstaculiza. Isto é,
entre o fim proposto pela justiça social e os meios de que deveria decorrer, há
muitas lacunas e maldades sutis.
Por exemplo: ensinar que o princípio da
representação está em profundo acordo com o Estado Democrático de Direito. Todavia,
para além disso, há remédios
constitucionais populares (de acordo com o princípio da soberania popular)
que fundamentam os direitos do Estado. E que, por fim, tal princípio, no caso brasileiro expresso na iniciativa popular, foi ele próprio obstaculizado durante o Poder Constituinte, dada a quase impossibilidade de
operacionalização decorrente do rigor da previsão constitucional.
Hoje, num exemplo concreto, o projeto de
lei do cidadão (art. 62, parágrafo 2º), exige a subscrição de 1% (um por cento)
do conjunto dos eleitores (mais de um milhão de assinaturas), distribuída por
no mínimo cinco Estados e com mais de três décimos (por cento) distribuídos por
sua vez em cada Estado.
Em síntese, a proposta de educação que
se esboça nesse texto deve privilegiar o regime jurídico do Estado Democrático
de Direito, e alertar sobretudo para a dificuldade que ora se impõe para a
manutenção do mesmo Estado Democrático de Direito (art. 1º), incluindo o
coletivo dos Direitos Humanos (art.
4º; II). Pois, basta mencionar que não há o menor sentido em se falar de
tolerância se não se promove e garante
de forma plausível a participação popular. E se é certo que a tolerância só se dá em face da existência do outro, verificada por meio de sua
intervenção, o mais difícil é verificar em sua estrutura interna o que há de educacional.
Quando os eleitores são motivados por máximas eleitoreiras do tipo rouba e deixa roubar — e as derivativas do rouba, mas faz. Ele é ladrão, mas quem não é? – têm-se a clara incitação para o cometimento de ato criminoso. O que em si constitui crime.
Decorre daí que, deve ser essa a sua substância, uma educação nesses moldes encontra amparo na efetivação da participação da democracia direta, e se impõe pela mediação da tolerância, entre os projetos e interesses pessoais e o chamado bem público comum (o objetivo sintetizador da República – Res: coisa pública – e da democracia participativa: o domínio do cidadão-governante) (Canivez, 1991), ou, como nos diz Benevides,
Finalmente, é bom lembrar que a educação política através da participação em processos decisórios, de interesse público — como em referendos, plebiscitos e iniciativas populares —, é importante em si, independentemente do resultado do processo. As campanhas que precedem às consultas populares têm uma função informativa e educativa, de valor inegável, tanto para os participantes do lado “do povo”, quanto para os próprios dirigentes e lideranças políticas (...) Possibilita, nas suas diferentes fases, uma efetiva discussão pública sobre as questões em causa, contribuindo, assim, decisivamente, para a educação política do cidadão (BENEVIDES, 1991, p. 198).
E creio mesmo que deva
ser assim pois não há outro remédio que reuna condições de afrontar os arcana imperii, de que fala Bobbio, aquela súmula da chamada última razão dos reis, especialmente quando expressa nos abusos do poder, com a novidade golpista de 2016: a vontade
do rei é a lei suprema
expressa o ato imperial imposto ou outorgado por determinação exclusiva
de quem detém o controle do poder político e, em nome deste, subverte
até mesmo a ordem estabelecida que
antes deveria lhe dar sustentação e legitimidade. Já a súmula da tolerância está no embate que promove
contra essa via prussiana inconstitucional (portanto, completamente ilegal e ilegítima), e que se move e busca
legitimidade no pensamento único que provém do poder autocrático:
alardeado em nome da sobrevida no jogo político
embalado pelo realismo político.
É o caso de sempre se retomar os limites da política real (Realpolitik) em face do conjunto de valores? Para o projeto de educação que aqui se esboça, de certa forma sim. Tome-se o fato, em outro exemplo, de que legitimidade em hipótese alguma significa unanimidade ou unicidade[36]. Não fosse por outra razão qualquer, a conclusão decorre do simples fato de que a unanimidade retira qualquer possibilidade de haver dissensão, isto é um pré-requisito em termos de tolerância. Com o que também se esvai o princípio do pluralismo, vigente no âmbito democrático, além de configurar uma modalidade clara de leis injustas:
Por exemplo: a lei é injusta quando discrimina um grupo minoritário, embora possa até ter sido votada pela maioria (...) A lei é injusta quando se impõe a pessoas sem direito a voto[37] (...) A lei é injusta quando uma minoria a torna obrigatória para a maioria, que não foi consultada, nem lhe deu pelo voto autorização para existir (...) A lei é injusta quando votada por falsa maioria, que só aparenta representar a maior parte dos indivíduos, devido a jogadas feitas durante as eleições. A lei é injusta quando submete uma infinidade de pessoas a viverem miseravelmente. A lei é injusta quando permite que um país pressione de qualquer modo ou ataque militarmente, ou apenas ocupe outro país, outra região, sem consentimento de seus próprios habitantes (VIEIRA, 1984, p. 21-22).
Se fosse possível resumir o estado de
injustiça em uma única expressão, diríamos que a lei é injusta quando não tem
legitimidade. Em outro exemplo, quando há legislação de acordo com a própria
causa[38].
Então é o caso de se argumentar a favor do descumprimento de tais leis injustas, a fim de que se remova o entulho arbitrário, em busca da promulgação de leis legítimas ou legitimadas pela soberania popular. No caso brasileiro também há o caso das leis iníquas, aquelas que não pegam justamente porque não inspiram anuência e confiança no povo. Fato que não constitui um problema exclusivamente brasileiro, pois quando não há legitimidade:
Quando os hábitos de submissão da população declinam ou desaparecem, as leis podem tornar-se inaplicáveis. Estas tornam-se, geralmente, de difícil execução quando menos de 90% da população lhes obedece voluntariamente. Foi o que aconteceu com a proibição. Um pouco mais de 50% do eleitorado americano tentou proscrever a sede de bebidas alcoólicas de um pouco menos dos outros 50%, mas a generalizada insubmissão às leis correspondentes impossibilitou o seu cumprimento. Isto, por sua vez, encorajou ainda outras desobediências à lei (...) Usamos leis para controlar o comportamento humano porque não custa muito fazê-las aprovar e, desde que a maioria das pessoas lhes obedeça voluntariamente, também não custa muito pô- las em vigor (DEUTSCH, 1979, p. 39).
Uma tarefa que cabe a cada um de nós, a tarefa de enfrentar a submissão:
Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio (...) É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios (LA BOETIE, 1986, p. 25).
A melhor forma de enfrentamento à submissão, opressão, se dá na Autoeducação política (Freire, 1993).
Aí está o crescente desafio de uma educação voltada à tolerância, ou seja, transpor os largos limites da incompreensão e da própria intolerância. Trata- se da dificílima e custosa tarefa de remover, de dentro de cada um, o chamado compasso de espera — expresso no ditado popular de que devemos deixar como está para ver como fica —, a indiferença ou mera resignação interessada daqueles que sonham dormir o sono dos justos, mas que não ultrapassam a mais simplista das ilusões, porque:
Pensas sempre a curto prazo, Zé Ninguém, o teu tempo medeia de uma refeição a outra. terás de aprender a memória em termos de séculos, e a perspectiva do futuro em termos de milénio. Terás de aprendê-la em termos da própria vida, em termos do teu desenvolvimento desde o primeiro floco plasmático até ao animal humano, capaz de caminhar erecto, mas incapaz ainda de pensar com justeza. Porque a tua memória não retém acontecimentos de há dez ou vinte anos, continuas repetindo as mesmas asneiras de há dois milénios. E mais ainda: agarras-te a elas — à tua “raça”, “classe”, “nação”, aos teus ritos religiosos compulsivos, à supressão do amor, como um piolho se aferra à pele (REICH, 1982, p. 87).
No caso brasileiro, a educação para a
tolerância ainda esbarra no espólio do tal homem
cordial, escondido sob a capa do clientelismo, oportunismo, coronelismo,
patriarcalismo. De maneira mais ampla, e de acordo com a lógica formal, a ideia
central é que a educação para a tolerância deva ser direcionada para eliminar
as estruturas autoritárias que influenciam cada pessoa, baseadas em distinções
de cor, etnia, classe, nação, religião, entre outras. Além disso, essa educação
deve-se garantir que ninguém seja privado de sua dignidade e igualdade por
essas mesmas distinções. Tratamos, então, de uma educação focada em valores e
em direitos humanos que estão tanto no centro do Estado Democrático de Direito,
quanto no ideal de uma sociedade mais justa e equitativa, voltada para a justiça social[39].
Como se vê, portanto, nesse caminho que é tão longo quanto o que separa o mar do pico das montanhas, a educação para a tolerância se estabelece no nível da consciência e é própria do ser da ação. E dele será a luta para remover o mesmismo segregacionista de que temos direitos proporcionais à condição econômica, cor, escolaridade, classe, nação: as expressões materiais das leis injustas que se mantém resguardando privilégios (privi, privado, e legem, lei: leis privadas). Deve-se, portanto, repelir a violência chamada de original e injusta. E só nesse dia, por fim, é que sentiremos o verdadeiro Espírito da Revolução, porque: “A justiça será simples...quando o espírito público voltado para a razão deixar os tribunais desertos (afinal) o que é honesto caminha por si mesmo” (Saint-Just, 1989, p. 151).
Em sentido complementar, o alcance
universal, a heterogeneidade cultural, difusão
social e virtualidade humana não constituem igualmente características do conjunto complexo dos Direitos Humanos?
Nossa intenção nesse momento, vale repetir, quando se acentua a questão das interatividades – se
tomarmos como oportuna a
comparação com os objetivos da própria inteligência
coletiva requerida nos dias atuais –, combina esforços no intuito de superar a
fragmentação dos variados interesses dispostos e dispersos individualmente,
articulando-os em projetos de alcance social – a contento, portanto, da
observância do conjunto dos direitos humanos.
De tal
forma que também podemos pensar na mídia, na própria Internet, ou no conjunto amplo dos meios, das técnicas e de tudo que é instrumentalizado
como um Pharmakon. E se nos
diversos meios encontra-se, aliás de sobra, o que desinforma, ou seja, o que faz desaprender, o que deseduca e
deforma, também se encontra aquilo que desenforma,
e educa e interage com novas formas. Daí que
a questão passa a ser mais ampla,
porque podemos pensar nas formas e nas “fôrmas”, que tanto informam, formam,
deformam, tiram da fôrma, dão outra forma,
reformam, transformam. Por fim, a variável que desforma, como indicava Ortega y
Gasset (1991) com a ideia da desantropomorfização,
também no sentido de que desumanizar é
libertar da forma e da fôrma natural.
E estilizar, desumanizar, também não nos
convida ao virtual, a navegar para fora das formas e fôrmas pré-datadas e
pré-figuradas? E, em sentido contrário, isso será uma outra característica da
ideia de rede, em que podemos virtualizar
experiências pessoais e coletivas? A ideia de rede não será um novo Pharmakon, em que os fractais de que
fala Lévy podem dialetizar-se num
constructo coletivo? Na última pergunta, a ideia de rede não expressaria uma
espécie de comprovação matemática de que o uno
(o usuário isolado na Internet, ausente e presente, ou o cidadão que se
contenta com o ato do voto) pode dialetizar-se na construção múltipla
(Martinez, 2001)?
Por isso, ao nos comunicarmos – produzindo mensagens políticas – nos informamos; porém, de forma aberta e múltipla, uma vez que o próprio humano
interage em multiplicidades. Do contrário, não tendo o parâmetro da política, a própria tecnologia da comunicação não ultrapassa seu limite extensor: o que opõe, numa estrutura de ação/intenção/interação, os pares extensão (rádio, TV, jornais etc) e comunicação (Internet).
No sentido exposto, desde os chineses do século V antes de nossa era, portanto bem antes de Maquiavel (1979), a potência, o virtual, o germinal, é uma condição significativa, preditiva. Porque a vida é virtual e está ligada em rede, na imagem criada pelo rizoma[40] ou por uma ramada de neurônios[41]: metaforicamente, identifica-se com o sistema nervoso da vida, da mesma forma que a comunicação será o sistema nervoso da política. Porém, também em Lévy, a comunicação será política. No entanto, nesse ponto, surge um elemento agregador e que é a criação auto-organizada da inteligência coletiva – na perspectiva de que os atos individuais, os projetos de busca dos usuários, articulam-se e reagrupam-se na construção coletiva, acabam por constituir (e)feitos cognitivos, tolerantes, educativos, comunicativos, interativos e políticos. Pois:
Não se trata apenas de raciocinar em termos de impacto (qual o impacto das “infovias” na vida política, econômica ou cultural?), mas também em termos de projeto (com que objetivo queremos desenvolver as redes digitais de comunicação interativa?). Na verdade, as decisões técnicas, a adoção de normas e regulamentos, as políticas tarifárias contribuirão, queiramos ou não, para modelar os equipamentos coletivos da sensibilidade, da inteligência e da coordenação que formarão no futuro a infra-estrutura de uma civilização mundializada (...) É por isso que a invenção de novos procedimentos de pensamento e negociação que possam fazer emergir verdadeiras inteligências coletivas se faz urgente. As tecnologias intelectuais não se limitam a ocupar um setor entre outros da mutação antropológica contemporânea: elas são potencialmente sua zona crítica, seu lugar político. É preciso enfatizá-lo? Os instrumentos da comunicação e do pensamento coletivo não serão reinventados sem que se reinvente a democracia, uma democracia distribuída por toda parte, ativa, molecular. Neste ponto perigoso de virada ou de encerramento, a humanidade poderia reapoderar-se de seu futuro. Não entregando seu destino nas mãos de algum mecanismo supostamente inteligente, mas produzindo sistematicamente as ferramentas que lhe permitirão constituir-se em coletivos inteligentes, capazes de se orientar entre os mares tempestuosos da mutação (LÉVY, 1998a, p. 13-15).
De forma semelhante, o ponto de mutação, a que chamo de interação, já havia sido avistado nas ciências físicas. Pois também será essa inquietude do virtual (aqui, a virtude da criação) que simboliza a busca do sentido oculto. Por outro lado, e essa parece a questão central, “se” na ideia de rede há a possibilidade infinda da comunicação, “então”, um dia, chegaremos a antever coletivamente as consequências futuras de nossas ações presentes, como quer Habermas (1980)[42]? Ou, dito de outra forma, se o direito à educação e o direito à comunicação são direitos políticos, porque públicos, então tanto a educação como a comunicação, necessariamente, são atos politicamente intencionados e tecnicamente tencionados; ambos necessários, mas não suficientes em si, porque nem a comunicação e nem a educação pode ser tida como assépticas, inodoras e incolores[43], uma vez que são virtualmente políticas.
É esse o momento também em que o educador progressista percebe que a claridade política é indispensável, necessária, mas não suficiente, como também percebe que a competência científica é necessária, mas igualmente não suficiente (FREIRE, 1993, p. 54).
Porque, do contrário, invertendo-se a
regra da estrutura e do princípio do leade[44], referência e
pressuposto de qualquer tentativa de comunicação, têm-se a exceção da regra,
onde: “não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em
qualquer lugar e em qualquer circunstância” (Chauí, 1990, p. 07)[45].
Tal torção semântica, no entanto, não tem limites e se comunica ao próprio
poder que deveria regular a comunicação, a fim de que não caísse prisioneira do
abuso, da intolerância e do monopólio. Por isso também devemos refletir nos caminhos (como quer o Tao) que podem nos conduzir da lógica do
poder à presença da tolerância, ou que levem a tolerância ao poder –
preferencialmente legítimo.
Na relação estritamente política (aliás,
como já visto), a prática da tolerância está no meio das duas meias-verdades que representam o certo e
o errado, e talvez por isso seja a mais difícil de ser praticada. No entanto, a
tolerância exige que olhemos para nós como olhamos, interrogamos e cobramos os
outros. É o popular fio da navalha.
Sua sustentação é frágil, mas requer ampla comunicação, diálogo com todas as
partes envolvidas, participação de todos na definição das regras que devem
definir o interesse comum (o chamado bem
público comum), regras estabelecidas para todos, regras que não excluam ou
limitem a participação de alguns e beneficiem outros, abertura para encarar e
entender o diferente, crítica e
autocrítica; enfim, a capacidade de retrair a vontade pessoal sempre que se
chocar com o interesse público[46].
Não faz sentido falar de tolerância no
âmbito político (como uma ética consensual) sem garantir, de maneira concreta,
a participação popular. Além disso, se a tolerância depende da presença do
outro, que se estabelece por meio de sua intervenção, o desafio maior é
entender o que, dentro desse processo, possui caráter educacional.
Por exemplo, no nível mais técnico e
teórico, no que diz respeito ao Brasil,
em que a maioria absoluta dos eleitores está condicionada à faixa que se
denomina de analfabetos funcionais e
uma outra grande soma é constituída de analfabetos
totais, como se pode exigir o reconhecimento da lei? Ou melhor, como se pode esperar o reconhecimento da
lei sem educação? Por isso, chega a ser cínica a alegação de que a ninguém será permitido alegar ignorância
da lei.
A tolerância se baseia na luta contra a
distorção dos poderes estabelecidos – algo que tem marcado a política
brasileira nos últimos tempos. Esse fenômeno, ilegal e ilegítimo, busca
justificar-se por meio de uma ideologia de
pensamento único, que inclui o desmonte do Estado, o suposto fim das ideologias
socialistas e democráticas, a ignorância sobre a função social da propriedade,
a prioridade do interesse privado sobre o público, e a falta de legalidade
diante de interesses políticos imediatos. Tudo isso ocorre, supostamente, para
garantir uma sobrevivência política sob o pretexto do realismo político.
A tolerância tampouco estabelece uma
relação de passividade ou abstinência diante das irregularidades e do descompromisso social que nos cerca.
Requer uma luta incessante, de todos os segmentos sociais afetados, em defesa
dos direitos básicos da pessoa humana, também chamados de direitos humanos,
especialmente pela manutenção e revigoramento dos direitos sociais frente à
flexibilização neoliberal[47].
De tal modo que, diante do descalabro social, devemos aproveitar a lição de que
a luta deve ser coletiva e preventiva. Isto é, não podemos esperar pela agressão, seja ao trabalhador anônimo seja
às comunidades ou instituições públicas, para agir. Como se sabe, diante da
agressão, a reação pura e simples é limitada no tempo e no alcance.
Parece não haver outro remédio que reúna condições de afrontar aqueles que se julgam senhores do poder que não passe pela participação. Daí também se falar que é um remédio político e jurídico capaz de minimizar os resultados nefastos do que o filósofo italiano Norberto Bobbio chamou de arcana imperii: espécie de arcadas do poder a que só os senhorios da política (os políticos profissionais) têm acesso livre. Uma espécie de resumo da conduta política dos governantes autoritários, também vista como súmula da última razão dos reis (e que é, como já vimos, o último argumento em favor do uso da força física).
Nos termos da tolerância política também
não se propõe a penitência, do tipo mea
culpa (minha máxima culpa), como
se o sujeito dizendo que é o pior de todos quisesse, ao contrário,
ser reconhecido como o melhor, como o
único capaz de assumir
publicamente o que fez de mal. Isso seria hipocrisia, porque a admissão do erro
soaria apenas como subterfúgio moral para se sair ainda mais vangloriado: no
popular, o sujeito dá um anel imoral para não perder os dedos atados aos anéis
da corrupção. E nada seria pior, portanto, do que o exemplo do pecador,
passados os dias de glória, arvorar-se de santo.
A prática da tolerância também não se
concretiza por meio de exemplos isolados, justamente porque é uma tarefa de
reconstituição da convivência pública. É claro que a tolerância deve ser
tentada no dia a dia, pelas pessoas de carne e osso, uma a uma, não se
relegando o caminho a seguir ao ente abstrato dos atos da administração
pública. Mas se as normas passam a ser definidas socialmente, então o exemplo
isolado não é mais do que um caso pitoresco, voluntarioso, exibicionista. Na
melhor das hipóteses, seria um gesto altruísta, um aceno de um sujeito que se
deu em nome do grupo – devemos lembrar que nas sociedades menos tolerantes,
primitivas e contemporâneas, esse tipo de doação pública normalmente resulta em
suicídio.
Também em sociedades contemporâneas é
exatamente a prática intolerante que promove
a imolação pública, o exemplo
que deve apenas chocar o público para que os demais sejam
desencorajados e não tomem as mesmas atitudes que provocaram o castigo. Via de
regra, nessas sociedades, os avisos começam com ameaças (também de morte) e as
punições variam entre o açoite, amputação de membros (das mãos em caso de
roubo, por exemplo) e a pena de morte, a mais severa.
A pena de morte é apelidada de pena
capital, porque vem do latim caput,
que quer dizer cabeça: o órgão da consciência, do pensamento, do sentimento. Em
suma, o órgão que orientou a ação
que deve ser punida. Daí que ainda
hoje é comum ouvirmos falar de execuções com tiros na nuca ou decapitações
(Arábia Saudita), como símbolos de ações punitivas que buscam silenciar a
consciência, o pensamento e o
sentimento pervertido.
Nesse ponto, parece haver uma
desproporção quando discutimos a tolerância e em seguida a pena de morte, mas,
no fundo, não há, porque a pena de morte é por natureza
o ato mais intolerante. É um tanto redundante,
entretanto, podemos dizer que as execuções
são finalistas e não permitem reconversão. São terminalistas, isto é, colocam
um fim absoluto à questão. E se a tolerância se define e se materializa pela
capacidade de comunicação e deliberação, sobretudo no que há de interesse
social, então é de se supor que não possa haver um fim decretado em termos tão
absolutos. A não ser, é claro, o fim que propugna pela manutenção da própria
tolerância.
De tal modo que, por força da coerência,
não podemos definir coletivamente pelo fim da tolerância. Só de aventarmos a
possibilidade de que haja um acordo coletivo e soberano em busca desse
resultado, os princípios da tolerância já
teriam desaparecido. Simplesmente porque a deliberação
sobre o fim da tolerância derivou de um ato intolerante. Seu autor ou
mentor, julgando-se mais forte e
preparado, estará com isso tentando impor aos mais fracos as mesmas regras que o
beneficiam.
O que revela que os atos que propõem
efetivar práticas de intolerância, também terminalistas porque derivam do fim
da tolerância, não partem da verdade
e sim de uma tremenda injustiça: a de tratar
os mais fracos pelas leis dos mais fortes ou injustos. E aí os injustiçados estarão outra
vez sob a regra da violência que orienta uma maneira específica de tratar a
política. Além do mais, não se pode aceitar o argumento (falso) de que os
fracos virão a público reconhecer que de fato são inferiores, subalternos,
despreparados. A humilhação e a execração também são atos e fatos profundamente
intolerantes.
Nesse sentido da tolerância, os mais
preparados (o que não quer dizer superioridade, de nenhuma natureza) em virtude
e em razão de alguma atitude, e não por princípio de alguma condição natural
(genética) ou social, devem colocar- se à disposição do benefício geral. Do
contrário, o que deveria ser de interesse geral configura-se apenas como
benefício privado: em nome de pretensa
superioridade, julga-se merecedor de amealhar maiores
benefícios. O que apenas
gera distinções, separações e oposições, e que, por sua vez, impulsionam a
permanência dos mesmos beneficiados nos postos em que se encontram,
aprofundando-se ainda mais as desigualdades. E aí temos novamente a prática da intolerância, uma vez que no lugar de
se reconhecer o que é diverso, diferente de nós mesmos em alguns atributos
(físicos, intelectuais), impõem-se a desigualdade nos mesmos e velhos
patamares: melhores e piores, superiores e inferiores, fortes e fracos.
Daí que as diferenças sociais,
políticas, econômicas, sexuais, físicas, de etnia não podem ser tomadas como sinônimos (e, portanto, como argumento favorável) da desigualdade. Em
uma expressão, a desigualdade é crime — afinal, não fosse por outros motivos, todos somos iguais perante a lei. Já a
diferença faz de nós o que somos, seres ímpares, diferentes até mesmo na
genética de nossos pais. Mas mesmo a mais chocante diferença entre culturas ou
condição física não nos coloca em melhor ou pior situação. Porque, por mais
diferentes que sejamos dos outros, há algo que nos unifica como seres humanos:
a finalidade. Isto é, como dizia o filósofo Kant, o homem não pode ser tomado
como um meio, porque ele é um fim em si mesmo. E neste caso, o nosso
fim último seria o de constituir a própria humanidade.
Para visualizarmos isto, basta verificar
que apesar de toda a humanidade ser constituída de seres únicos, e os mais
diversos e diferentes, a genética humana tem na base uma cadeia simétrica de
DNA (o conhecido Ácido Desoxirribonuclêico, que define todas as nossas
diferenças físicas, cognitivas e psicológicas).
Em suma, a desigualdade é intolerante porque na seleção entre nós e os outros, é igualmente óbvio, preferimos e destacamos a nossa superioridade em relação aos outros. O que, se por um lado, coloca-nos na posição confortável da superioridade, por outro, segrega e condena os demais à eterna condição de inferiores. A mesma modalidade terminalista que determina lucros e benesses para uns e prejuízos e punições para outros. Até o último dos dias. E isso não é, de novo, a aquiescência da violência?
Em síntese, uma proposta de educação
para a tolerância deve privilegiar o
regime jurídico do Estado Democrático de Direito, e alertar sobretudo para a
dificuldade que se impõe para a manutenção desse mesmo Estado Democrático de
Direito (art. 1º da Constituição Federal), incluindo-se o coletivo dos direitos
humanos (art. 4º - II da C.F.).
Teórica e historicamente, essa
perspectiva consensual (ética) de ver a política, Bobbio analisa como sendo a
que deu origem ao Estado Democrático de Direito, em que há anterior fixação das
regras do jogo[48]. Coincide também com o
aparecimento do cidadão moderno,
único objeto da defesa das regras democráticas, na verdade como sujeito de
direitos não disponíveis pela força do Estado, enfim, o reino do status legal e
da legitimidade popular[49].
Uma educação para a tolerância encontra amparo na efetiva participação popular, nos moldes da democracia direta[50]. E se impõe pela necessidade de que haja uma mediação tolerante entre os projetos e interesses pessoais e o chamado bem público comum: o objetivo que sintetiza a República (Res: coisa; pública: de todos) e da democracia participativa, o domínio do espaço político em que o cidadão não é mais tido como mero coadjuvante do governo.
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[1]Veja-se que
ainda sentíamos a forte influência norte-americana, a exemplo do Art 1º da
Constituição de 1946: “Os Estados Unidos do Brasil mantêm, sob o regime
representativo, a Federação e a República”.
[2] Mesmo que os
analfabetos não tivessem direito de voto, ao contrário de hoje: “Art 132 - Não
podem alistar-se eleitores: I - os analfabetos; II - os que não saibam
exprimir-se na língua nacional; III -
os que estejam privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos.
Parágrafo único - Também não podem alistar-se eleitores as praças de pré, salvo
os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos
e os alunos das escolas militares de ensino superior” (grifo nosso).
[3] A ressalva de
que não haverá partido político com clara intenção atentatória ao Estado
Democrático de Direito e aos Direitos Humanos não consta da Constituição de
1988 porque o Princípio da Unicidade Constitucional não permite qualquer
dedução em contrário. Vimos a aplicação desse princípio quando se investiu uma
“falsa tese jurídica” em favor da retomada do Poder Moderador.
[4] Tendo o cravo
vermelho como símbolo, fez-se essa revolução político-institucional a 25 de
abril de 1974.
[5] Para um breve histórico: http://www.utopia.com.br/cc25a/25abril/historico.html.
[6] Já seguiam destaque os meios de controle institucional do Estado e do Direito, diga-se de passagem, desde a fundação do Estado de Direito clássico: a) império da lei; b) direitos e garantias individuais; c) separação constitucional dos poderes.
[7] “a) submissão ao império da lei, que era a nota primária
de seu conceito, sendo a lei considerada
como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representante do
povo, mas do povo cidadão; b) divisão de poderes, que separe de forma
independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como
técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e
imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos
particulares; c) enunciado e garantias dos direitos individuais”. (Silva, 1991,
p. 100).
[8] Por isso, não nos é suficiente
neste momento a alegação sociológica de
que o direito é um fato social; pois,
estamos distantes da delimitação limítrofe da coercibilidade e da
exterioridade.
[9] É este o compasso que condiz
com a insurgência do Estado Democrático no pós-guerra, como viemos destacando
ao longo deste tópico.
[10] Atente-se aqui
que, em primeiro lugar, está a Lei das Leis, ou seja, a Constituição e o
próprio Princípio da
Constitucionalidade, dos quais decorre o Ordenamento Jurídico.
[11] Há uma diferença terminológica entre as
construções conceituais empregadas por nós e por Damásio, quanto à nomenclatura
utilizada para definirmos Estado
Democrático de Direito Social. Pois, enquanto nos baseamos em José Afonso
da Silva, Damásio busca amparo nos penalistas portugueses: que seguem, como se
sabe, a construção constitucional daquele país - Estado de Direito Democrático.
[12] Observemos que aqui Damásio
retoma o sentido
adotado pela Constituição brasileira.
[13] Vejamos que Anabela parece mais construir uma
frase do que propriamente articular o conceito com todos os seus elementos
necessários – como fez José Afonso da Silva e como intentamos com nosso
Estado Democrático de Direito Social, em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4613
[14] Gostaria de agradecer as indicações bibliográficas de Damásio e de Anabela,
à mestra em Direito Fátima Ferreira P. da Silva, cujo tema de monografia
é: “A Ressocialização como Política
Pública
no Estado Democrático de Direito Social”.
[15] Este texto
que trago para uma reflexão, digamos mais teórica, é resultado de muita
conversa, debate e exposição em sala de aula. Por isso, agradeço aos meus
alunos-interlocutores, ainda que não
me seja possível nomear a todos,
assim como também destaco as pequenas publicações de parcelas do que
hoje retificamos e alinhamos num único conjunto.
[16] Aqui, referimo-nos ao ideal de justiça material, de oportunidades ou socioeconômica.
[17] Para um exemplo mais radical em que a sociedade civil se
depara com a consciência pública
de
que pode banir o próprio Estado, pensemos na Comuna de Paris.
[18] Por mais
incrível que pareça, no Brasil de 2024, muitos políticos e juristas não
refletem a obviedade da separação de poderes.
[19] Por se
tratar de um jornalista com formação em Ciência Política, talvez se explique
porque sua leitura não segue os limites da apresentação histórico-dogmática que
habitualmente cerca o conceito.
[20] Garante que, por meio de emenda
constitucional, não se altere a separação dos poderes e nem se interfira nos
direitos e nas garantias fundamentais.
[21] A Constituição
Federal de 1988 assegurou que não se alteraria a forma federativa do governo e o direito de voto livre e secreto.
[22] Virtual
como virtude e como virtualidade: o que recobre de
possibilidades reais a transformação de uma semente, uma promessa, em ser
adulto, em fase de afirmação e de autonomia.
[23] Apenas relembremos que aqui o foco se dirige às políticas públicas,
o rescaldo negativo
do neoliberalismo.
[24] Veja-se o preâmbulo da Constituição Portuguesa.
[25] Neste
sentido histórico, basta retomar a Revolução Mexicana e a Constituição Mexicana
a fim de não se circunscrever ao
continente europeu.
[26] Este sim um modelo datado, pois deveria servir
de anteparo ao desenvolvimento do bloco socialista durante o período da
Guerra-Fria e, por isso, sucumbiu junto com a queda do Muro de Berlim.
[27] Dogma ou dogmática é,
exatamente, a tese que não admite reflexão crítica, em busca de sua superação.
[28] O Pai, o Filho,
o Espírito Santo: Gênesis 1:1-2;
João 1:1-3; Colossenses 1:16.
[29] É possível suplantarmos os limites e as
restrições do sistema capitalista pela via democrática, pacífica, pelo caminho
do Direito como equilíbrio?
[30] Comunicação
apresentada no II Seminário “Direitos Humanos no Século XXI”, na Unesp de Marília, no dia 05 de novembro de 1998.
[31] Como alerta José Afonso da Silva,
diferentemente da Constituição portuguesa, a nossa não contemplou diretamente o
caminho para o socialismo (1991, p. 108). E tampouco a destinação de
instrumentos político-jurídicos de remoção dos obstáculos do aprofundamento da
democracia social, como está presente no art. 3º da Constituição italiana
(Martinez, 1997).
[32] É de se ressaltar que Kelsen não se define como
socialista e que sua preocupação geral com a questão da democracia é
desenvolver a estrutura racional de
sua sustentação. Porém, ainda que não se identifique com a corrente da chamada democracia radical, sua proposta
ultrapassa a ideia de democracia plebiscitária formulada por
Weber: “A essência ou o princípio
inspirador da democracia é a liberdade combinada com a igualdade” (Kelsen,
1993, p. 380 – grifo nosso). (conforme nota 48).
[33] O Estado
Democrático de Direito que é um caminho para o socialismo, como destaca Silva
(1991), citando o artigo 2º da Constituição portuguesa, no sentido de que ele
é: “baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e
liberdades fundamentais e no pluralismo
de expressão e organização política democráticas, que tem por objetivo
assegurar a transição para o socialismo mediante a realização da democracia
econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”
(p. 105-106). Também é o caso de lembrar Bobbio quando cita o artigo 3º da
Constituição italiana, frisando a necessidade da especificação de meios que
levem à maior justiça social: “Todos os cidadãos têm paridade social e são
iguais perante a lei, sem
discriminação de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas, condições
pessoais e sociais. Cabe à República remover os obstáculos de ordem social e
econômica que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos,
impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana
e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política,
econômica e social do país” (Bobbio, 1995, p. 121). E ainda que a nossa
Constituição de 1988 não tenha dado toda a ênfase italiana ou portuguesa,
deve-se frisar que as garantias fundamentais e os direitos sociais aprofundaram a perspectiva brasileira quanto à defesa de corretivos legais que possibilitem uma maior igualdade social.
[34] Aliás, o cronista e escritor Nelson Rodrigues
há muito alertou para o fato de que a unanimidade é burra.
[35] Cito o autor
justamente para demonstrar que há um núcleo duro que
dirige a estrutura democrática, mas também para ressaltar que esse núcleo deve
estar envolto em valores igualmente democráticos: identificados aqui como públicos,
sociais, políticos e individuais.
[36] A mesma estrutura racional e técnica da democracia representativa em
Kelsen (1993), de forma quase matemática, ainda é um contra-argumento a favor
da proporcionalidade e contra o fato de que em política sempre há um jogo de soma-zero — onde
para um vencer o outro tem de perder
—, porque no jogo
verdadeiramente democrático não pode haver perdedores
e vencedores: “No caso ideal de
eleições proporcionais não há vencidos, pois não se recorre à maioria. Para ser
eleito não é necessário realmente obter maioria de votos, mas é suficiente
obter um ‘mínimo’, cujo cálculo constitui a
característica da técnica
proporcional. Se for considerado o resultado
global das eleições, se o
corpo representativo, formado através da eleição proporcional, for confrontado,
como unanimidade, com o corpo eleitoral como totalidade, em certo sentido
poder-se-á reconhecer — o que talvez
seja considerado a essência da proporcionalidade — que tal representação foi
eleita com os votos de todos e contra os votos de ninguém, isto é, por
unanimidade (...) O outro caso-limite ocorreria quando até o menor partido
imaginável, constituído por um só eleitor, também fosse representado
proporcionalmente. Mas isso equivaleria a uma aniquilação do sistema
parlamentar, sendo assim necessários tantos eleitos quantos eleitores — sistema
esse da democracia direta” (p. 72).
[37] A
regulamentação da iniciativa popular, ao desqualificar o não-eleitor como possível
protagonista de projeto de lei popular, não incorre nesse desvio?
[38] É um caso típico de previsão dos limites dos direitos do Estado: “a) em nenhuma
situação se deve admitir que o governo possa agir fora da lei. A grande
preocupação dos primeiros constitucionalistas foi justamente o estabelecimento
de limites jurídicos para o exercício do poder político (...) b) a concessão de
poderes excepcionais para o governo agir em situação de emergência deve ser
expressamente prevista na Constituição, devendo haver sempre o cuidado de só
permitir o uso de meios excepcionais dentro dos limites estritamente
necessários, com a mínima amplitude e pelo tempo mais reduzido que for
possível. Em qualquer hipótese a Constituição deverá continuar vigorando como
lei maior; c) em todas as circunstâncias o governo deve ser submetido a um
sistema de controle permanente, que inclua a necessidade de concordância de
mais de um órgão para a prática dos atos de maior consequência sobre os
direitos, bem como a publicidade de todos os atos do governo. O controle precisa
ser feito também pelos governados, aos quais deve
ser assegurado o direito de pedir e obter explicações sobre qualquer atitude de
qualquer órgão governamental, sem uma única exceção; d) todos os que agirem, em
qualquer área ou nível, como integrantes de algum órgão público ou exercendo
uma função pública devem ser juridicamente responsáveis por seus atos e
omissões. Para efetivação dessa responsabilidade é preciso admitir que o agente
do poder público ou o exercente de função pública possam ser chamados a dar
explicações, por qualquer pessoa do povo, por um grupo social definido ou por
um órgão público previsto na Constituição como agente fiscalizador (DALLARI,
1985, p. 30).
[39] À essa altura é óbvio, mas ressalto que só pode
haver referência à desigualdade quanto ao potencial, nos moldes da tradição
marxiana (Marx & Engels, 1987) de que a
cada um deve ser dado de acordo com sua necessidade e de cada um deve ser
esperado/cobrado de acordo com sua capacidade. De resto, a partir da noção
mínima de que todos são iguais perante a
lei, toda forma de desigualdade será criminosa – a não ser como
discriminação positiva ou discrímen.
[40] Lévy, 1996.
[41] “A
cibercultura encarna a forma horizontal, simultânea, puramente espacial da
transmissão. Para ela, o tempo é uma
decorrência. Sua principal operação é conectar no espaço, construir e estender
os rizomas do sentido. Eis o ciberespaço, o pulular de suas comunidades, o
matagal espesso de suas obras, como se toda a memória
dos homens se desdobrasse num único instante: um imenso ato de inteligência
coletiva sincronizado, convergindo para o presente, clarão silencioso,
divergente, explodindo como uma ramada de neurônios” (Lévy, 1998c, p. 3).
[42] Como se vê
no chamado Princípio U (Universal): “Todas as normas válidas precisam atender à
condição de que as consequências e efeitos colaterais que presumivelmente
resultarão da observância geral dessa norma para a satisfação dos interesses de
cada indivíduo possam ser aceitas não coercitivamente por todos os envolvidos”
(Rouanet, 1992, p.158).
[43] Em Lévy (1993): “Assim como não há natureza
humana, não há tampouco natureza das coisas (...) Gutenberg não previu e não
podia prever o papel que a impressão teria no desenvolvimento da ciência moderna, no sucesso da Reforma
ou, tanto através do livro quanto do jornal, sobre a evolução política do
Ocidente. Foi preciso que atores humanos se coligassem, se arriscassem,
explorassem. Atores moldados pela história longa de que são herdeiros,
orientados pelos problemas que perpassam seu coletivo, limitados pelo horizonte
de sentido de seu século (pois) A
técnica em geral não é nem boa, nem má, nem neutra, nem necessária, nem
invencível. É uma dimensão, recortada pela mente, de um devir coletivo
heterogêneo e complexo na cidade do mundo. Quanto mais reconhecermos isto, mais
nos aproximaremos do advento de uma tecnodemocracia” (p. 186-194 - grifo
nosso). Nesse sentido, contribuindo com Lévy (1996), se a técnica não é boa, nem má, nem neutra, então, ela é política.
[44] O leade deve responder às perguntas básicas
do quem, o quê, como,
quando e onde. O porquê, o motivo recôndito, é tarefa do
articulista ou colunista e não do jornalista, uma vez que sua resposta deverá, necessariamente,
ser subjetiva, pessoal e motivada.
[45] O mais interessante é que esta comunicação (fala) de
Chauí havia sido proibida de ser realizada na 29ª reunião da SBPC, pelo
próprio poder central, julgando-se obviamente mais competente do que a autora.
[46] Em Bobbio, essa noção está presente na fusão entre tolerância
negativa e intolerância positiva: “A
tolerância positiva consiste na remoção de formas tradicionais de repressão; a
tolerância negativa chega mesmo à exaltação de uma sociedade anti-repressiva,
maximamente permissiva (...) Não é que a tolerância seja ou deva ser ilimitada.
Nenhuma forma de tolerância é tão ampla que compreenda todas as ideias
possíveis. A tolerância é sempre tolerância em face de alguma cosa e exclusão
de outra coisa (...) O único critério razoável é o que deriva da ideia mesma de
tolerância, e pode ser formulado assim: a tolerância deve ser deve estendida a
todos, salvo àqueles que negam o princípio de tolerância, ou, mais brevemente,
todos devem ser tolerados, salvo os intolerantes (Bobbio, 1992, p.
212-213).
[47] Um exemplo marcante de absoluta intolerância
foi a demissão sumária de milhares de funcionários da montadora de veículos
automotivos Ford, às vésperas do Natal, simbolizando ato sádico dos
departamentos de RH, no Brasil, que assim dizem aos trabalhadores humilhados:
“-- nós temos a força”.
[48] Rosenfield
(1992) sintetiza as regras do jogo descritas por Bobbio: ...regras estas que se caracterizam pela
rotatividade do poder, pelo sufrágio universal, pelo respeito às decisões da
maioria, pela defesa dos direitos da minoria... (p. 32).
[49] Essa imagem
do cidadão participativo, apesar de parecer nova,
na verdade é uma tradição
que veio da Grécia clássica (mais precisamente de Aristóteles). Porém,
como se vê na sequência da nota, diferentemente da Grécia, a cidadania moderna
engloba as mulheres: “Para ser cidadão, diz ele, não basta habitar o território
e poder pleitear seu direito diante dos tribunais. Porque os estrangeiros
também têm essa possibilidade. O cidadão autêntico (em oposição às mulheres, às
crianças e aos que são atingidos por atimia – degradação cívica total ou parcial
por faltas graves) é quem exerce
uma função pública: que ele governe, ou que tenha uma função
no tribunal, ou que
participe das assembleias do povo. A cidadania é, pois, a participação ativa nos assuntos da Cidade. É o fato
de não ser meramente governado, mas também governante (Canivez, 1991, p. 30).
[50] A ideia de que a igualdade se constrói através
da participação plena e livre é demonstrada de forma clara e segura pelo
filósofo Kant: “A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar- se assim:
é a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes
pude dar o meu consentimento. — Igualdade, a igualdade exterior (jurídica) num
Estado é a relação entre os cidadãos
segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo à lei e poder ser
reciprocamente também de igual modo vinculado por ela” (Kant, 1990, p. 128).
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