Segunda-feira, 30 de setembro de 2024 - 11h15
Quando o banditismo se torna uma conceituação
política, sistêmica e sistemática, sem contar a corrupção institucional, é o
sinal de que talvez tenhamos ultrapassado a linha de qualquer nível de
segurança razoável. Se países latino-americanos enfrentam ataques diretos à
soberania nacional, à sua segurança nacional, no Brasil, em curso para um
destino desalentador, é a segurança jurídica quem dá os primeiros sinais de
abalos sísmicos. Como se diz, os ameaços, achaques e ataques tanto ocorrem no
plano real quanto no mundo digital.
A própria
noção de segurança jurídica, aos poucos, se esfacela diante da perda da
autonomia e da soberania estatal no escopo das relações digitais. Isso porque,
na criação de identidades na internet o direcionamento algorítmico constrói
bolhas que são capazes de minar a democracia. Os referenciais de direitos
humanos, devido processo legal e racionalidade deliberativa são solapados pela
intolerância global que os sistemas democráticos exigem (Appadurai, 2019, p.
29).
Vão por terra, portanto, as perspectivas
impostas pelo Estado Democrático de Direito, especialmente quanto à edificação
de uma República menos injusta, não-privatizada, mais pública. Tanto quanto se
desfaz no ar a democracia, ainda mais a que se tem sob a ideia de que contém o
pluralismo, a diversidade, o diálogo, a inclusão, por base conceitual.
Do ponto de vista mais técnico, o abalo sísmico
está diagnosticado na fratura exposta da chamada “dominação racional-legal”
(algo como o corolário do Princípio da Legitimidade – para além da legalidade
estrito senso) e, aprofundando-se neste quesito, há iminência de que se rompam
as estruturas civilizatórias do “monopólio legislativo” e, por conseguinte, do
“uso legítimo da força física”.
Em outras palavras, é para este desiderato, do
ataque ao coração do Princípio Civilizatório, que nos chama atenção a Ministra
Cármen Lúcia do Supremo Tribunal Federal (STF), ao concluir que:
Esse cenário é “bastante grave”. “Especialmente considerando a ousadia
do crime de querer ser o formulador de leis. Há um risco real de que esse
comportamento se estenda às instâncias estaduais e até nacionais. É grave esse
atrevimento criminoso”, ressaltou[1].
O posicionamento da excelentíssima Ministra
Cármen Lúcia ainda nos indica a ação, não só atenção, do Estado-Juiz, frente ao
“atrevimento” do crime organizado em se posicionar como legislador. O fato é,
sobretudo, grave, se pensarmos que a própria regulamentação do Poder Público
estaria à mercê. E, de forma bastante cínica (em relação ao mesmo Poder
Público), está a possibilidade de que o crime organizado – no solar da
legislatura – indique-se e a seus métodos (Tribunal do Crime) não apenas como
elementos de normatização, mas sim de normalização, de controle social.
O que nos traz ao título, antes de avançarmos na
indicação sistêmica e conceitual, pois, apesar de não serem nomenclaturas
siamesas são bem aparentadas. Se por Estado Profundo podemos entender a
existência de grupos, famílias (dinastias) e até indivíduos que manipulam as
cordas do andaime social brasileiro, por Estado Paralelo subentende-se a
presença pujante de organizações criminosas, mafiosas, no interior da máquina
pública.
É em relação ao Estado Paralelo que nos
dedicaremos mais um pouco. Se ainda é fato que não é possível legislar
claramente contra o Estado Democrático de Direito – em virtude de que ainda
restam ofendículos aos projetos claramente anticonstitucionais –, são evidentes
as possibilidades de que buscam atingir o coração do Estado brasileiro. Novamente
citamos a Ministra Cármen Lúcia:
Inclui-se, no devido processo
legislativo, a observância dos princípios da moralidade e da probidade,
voltados a “impedir que os dispositivos constitucionais sejam objeto de
alteração através do exercício de um poder constituinte derivado distanciado
das fontes de legitimidade situadas nos fóruns de uma esfera pública que não se
reduz ao Estado”. (Info 998 - STF, ADI 4887/DF,
rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento virtual finalizado em 10.11.2020)
Por outro lado, pode-se facilmente manipular o
orçamento público a fim de que as verbas públicas não abasteçam os aparelhos
repressivos do Estado, envolvidos na fiscalização e no afrontamento a este
mesmo crime organizado que almeja o controle executivo e legislativo. Na quebra
de todas as balizas, efetivamente, a segurança pública se converteria em
segurança nacional – como se vê no Equador, em El Salvador e no México: um dos
precursores do chamado narco-Estado.
Aliás, quando se imiscuem segurança pública com
segurança nacional é dado um outro alerta, é acionado o sinal de algum tipo de
Golpe de Estado – foi assim no Brasil do pós-1964 e é assim no Equador e em El
Salvador. Em seguida, projeta-se um looping de exceção, um golpe dentro do
golpe, cada vez mais limitando-se direitos fundamentais e cada vez mais
requerendo-se adição de poder absoluto.
Se o crime organizado tem um banco, como é que
se pode dizer que o sistema político-jurídico está imunizado? Não está, notadamente
se pensarmos que os recursos também são aplicados no financiamento de campanhas
para o Executivo e para o Legislativo[2].
Nosso objetivo não é defender um Estado-Gendarme
ou o Estado Penal, mas destacar as mais sérias e graves ameaças que agora se
chocam contra a pacificação social, a própria Justiça Social, no liame do
quebradiço contrato social. Até porque, de acordo com Wacquant (1998), o Estado Penal constitui-se
numa guinada das políticas penais e na dizimação das políticas sociais. Ou
seja, há uma diminuição abissal daquilo que é tido como direito fundamental sob
o vértice das liberdades individuais, das conquistas sociais e das práticas
solidárias e um abrupto incremento das políticas penais sob o ângulo da
punição.
Não defendemos um Estado que se preste
unicamente ao controle social e à repressão criminal, inclusive ou sobretudo
porque a Lei do mais forte, do capital de barbarismo social habita o Brasil em
suas profundezas, tanto quanto move o Estado Profundo – o Poder Público
privatizado por oclocracias e plutocracias. A não ser que apontemos para a
elite do crime organizado, em parte já condicionada em presídios federais de
segurança máxima, é possível predizer que o Brasil não tem elites, mas sim
plutocracias em defesa de interesses sociopatas.
É nesse sentido que o Estado Paralelo e o Estado
Profundo se posicionam como espécies do gênero Estado Inconstitucional, pois
habitam em seus núcleos todo o paralelismo e a profundeza de uma crise de
“abusos inomináveis” (Bonavides, 2009, p. 41) que abalam o fundamento do Estado
de Direito: a legalidade e a legitimidade. Se o art. 37 da CF88 estatui os
princípios-regras da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência que são de observância obrigatória para a aplicação dos mecanismos
de garantia de ordem social e segurança, as figuras paralelas e profundas de
Estado depõem a lógica do poder de polícia, da vigilância estatal e da
fiscalização, transformando as instituições em reféns da reorganização que
cresce ao lado, na árvore antijurídica.
A saída, sem dúvida, estaria na fruição dos
pressupostos e das diretrizes do Estado Democrático de Direito, no cumprimento
e promoção dos Direitos Humanos, na fruição dos direitos fundamentais. Este
conjunto, no seguimento de outras composições, corresponde ao Princípio do
não-retrocesso moral/social: socialmente, a fome, a miséria, o analfabetismo,
nos comprovam o quanto estamos distantes da Justiça Social; ao passo em que a
intolerância, as discriminações, a exclusão social, a busca pelo crime
organizado pela hegemonia legislativa nos remetem ao retrocesso moral. E são
nesses dois pontos que o crime organizado investe seus capitais, a fim de
alavancar a disrupção social e disfunção institucional.
Para finalizar, basta-nos imaginar (ainda que
não exista uma “imaginação política”) em que bases, como se organizaria, com
quais fins seria apresentado o que se denomina de Poder Extroverso, inerente ao
Poder Público como instituição regulatória e como organismo de persecução
social – se estivesse sob o jugo do crime organizado.
Referências
APPADURAI, Arjun. Fadiga da democracia. In: A grande regressão: um debate sobre os novos
populismos e como enfrentá-los. Trad. Silvia Bittencourt, et al. 1 ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial (A derrubada da
Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional). 4 ed. São
Paulo: Malheiros, 2009.
WACQUANT, Loïc. De l’État social à l’État pénal.
Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 124, septembre 1998.
Disponível em: http://www.persee.fr/issue/arss_0335-5322_1998_num_124_1.
Acesso em: 30 set. 2024.
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