Terça-feira, 8 de agosto de 2023 - 08h57
Vinício
Carrilho Martinez (Dr.) – Cientista Social
Professor Associado IV da UFSCar
https://youtube.com/c/ACi%C3%AAnciadaCF88
A proposta do governador de Minas Gerais não só é
inconstitucional – por atentar contra o Pacto Federativo – como flerta com o
crime de lesa pátria, pois, a proposição de uma frente Sul/Sudeste fere ab
ovo o prefácio e o artigo 1º da Constituição Federal de 1988: a República
Federativa do Brasil. Ataca de frente o Estado Federativo e, com essa
proposição, acena com a secessão territorial/institucional e traz uma séria
ameaça da exclusão de regiões inteiras do país, concomitantemente à tentativa
de emplacar o inexistente direito de sedição – daí o crime de lesa pátria.
O governador mineiro não propõe um consórcio, como no Nordeste –
especialmente contra a política do Executivo defenestrado em 2022, de não-comprar
vacinas contra a COVID19 –, uma vez que o governador propõe um verdadeiro racha
no país: norte e sul. Essa proposta foi gestada depois da aprovação da Reforma
Tributária pela Câmara Federal.
Isso também ocorreu em meio à lembrança, que lhe é cara, de que
o Nordeste foi quem retirou do poder o mito que servia de guia. Por esse
espólio da política reacionária, brigam diretamente os governos do Rio Grande
do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Até o deputado federal Aécio Neves, um
proponente antecipado dos ataques às urnas eletrônicas, quando saiu derrotado
pela ex-presidenta Dilma (2014), atentou para o perigo sedicioso do atual
governador de Minas Gerais.
O crime de lesa pátria, evidentemente, é um atentado ao Estado
Democrático de Direito (previsto no Código Penal) e assim deveria ser tratado.
Não se trata somente de proposta política anacrônica, racista, como se fosse
algo comum na seara política; trata-se de uma proposta real que namora de perto
com o crime de sedição (separação geográfica do país) e que, com êxito, levaria
ao desmembramento nacional. Exemplo histórico e retumbante da Guerra dos
Farrapos.
O Brasil, notadamente desde 1988, é uma República Federativa,
com o suporte principiológico do Estado Democrático de Direito, e isso
pressupõe aderência inquestionável aos princípios da República e da Federação.
Qualquer violação ou tentativa de violação desses princípios comunga com crimes
contra o Estado e contra a Nação.
A primeira leitura que se faz do Estado Federativo é consoante à
regra básica da União Federativa: a unidade nacional, territorial e política. A
Federação, por sua vez, tem referências distintas entre os Estados e suas
construções nacionais, como veremos em poucos exemplos:
FEDERAÇÃO: é uma união ou associação de Estados
que mantém unificada a soberania no plano externo, mas com doses diferenciadas
de autonomia interna (comparativamente, entre Brasil e EUA, por exemplo). De
todo modo, os Estados-membros têm seus poderes, direitos e deveres prescritos e
delimitados por uma Constituição Federal. Entre 1871-1918 alguns Estados do
Império Alemão (Baviera, Saxe) possuíam o direito de legação ativo e
passivo[1].
Até hoje os Cantões suíços podem estabelecer relações comerciais com outros
Estados soberanos.
O Brasil é originário de uma formação típica, do ponto de vista
institucional e, ainda mais em razão disso, não admite qualquer proposição de
sedição territorial.
Formações
típicas e atípicas do Estado
Pode-se
dizer que há formação de Estados seguindo fórmulas típicas e atípicas (DALLARI,
2000). O Estado Moderno, por exemplo, é uma típica formação do Poder Político:
a) Forma típica: Na formação típica há a união de Estados ou o
desenvolvimento posterior de certa sociedade, até atingir a forma de uma
Federação, a exemplo dos EUA. De certo modo, também pode ser por desdobramento
ou derivação de um Estado anterior, a diferença é que, neste caso, a origem do novo
Estado será o Estado antecedente e não propriamente a associação voluntária
entre pessoas e grupos. Nota-se facilmente que há maior constância de fatores
observáveis, e que os casos são mais rotineiros. Portanto, há maior
possibilidade dessas formas de Estados se desenvolverem. Trata-se da criação de
uma organização unitária com autonomia local.
b) Formas atípicas: Já as formas atípicas, como o próprio nome diz,
não são comuns e nem o desdobramento das funções públicas desses Estados é
rotineira ou facilmente catalogada. Temos como exemplos diretos os casos do
Estado de Israel e do Estado do Vaticano: ambos com a 2ª Guerra como cenário político.
Corpus
teórico
- sempre
vale a pena ler de novo (MARTINEZ, 2013)
Nessa altura do campeonato, seria muito oportuno ao país todo
que os assessores jurídicos do governador de Minas Gerais lhe abastecessem de
algumas lições do primeiro ano do curso regular de Direito.
Sinteticamente, podemos
definir a Federação como sendo a união indissolúvel entre Estados-Membros independentes e autônomos, mas não
soberanos, e capaz de gerar e guiar-se por um governo comum voltado à
República, à preservação das coisas de
todos, em que a União é ente federativo (art. 1º, caput, CF88). E por Estado Federal entendemos a forma de Estado em
que o poder é essencialmente público e submetido à eletividade, transitoriedade
e, por sua vez, é capaz de constituir (política e juridicamente) uma efetiva
responsabilidade administrativa e política (competência e probidade). Em suma,
de acordo com Dallari (2000), são oito as características que compõem e
conformam a Federação e devem constar da Constituição. Na Constituição brasileira,
é sabido que a Federação é definida como cláusula pétrea (defendendo-SE a forma
de Estado contra reformas ou atentados
constitucionais, estando acima das vicissitudes políticas). Por seu turno,
essas características da Federação foram assim resumidas por Pinho (2002):
1ª) a união faz nascer
um novo Estado; 2ª) a base jurídica da Federação é uma Constituição e não um
tratado; 3ª) não existe o direito de secessão; 4ª) só o Estado Federal
tem soberania, pois as unidades federadas preservam apenas uma parcela de
autonomia política; 5ª) repartição de competências entre a União e as unidades
federadas fixada pela própria Constituição; 6ª) renda própria para cada esfera
de competência; 7ª) poder político compartilhado pela União e pelas unidades
federadas; 8ª) o indivíduo é cidadão do Estado Federal e não da unidade em que
nasceu ou reside (p. 02 – grifo nosso).
O que o (e)leitor não visualiza de forma clara ou mais
precisa neste resumo das características é justamente o significado e alcance
político e cultural que queremos ver florescer nas sociedades de orientação
republicana e democrática. É fácil perceber a dimensão técnica com que se trata
o poder e sua organização e distribuição nessa forma de Estado, mas é
igualmente visível que se dá pouca atenção à cultura política. Aliás, esse é um
dos graves problemas notados em manuais, pois, se são técnicos, raramente são
dotados de análise e crítica política aprofundada[2].
Então, do que trata realmente a crítica apontada ou, mais especificamente, do
que se trata quando se aborda o Estado
Republicano? Talvez seja desnecessário dizer, mas ainda acentuamos que sem
essa base em que se assenta a cultura política democrática e republicana (com
forte presença, apelo e incentivo à educação popular) não há que se falar em República, Federação ou democracia.
República Federativa
A República, a Federação, a
constitucionalização do Estado e da política, bem como sua forma, estrutura e
dimensionamento no regime democrático estão amparados, basicamente, pelos
mesmos documentos históricos, ou seja, aí estão as primeiras declarações de
direitos humanos. Essas Declarações refletem um largo e longo período histórico
iniciado na Revolução Gloriosa (Bill of
Rights) e que perdura até hoje, pois que ainda é urgente a defesa dos
direitos políticos, a defesa do direito à política (como prerrogativa
democrática de se inteirar e de participar dos assuntos do Estado). Essa defesa
política, pública, e também afirmativa da Vontade
de Constituição, como diz Hesse (1991), por sua vez, constitui um grande
veio dos direitos humanos tendentes ao controle, cerceamento, limitação e
regulação do próprio Estado e dos poderes dele derivados. De forma conclusiva,
ainda podemos dizer que essa ideia da auto-organização política (como princípio
da democracia radical) configura e sintetiza esse plano dos direitos humanos
efetivamente como direitos políticos e democráticos. Essa questão só se
configura se analisarmos mais detidamente o Estado e a própria participação
coletiva na definição dos assuntos de Estado. Vale dizer que se trata do
espírito público nutrido no interior da cultura política do povo e que se
define num mínimo de convivialidade
pacífica e necessária ao Estado de cunho popular. Enfim, concluiremos com um
pensamento acerca das bases da República.
Estado Popular e Democrático
É fácil notabilizar a
importância que a democracia alcança nesse contexto, e de que se trata da democracia
popular. Portanto, daqui por diante, procuraremos analisar algumas
conexões entre Federação e República (enquanto formas democráticas de governo)
e que se interligam, de forma lógica e decorrente, ao significado de povo e de
cultura política. Antecipadamente, podemos dizer que povo é mais do que um
simples conjunto de eleitores, pois ele, o povo, é o verdadeiro e real produtor
da política, o articulador e detentor legítimo do poder constituinte (na
origem, um poder popular e revolucionário). Trata-se de uma delimitação e
definição política de maior amplitude porque incorre na necessidade de se
investigarem e analisarem os substratos da própria cultura política. No caso brasileiro, não raramente,
infelizmente, as próprias instituições republicanas, são invocadas para abalar
e agir contra a própria República.
Violência Inconstitucional
Especificamente
para o caso em julgamento, do Governo de Minas Gerais, retomar uma decisão de
2006 serve de itinerário nesta causa. Pode inicialmente ser tratado como a
manifestação inequívoca da soberania interna, a exemplo do que aferimos neste
julgado em Ação Civil Pública:
RECURSO DE REVISTA
RR 86 86/2006-653-09-00.0 (TST)
AÇÃO CIVIL PÚBLICA -
GARIMPAGEM CLANDESTINA - LIMINAR - CUMPRIMENTO PELA UNIÃO FEDERAL - PODER DE
IMPERIO.
1- Lídima a decisão judicial
que determina à União Federal, no
âmbito de sua competência, cumprimento, no prazo nela estabelecida, de liminar
deferida a terceiro em Ação Civil Pública por
deter intransferível poder de império. (grifo nosso)
O Poder de
Império mostra-se sui generis, e como
tal, representa a capacidade de o Estado impor soberanamente sua vontade com
vistas a atender ao interesse público. Segue-se, assim, a teoria finalista do
Estado e subsidia o ato administrativo. A doutrina tradicional destaca como
atributos do ato administrativo:
a)
presunção
de legitimidade e veracidade
b)
auto-executoriedade
c)
imperatividade
O
Estado age com Poder de Império quando impõe seus atos administrativos a
terceiros, independentemente de sua vontade. Por seu turno,
autoriza-se/legitima-se esta capacidade de imposição unilateral da vontade do
poder público por meio do Poder Extroverso.
Das breves considerações finais
Por fim, é bom rememorar, o
governador de Minas Gerais flertou com o crime de sedição, propondo exclusão
geográfica/territorial e institucional e, obviamente, exclusão social/cultural
entre o povo brasileiro.
Seria bom que sua assessoria
jurídica lhe informasse disso, em razão de nossa estrutura ser ordenada pela
soberania e pelo Princípio da Federação (art. 1° da CF/88), afinal, não se
admite o direito de sedição, ou seja, o Estado-membro não tem o direito de se
separar da União, do todo, devido ao pacto federativo firmado com a força do
Poder Constituinte – como se viu na tentativa frustrada da Guerra dos Farrapos.
A proposição atinge, igualmente, o cerne de estabilidade do Estado-Nação
(MARTINEZ, 2015).
Referências
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos
de Teoria Geral do Estado. 21ª ed. São Paulo : Saraiva, 2000.
PINHO, R.
C. R. Da organização do Estado, dos
poderes e histórico das constituições. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre : Sergio Antonio
Fabris Editor, 1991.
MARTINEZ, Vinício
Carrilho. Teorias do Estado:
metamorfoses do Estado Moderno. São Paulo : Scortecci, 2013.
_____ Teorias do Estado:
Estado-Nação - Conceito e História: Densidade Cultural, Cultura e Nação. São Paulo : Scortecci, 2015.
[1] O direito
de legação ativo implica em enviar representante
diplomático, bem como o direito de legação passivo (recebê-lo), é exercido
por meio de observadores autônomos do Estado soberano.
[2] A seu modo, Dallari (2000) sempre desenvolveu
uma crítica refinada sobre o Estado moderno.
[3] Por aspecto cultural do espírito
público, por exemplo, tome-se a maior ou menor resistência ou então
tolerância ao abuso de poder e à corrupção – o que expressa uma menor ou maior
identidade em relação ao interesse público.
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