Segunda-feira, 26 de junho de 2023 - 18h05
Vinício Carrilho Martinez (Dr.)
Cientista Social
Professor Associado IV
da UFSCar
https://youtube.com/c/ACi%C3%AAnciadaCF88
O que
deveríamos estudar, entender – ao menos um pouco –, para melhor compreendermos,
analisarmos o Brasil de 2023, ou o Brasil de sempre, e os nossos papéis
sociais?
...
Antes de avançarmos nesta proposição,
já indicamos um sumário elaborado por Octávio Ianni (1994), acerca do que
deveríamos ler para melhor entender o Brasil, nossa formação, em prosa, no
romance, com Graciliano Ramos (2003) e também em verso ou no Cordel (LIMA, 2002)
– além das artes representadas por Tarsila do Amaral, Portinari e tantos
outros.
...
A questão geral, de nossa
formação social é relativamente fácil e complexa em termos de análise crítica.
É uma questão relativamente fácil de ser abordada se pensarmos nos problemas
estruturais de sempre, na nossa gênese que tem marcas profundas na sociedade e
na cultura, como o apego ao pensamento escravista, a imensa desigualdade
regional e social.
Por outro lado, se pensarmos que o país foi
híbrido (talvez ainda seja), imiscuindo capitalismo e escravismo, aí a questão
pode não ser tão simples. Poucos aceitam essa tese, a maioria vê um capitalismo
tardio, com os ingleses à espreita dos navios negreiros.
Outro viés nos dá conta de que somos um
ornitorrinco (diria Francisco de Oliveira), um bicho bem estranho que parece
feito com partes de outros bichos. Não sei se já temos paralelo com alguma
onomatopeia ... é provável: além de um tic-tac pode haver algo mais
estrutural acerca do país.
Ao que se seguem outras questões conexas e
decorrentes:
·
A burguesia teria iniciado sua revolução em
1930[1]?
·
Porém, em 2023, será que temos um Estado de
Direito – que também seja de fato?
São perguntas que tornam mais difíceis as
respostas mais simples. Do mesmo modo, podemos indagar: qual é a forma de
dominação de classe que predomina atualmente?
Não seria mais correto falarmos em fração de
classe dominante, tendo o Banco Central como representante da miséria social e
da opulência do capital financeiro, dos bancos e dos rentistas bilionários?
E, neste caso, com o Estado de Direito – que o
Estado Burguês não efetivou no Brasil – a serviço dos Grupos Hegemônicos de
Poder, sempre no comando, a dominação seria sistêmica, correto?
Mas, em que bases? Teríamos a dominação do
senhorio do poder constituído, seria um tipo de dominus que domina o
Judiciário (com penduricalhos salariais[2]) e
o faz se revelar como verdadeira casta social? As hostes dominantes do Estado –
digamos assim, as elites do serviço público em eterna luta ávida, como apogeu
de um estrato social –, realmente, estão (ou já estiveram) incomodadas com os
perigos da autocracia?
Desse modo, outra formação social adequada para
vermos o país seria, talvez mais nítida por seus efeitos, um tipo de autocracia
de classe. Na desventura dos golpes militares e do pandemônio político de 2018,
as nossas falsas elites – porque não conseguem ler os manuais do Iluminismo,
como referência verbal/moral – vão se ajeitando no meio de sua fórmula de
dominação; combinando-se ideologia com dominus.
Nesse pacote, caberia investigarmos os blocos
políticos que surgem dos grotões da cultura nacional, como a antiga Bancada BBB
e o atual Centrão: é raro encontrarmos uma formação social e política que
revele o que possa haver de mais antirrepublicano na história da política. Pois
bem, como se sabe, sem democracia e República não há Estado de Direito – com a
ação constante de dominus, idem, e sob a tutela de um poder que se veste
como casta social, menos ainda.
O que nos leva às possíveis variações nas
formulações explicativas do Brasil. Com dominus – senhorio e coronelato
de ontem e de hoje –, a autocracia ganha força de lei e nos explica; porém,
trata-se do capitalismo financeiro (em 2023) que se articula com o Fascismo,
com os grotões culturais, com o Centrão da perversidade moral e social.
Não é, por óbvio, um dominus imune ao
tempo da história. Não se trata dos senhores de escravos e das fazendas de
cacau ou de café, instalados na Casa Grande; entretanto, enreda-se a formulação
social variando-se a escolha por suas táticas e técnicas políticas.
Temos então o sistema financeiro como a fração
de classe dominante (na raiz do próprio Estado Rentista), oscilando entre mais
força, “a lei do mais forte”, o manu militari, e menos força: o
impeachment de 2016, por exemplo. Também não devemos esquecer do impeachment de
Collor – o candidato da autocracia burguesa brasileira e que depois se viu na
condição de Calígula. Nero viria em 2018.
Entre Collor e o eleito em 2018 – na franja do
Fascismo pós-moderno – há semelhanças e enormes diferenças. A semelhança entre
ambos está na representação da autocracia burguesa brasileira, com apoio e
grandes aportes da superestrutura do Estado montado em elites do serviço
público. Desse modo, ainda se banquetearam nas festas palacianas, muitas
impublicáveis devido à sevícia, e honraram seus chefes com a representação
política de uma plutocracia: as mesmas elites incultas, muitas vezes
desprovidas do alfabeto e da massa crítica, mas que nadam em dinheiro – como
faria o Tio Patinhas. É possível que o Tio Patinhas seja o desenho animado
preferido de uma geração inteira.
Uma diferença, por mais que revele uma
característica basicamente pessoal, remete-nos ao nível de escolaridade/inteligência
bruta entre esses dois representantes do estafe plutocrático nacional.
Evidentemente que nenhum dos dois expressam quaisquer ganhos culturais; no
entanto, um se fez pela imagem e semelhança ideológica (Collor – o dominus e
o Estado Sedutor): os pobres queriam ser como ele, galã da novela das 9hs na
Rede Globo, rico, capaz de empertigar uma retórica vazia de conteúdo e de
relevância. Collor será o primeiro.
O outro, o segundo, é o herdeiro do pós-2016 e
da Lava Jato (o ápice da aplicação do regime de castas, pelo Judiciário[3]), e
não trouxe uma imagem a ser “copiada” ideologicamente, não era um espelho, era
a própria encarnação do que temos de pior enquanto Nação. O segundo, como
tragédia do primeiro, não usava máscara social, como espelho que reflete o
imaginário ideológico de quem anseia ser igual.
O segundo já era carne e osso, neste não
precisava de imaginário: no segundo, houve identificação, profunda
identificação com o que produzimos de pior no país. Com relação ao primeiro,
havia um “tipo de desejo de ser igual ou equivalente”. O segundo não é imagem
espelhada, é a própria sombra (sombria) desoladora de qualquer miríade.
Neste sentido, o segundo, a tragédia do
primeiro, visto que sem dúvida foi muito pior do que uma farsa, representa em
plena capacidade de identificação a pior forma de governo: o dominus dos
piores, mais incapacitados, menos ilustrados, mais debilitados no manuseio do
alfabeto, da lógica, do senso mediano.
O primeiro – vale dizer, Collor – pode ser tido
como exemplar político que bem ilustra a forma de dominação baseada na
Plutocracia (os mais ricos e poderosos); enquanto o segundo – eleito como farsa
e tragédia do primeiro, em 2018 – é a marca d´água dos grotões da existência
humana no Brasil, cabendo-lhe administrar (destruir) o Estado brasileiro com o dominus
da Oclocracia: foi e é o legítimo representante/identitário dos piores
indivíduos nacionais.
É preciso ter clareza de que aqui não apontamos
a ausência de alguma forma de educação ou de conhecimento formal, para destacar
a Oclocracia. Pois, muitos dos que detém títulos e diplomas são piores do que
os piores, como Mengele; outros foram ou são mais nazistas do que Hitler: para
todos esses, o fanatismo se mostrava (e se mostra) adepto do obscurantismo.
Equivale a dizer que a terra plana (dos
doutores, muitas vezes) desafia o desencantamento do mundo (WEBER, 1979) – a
desmagificação, o crescimento elaborado da racionalidade e da razoabilidade, de
tudo que possa ser ponderável pela lógica mediana. Em pleno século XXI, ainda
vemos a ocorrência de um mundo paralelo, em que médicos, bacharéis de toda
ordem, fazem-se sentir autorizados a procurar por curas na alquimia, desobrigando-se
da química moderna.
No governo dos piores, o/a educador/a pode se
vangloriar, em praça pública e sem vergonha de ser feliz, de sua própria e
autêntica ignorância. Também o governo dos piores, ao menos no Brasil,
elevou-se ao poder com um projeto político de governança elaborada e executada
pela “quinta série” – esse era o meme até 2022.
De outro modo, ao contrário do que acredita a “quinta série no
poder”, a educação formal é importante?
É óbvio que sim, afinal, assim se constroem pontes e hospitais,
está na escola pública, neste texto. É suficiente? Claro que não. Se bastasse,
não haveria doutor construindo bombas. Além disso, a sabedoria dos
antigos, seu bom senso, prudência, não vêm com diploma. Também o
conhecimento da natureza, organizado pelos povos originários, é insuperável.
Gramsci (2000) destacou a urgência em pensarmos a educação – uma
grande mudança social – como resultado de um projeto político de emancipação: o
Intelectual Orgânico[4]
seria a síntese entre o homo faber (o conhecimento advindo do “fazer-se”,
da classe trabalhadora) e o homo sapiens – sintetizando a massa de
inteligência coletiva, a massa crítica, que a Humanidade foi capaz de elaborar.
Ou seja, trata-se de uma ressignificação que excluiria qualquer forma de
dominação que não fosse legítima, popular, com base na inclusão e na
emancipação humana.
Portanto, devemos acentuar que o governo dos
piores não inclui ou exclui diplomas e títulos, em que pesem sejam piores em todos
os aspectos: exemplo notável foi demonstrado na logística que deveria ter
enviado respiradores para Manaus, no auge da pandemia, e os entregou em Macapá.
Sem dúvida, o governo dos piores se alimenta da ignorância, da ausência total
das Luzes, e reproduz a desinteligência como forma de ação política.
O governo dos piores é baseado na anticiência; negando-se
à vacinação pública, promoveu ataques à universidade pública, à cultura, à
diversidade social. De 2018 a 2022, o Estado era reduzido a um projeto político
em que a epistemologia, o conhecimento, a inteligência, eram tratados como
inimigos públicos: alguns eleitores festejaram (festejam) o fato de se
“nivelarem por baixo”, tornando-os mais parecidos com seu mito. Numa figura de
linguagem, um desenho social, ainda pudemos observar um capitão do mato
cuidando do Ministério da Cultura, da Fundação Palmares, do INCRA, do IBAMA.
No governo dos piores houve ministro brasileiro
imitando Goebbels – o ministro da propaganda nazista. Então, não é difícil
avaliar que “nosso” tipo de governo é dos piores tipos possíveis, da pior moral
pública, da ética que dissolveu milhares de vidas, na pandemia, e que sempre
apostou na desinteligência, na desinformação, na mentira como substituta do
raciocínio lógico-dedutivo.
Em suma, o governo dos piores é também
governado pela pior inteligência possível – e pela falta dela também: quando a
quinta série chega ao poder, com sua diminuta, insignificante, condição de
menoridade intelectual e moral.
Em 2023 ainda nos perguntamos: como é que
médicos, juízes, advogados, docentes, doutores, engenheiros, cientistas
acreditaram (acreditam) nisso? Esta é e será uma eterna pergunta, sem que
tenhamos uma resposta completa, satisfatória, ficará na conta dos casos que não
foram totalmente decifráveis pela Ciência – do mesmo que o nazifascismo dos
anos 1920.
É claro que nossa análise não se conclui hoje,
há muitos interstícios em tudo que dissemos, todavia, podemos dizer que
deveríamos estudar melhor a autocracia burguesa brasileira, especialmente
quanto à dominação (dominus) exercida na forma da Plutocracia e da
Oclocracia. Pode-se alegar uma incapacidade técnica, operacional, com efeitos
de total imperícia; no entanto, além disso, é inegável que se manifeste uma
incapacidade analítica baseada na incompreensão meridiana dos fatos. O que,
antigamente, chamava-se de oligofrenia: dificuldade mental acentuada para
concatenar fatos, efeitos, circunstâncias.
Enfim, há ao menos três movimentos atuais (diferentes
entre si, em sua natureza) que comprovam a necessidade de melhor nos
entendermos: a CPMI do 8 de janeiro de 2023 (tentativa de golpe), a aprovação
congressual do Marco Temporal, verdadeira promessa de aniquilação dos povos
indígenas, e a atuação do Banco Central – autônomo e independente dos
interesses do restante do país. É fácil ver (ler, ouvir) alguém defendo a tese
de que o Banco Central, hoje, comete crimes contra a segurança e a soberania
nacional.
Referências
GRAMSCI, Antonio.
Cadernos do Cárcere. Volume II. Os
intelectuais: o Princípio Educativo. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2000.
IANNI, Octávio. A
ideia de Brasil moderno. 2ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.
LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE : Academia Brasileira de Cordel
: Ban Gráfica, 2002.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de
Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti)
democrática. Marília. 2010. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília,
2010.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do
Estado – Ditadura Inconstitucional: golpe de Estado de 2016, forma-Estado,
Tipologias do Estado de Exceção, nomologia da ditadura inconstitucional.
Curitiba: Editora CRV, 2019.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. (91ª
ed.). São Paulo ; Rio de Janeiro : Record, 2003.
WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
[1] Neste sentido, seria o caso de
averiguar a hipótese da Revolução Passiva, como ação reflexa do país ao modelo
do Império do capital, também incompleta, meio a reboque, inconsistente
(DELROIO, 2018).
[2] Veja-se que há situações em que os
penduricalhos não são pequenos penduricalhos salariais, mas sim imorais milhões
que abastecem um baronato togado. Na prática não há como inviabilizar esse tipo
de monstruosidade institucional, porque é o Judiciário quem julga suas próprias
cortes e castas. No Brasil de castas togadas, é mero exercício de retórica
indagar “quem julga o juiz?”. Acesso em 25.6.2023: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/06/25/auxilio-moradia-e-bonus-extinto-rendem-salarios-de-ate-r-15-mi-a-juizes.htm.
[3] No desenho do dominus – de um
estado arbitrário e golpista –, o evento de 2016 pode ser resumido na fórmula
de um juízo político-jurídico que nunca houve: “a autonomia sem auditoria é
autocracia” (MARTINEZ, 2019). Bem como 2016 ilustra à perfeição a revelação de
que a dominação racional-legal (no bojo do Estado de Direito) é a anunciação
das formas de controle social com forças excepcionais: verdadeiro Estado de
Exceção reeditado nos laivos democráticos que também temos (MARTINEZ, 2010).
[4] “...não existe trabalho puramente
físico [...] em qualquer trabalho físico,
mesmo no mais mecânico e degradado, existe
um mínimo de qualificação técnica, isto é, um
mínimo de atividade intelectual criadora [...] O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é em ter
buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades
intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual
essas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto
das relações sociais Por isso, seria
possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os
homens têm na sociedade a função de intelectuais [...] A relação entre os
intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos
grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o
tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são
precisamente os “funcionários” Não há
atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não
se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão,
desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma
concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui
assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para
suscitar novas maneiras de pensar” (Gramsci, 2000c, p. 18-53 – grifo nosso).
A ciência que não muda só se repete, na mesmice, na cópia, no óbvio e no mercadológico – e parece inadequado, por definição, falar-se em ciência nes
A Educação Constitucional do Prof. Vinício Carrilho Martinez
Introdução Neste texto é realizada uma leitura do livro “Educação constitucional: educação pela Constituição de 1988” de autoria do Prof. Dr. Viníci
Todos os golpes no Brasil são racistas. Sejam grandes ou pequenos, os golpes são racistas. É a nossa história, da nossa formação
Veremos de modo mais extensivo que entre a emancipação e a autonomia se apresentam realidades e conceitos – igualmente impositivos – que suportam a