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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Brasil herdado – o Brasil de sempre


O Brasil herdado – o Brasil de sempre - Gente de Opinião

Vinício Carrilho Martinez (Dr.)

Cientista Social

Professor Associado IV da UFSCar

 https://youtube.com/c/ACi%C3%AAnciadaCF88


O que deveríamos estudar, entender – ao menos um pouco –, para melhor compreendermos, analisarmos o Brasil de 2023, ou o Brasil de sempre, e os nossos papéis sociais?

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         Antes de avançarmos nesta proposição, já indicamos um sumário elaborado por Octávio Ianni (1994), acerca do que deveríamos ler para melhor entender o Brasil, nossa formação, em prosa, no romance, com Graciliano Ramos (2003) e também em verso ou no Cordel (LIMA, 2002) – além das artes representadas por Tarsila do Amaral, Portinari e tantos outros.

...

         A questão geral, de nossa formação social é relativamente fácil e complexa em termos de análise crítica. É uma questão relativamente fácil de ser abordada se pensarmos nos problemas estruturais de sempre, na nossa gênese que tem marcas profundas na sociedade e na cultura, como o apego ao pensamento escravista, a imensa desigualdade regional e social.

Por outro lado, se pensarmos que o país foi híbrido (talvez ainda seja), imiscuindo capitalismo e escravismo, aí a questão pode não ser tão simples. Poucos aceitam essa tese, a maioria vê um capitalismo tardio, com os ingleses à espreita dos navios negreiros.

Outro viés nos dá conta de que somos um ornitorrinco (diria Francisco de Oliveira), um bicho bem estranho que parece feito com partes de outros bichos. Não sei se já temos paralelo com alguma onomatopeia ... é provável: além de um tic-tac pode haver algo mais estrutural acerca do país.

Ao que se seguem outras questões conexas e decorrentes:

·        A burguesia teria iniciado sua revolução em 1930[1]?

·        Porém, em 2023, será que temos um Estado de Direito – que também seja de fato?

 

São perguntas que tornam mais difíceis as respostas mais simples. Do mesmo modo, podemos indagar: qual é a forma de dominação de classe que predomina atualmente?

Não seria mais correto falarmos em fração de classe dominante, tendo o Banco Central como representante da miséria social e da opulência do capital financeiro, dos bancos e dos rentistas bilionários?

E, neste caso, com o Estado de Direito – que o Estado Burguês não efetivou no Brasil – a serviço dos Grupos Hegemônicos de Poder, sempre no comando, a dominação seria sistêmica, correto?

Mas, em que bases? Teríamos a dominação do senhorio do poder constituído, seria um tipo de dominus que domina o Judiciário (com penduricalhos salariais[2]) e o faz se revelar como verdadeira casta social? As hostes dominantes do Estado – digamos assim, as elites do serviço público em eterna luta ávida, como apogeu de um estrato social –, realmente, estão (ou já estiveram) incomodadas com os perigos da autocracia?

Desse modo, outra formação social adequada para vermos o país seria, talvez mais nítida por seus efeitos, um tipo de autocracia de classe. Na desventura dos golpes militares e do pandemônio político de 2018, as nossas falsas elites – porque não conseguem ler os manuais do Iluminismo, como referência verbal/moral – vão se ajeitando no meio de sua fórmula de dominação; combinando-se ideologia com dominus.

Nesse pacote, caberia investigarmos os blocos políticos que surgem dos grotões da cultura nacional, como a antiga Bancada BBB e o atual Centrão: é raro encontrarmos uma formação social e política que revele o que possa haver de mais antirrepublicano na história da política. Pois bem, como se sabe, sem democracia e República não há Estado de Direito – com a ação constante de dominus, idem, e sob a tutela de um poder que se veste como casta social, menos ainda.

O que nos leva às possíveis variações nas formulações explicativas do Brasil. Com dominus – senhorio e coronelato de ontem e de hoje –, a autocracia ganha força de lei e nos explica; porém, trata-se do capitalismo financeiro (em 2023) que se articula com o Fascismo, com os grotões culturais, com o Centrão da perversidade moral e social.

Não é, por óbvio, um dominus imune ao tempo da história. Não se trata dos senhores de escravos e das fazendas de cacau ou de café, instalados na Casa Grande; entretanto, enreda-se a formulação social variando-se a escolha por suas táticas e técnicas políticas.

Temos então o sistema financeiro como a fração de classe dominante (na raiz do próprio Estado Rentista), oscilando entre mais força, “a lei do mais forte”, o manu militari, e menos força: o impeachment de 2016, por exemplo. Também não devemos esquecer do impeachment de Collor – o candidato da autocracia burguesa brasileira e que depois se viu na condição de Calígula. Nero viria em 2018.

Entre Collor e o eleito em 2018 – na franja do Fascismo pós-moderno – há semelhanças e enormes diferenças. A semelhança entre ambos está na representação da autocracia burguesa brasileira, com apoio e grandes aportes da superestrutura do Estado montado em elites do serviço público. Desse modo, ainda se banquetearam nas festas palacianas, muitas impublicáveis devido à sevícia, e honraram seus chefes com a representação política de uma plutocracia: as mesmas elites incultas, muitas vezes desprovidas do alfabeto e da massa crítica, mas que nadam em dinheiro – como faria o Tio Patinhas. É possível que o Tio Patinhas seja o desenho animado preferido de uma geração inteira.

Uma diferença, por mais que revele uma característica basicamente pessoal, remete-nos ao nível de escolaridade/inteligência bruta entre esses dois representantes do estafe plutocrático nacional. Evidentemente que nenhum dos dois expressam quaisquer ganhos culturais; no entanto, um se fez pela imagem e semelhança ideológica (Collor – o dominus e o Estado Sedutor): os pobres queriam ser como ele, galã da novela das 9hs na Rede Globo, rico, capaz de empertigar uma retórica vazia de conteúdo e de relevância. Collor será o primeiro.

O outro, o segundo, é o herdeiro do pós-2016 e da Lava Jato (o ápice da aplicação do regime de castas, pelo Judiciário[3]), e não trouxe uma imagem a ser “copiada” ideologicamente, não era um espelho, era a própria encarnação do que temos de pior enquanto Nação. O segundo, como tragédia do primeiro, não usava máscara social, como espelho que reflete o imaginário ideológico de quem anseia ser igual.

O segundo já era carne e osso, neste não precisava de imaginário: no segundo, houve identificação, profunda identificação com o que produzimos de pior no país. Com relação ao primeiro, havia um “tipo de desejo de ser igual ou equivalente”. O segundo não é imagem espelhada, é a própria sombra (sombria) desoladora de qualquer miríade.

Neste sentido, o segundo, a tragédia do primeiro, visto que sem dúvida foi muito pior do que uma farsa, representa em plena capacidade de identificação a pior forma de governo: o dominus dos piores, mais incapacitados, menos ilustrados, mais debilitados no manuseio do alfabeto, da lógica, do senso mediano.

O primeiro – vale dizer, Collor – pode ser tido como exemplar político que bem ilustra a forma de dominação baseada na Plutocracia (os mais ricos e poderosos); enquanto o segundo – eleito como farsa e tragédia do primeiro, em 2018 – é a marca d´água dos grotões da existência humana no Brasil, cabendo-lhe administrar (destruir) o Estado brasileiro com o dominus da Oclocracia: foi e é o legítimo representante/identitário dos piores indivíduos nacionais.

É preciso ter clareza de que aqui não apontamos a ausência de alguma forma de educação ou de conhecimento formal, para destacar a Oclocracia. Pois, muitos dos que detém títulos e diplomas são piores do que os piores, como Mengele; outros foram ou são mais nazistas do que Hitler: para todos esses, o fanatismo se mostrava (e se mostra) adepto do obscurantismo.

Equivale a dizer que a terra plana (dos doutores, muitas vezes) desafia o desencantamento do mundo (WEBER, 1979) – a desmagificação, o crescimento elaborado da racionalidade e da razoabilidade, de tudo que possa ser ponderável pela lógica mediana. Em pleno século XXI, ainda vemos a ocorrência de um mundo paralelo, em que médicos, bacharéis de toda ordem, fazem-se sentir autorizados a procurar por curas na alquimia, desobrigando-se da química moderna.

No governo dos piores, o/a educador/a pode se vangloriar, em praça pública e sem vergonha de ser feliz, de sua própria e autêntica ignorância. Também o governo dos piores, ao menos no Brasil, elevou-se ao poder com um projeto político de governança elaborada e executada pela “quinta série” – esse era o meme até 2022.

De outro modo, ao contrário do que acredita a “quinta série no poder”, a educação formal é importante?

É óbvio que sim, afinal, assim se constroem pontes e hospitais, está na escola pública, neste texto. É suficiente? Claro que não. Se bastasse, não haveria doutor construindo bombas. Além disso, a sabedoria dos antigos, seu bom senso, prudência, não vêm com diploma. Também o conhecimento da natureza, organizado pelos povos originários, é insuperável.

Gramsci (2000) destacou a urgência em pensarmos a educação – uma grande mudança social – como resultado de um projeto político de emancipação: o Intelectual Orgânico[4] seria a síntese entre o homo faber (o conhecimento advindo do “fazer-se”, da classe trabalhadora) e o homo sapiens – sintetizando a massa de inteligência coletiva, a massa crítica, que a Humanidade foi capaz de elaborar. Ou seja, trata-se de uma ressignificação que excluiria qualquer forma de dominação que não fosse legítima, popular, com base na inclusão e na emancipação humana.

Portanto, devemos acentuar que o governo dos piores não inclui ou exclui diplomas e títulos, em que pesem sejam piores em todos os aspectos: exemplo notável foi demonstrado na logística que deveria ter enviado respiradores para Manaus, no auge da pandemia, e os entregou em Macapá. Sem dúvida, o governo dos piores se alimenta da ignorância, da ausência total das Luzes, e reproduz a desinteligência como forma de ação política.

O governo dos piores é baseado na anticiência; negando-se à vacinação pública, promoveu ataques à universidade pública, à cultura, à diversidade social. De 2018 a 2022, o Estado era reduzido a um projeto político em que a epistemologia, o conhecimento, a inteligência, eram tratados como inimigos públicos: alguns eleitores festejaram (festejam) o fato de se “nivelarem por baixo”, tornando-os mais parecidos com seu mito. Numa figura de linguagem, um desenho social, ainda pudemos observar um capitão do mato cuidando do Ministério da Cultura, da Fundação Palmares, do INCRA, do IBAMA.

No governo dos piores houve ministro brasileiro imitando Goebbels – o ministro da propaganda nazista. Então, não é difícil avaliar que “nosso” tipo de governo é dos piores tipos possíveis, da pior moral pública, da ética que dissolveu milhares de vidas, na pandemia, e que sempre apostou na desinteligência, na desinformação, na mentira como substituta do raciocínio lógico-dedutivo.

Em suma, o governo dos piores é também governado pela pior inteligência possível – e pela falta dela também: quando a quinta série chega ao poder, com sua diminuta, insignificante, condição de menoridade intelectual e moral.

Em 2023 ainda nos perguntamos: como é que médicos, juízes, advogados, docentes, doutores, engenheiros, cientistas acreditaram (acreditam) nisso? Esta é e será uma eterna pergunta, sem que tenhamos uma resposta completa, satisfatória, ficará na conta dos casos que não foram totalmente decifráveis pela Ciência – do mesmo que o nazifascismo dos anos 1920.  

É claro que nossa análise não se conclui hoje, há muitos interstícios em tudo que dissemos, todavia, podemos dizer que deveríamos estudar melhor a autocracia burguesa brasileira, especialmente quanto à dominação (dominus) exercida na forma da Plutocracia e da Oclocracia. Pode-se alegar uma incapacidade técnica, operacional, com efeitos de total imperícia; no entanto, além disso, é inegável que se manifeste uma incapacidade analítica baseada na incompreensão meridiana dos fatos. O que, antigamente, chamava-se de oligofrenia: dificuldade mental acentuada para concatenar fatos, efeitos, circunstâncias.

Enfim, há ao menos três movimentos atuais (diferentes entre si, em sua natureza) que comprovam a necessidade de melhor nos entendermos: a CPMI do 8 de janeiro de 2023 (tentativa de golpe), a aprovação congressual do Marco Temporal, verdadeira promessa de aniquilação dos povos indígenas, e a atuação do Banco Central – autônomo e independente dos interesses do restante do país. É fácil ver (ler, ouvir) alguém defendo a tese de que o Banco Central, hoje, comete crimes contra a segurança e a soberania nacional.

 

Referências

 

DELROIO, Marcos. A particularidade da revolução passiva no Brasil. In: Gramsci e a emancipação do subalterno. S. Paulo: Editora da Unesp, 2018, p. 241-256.

 

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Volume II. Os intelectuais: o Princípio Educativo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.

 

IANNI, Octávio. A ideia de Brasil moderno. 2ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1994.

 

LIMA, João Ferreira de. Proezas de João Grilo. Fortaleza-CE : Academia Brasileira de Cordel : Ban Gráfica, 2002.

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti) democrática. Marília. 2010. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2010.

 

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado – Ditadura Inconstitucional: golpe de Estado de 2016, forma-Estado, Tipologias do Estado de Exceção, nomologia da ditadura inconstitucional. Curitiba: Editora CRV, 2019.

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. (91ª ed.). São Paulo ; Rio de Janeiro : Record, 2003.

 

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

 



[1] Neste sentido, seria o caso de averiguar a hipótese da Revolução Passiva, como ação reflexa do país ao modelo do Império do capital, também incompleta, meio a reboque, inconsistente (DELROIO, 2018).

[2] Veja-se que há situações em que os penduricalhos não são pequenos penduricalhos salariais, mas sim imorais milhões que abastecem um baronato togado. Na prática não há como inviabilizar esse tipo de monstruosidade institucional, porque é o Judiciário quem julga suas próprias cortes e castas. No Brasil de castas togadas, é mero exercício de retórica indagar “quem julga o juiz?”. Acesso em 25.6.2023: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/06/25/auxilio-moradia-e-bonus-extinto-rendem-salarios-de-ate-r-15-mi-a-juizes.htm.

[3] No desenho do dominus – de um estado arbitrário e golpista –, o evento de 2016 pode ser resumido na fórmula de um juízo político-jurídico que nunca houve: “a autonomia sem auditoria é autocracia” (MARTINEZ, 2019). Bem como 2016 ilustra à perfeição a revelação de que a dominação racional-legal (no bojo do Estado de Direito) é a anunciação das formas de controle social com forças excepcionais: verdadeiro Estado de Exceção reeditado nos laivos democráticos que também temos (MARTINEZ, 2010).

[4] “...não existe trabalho puramente físico [...] em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora [...] O erro metodológico mais difundido, ao que me parece, é em ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual essas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto das relações sociais Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais [...] A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários” Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar” (Gramsci, 2000c, p. 18-53 – grifo nosso).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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