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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O Córtex contra a inteligência social

O Preço da Segurança: até Onde a Vigilância Estatal Pode Ir?


O Córtex contra a inteligência social - Gente de Opinião

Imagine viver em uma sociedade onde qualquer um de nós pode ser monitorado a qualquer momento, sem aviso ou justificativa. Parece distópico, mas essa é a realidade que se desenha no Brasil de hoje, com a expansão do sistema Córtex. Criado para garantir a segurança pública, o sistema agora monitora milhares de pessoas e veículos sem precisar passar pelo crivo do Judiciário. Com mais de 55 mil agentes usando essa ferramenta, a privacidade torna-se uma questão cada vez mais precária.

O governo federal nomeou o sistema como Plataforma de Monitoramento Córtex (BRASIL, 2022), e ele é empregado pelo setor de "inteligência" do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em Brasília. Essa condição é usada para justificar legalmente o monitoramento sem a necessidade de aprovação prévia do Judiciário, operando de maneira independente de inquéritos policiais ou ações judiciais.

No centro do sistema de vigilância estatal, o Córtex concentra uma quantidade impressionante de dados sigilosos sobre milhões de brasileiros. Essa rede de monitoramento oferece acesso a uma vasta gama de informações sensíveis, que incluem câmeras em tempo real em ruas e avenidas, notas fiscais emitidas em território nacional, a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), registros de bilhetagem de ônibus municipais, o Cadastro Geral de Empregados, dados do Sistema Único de Saúde (SUS), restrições judiciais de veículos, manifestos de cargas rodoviárias, listas de Pessoas Politicamente Expostas (PEPs), registros oficiais de tratores e máquinas agrícolas, entre outros. Trata-se de um sistema capaz de mapear a sociedade em detalhes, levantando preocupações sobre a profundidade e o alcance desse tipo de vigilância (Valente & Freitas, 2024).

O Córtex, que começou de forma pontual durante o governo de Michel Temer (2016-2018), foi utilizado em larga escala no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Nesse período, o sistema foi ampliado sob a liderança dos ex-ministros Sergio Moro (2019-2020), André Mendonça (2020-2021) e Anderson Torres (2021-2022), consolidando-se como uma ferramenta essencial para a vigilância estatal.

Em 2021, sob a gestão de Anderson Torres, o Ministério da Justiça e Segurança Pública formalizou o uso do Córtex em seu formato atual. No entanto, ainda em setembro de 2019, Sergio Moro já havia anunciado a integração do Córtex com o sistema Alerta Brasil 3.0 da Polícia Rodoviária Federal, destacando que essa unificação reduziria custos e estabeleceria uma rede integrada com seis mil pontos de monitoramento no país (REBELLO, 2020). Desde então, o número de câmeras ligadas ao Córtex aumentou de 26 mil, em 2021, para quase 36 mil atualmente. Esse sistema permite o monitoramento em tempo real de veículos e pessoas e é capaz de emitir "alertas de inteligência" para rastreamento de alvos específicos, inclusive alvos móveis (Valente & Freitas, 2024).

Esse cenário nos leva a questionar os limites da vigilância estatal e o preço que estamos pagando por essa suposta segurança. A implantação do Córtex não apenas fere a privacidade, mas também coloca em risco os direitos fundamentais de cada cidadão.

Michel Foucault descreveu, em Vigiar e Punir, como o poder de vigiar se espalha pela sociedade, criando uma rede de controle e disciplina que molda comportamentos (Foucault, 2014). O Córtex é um exemplo moderno desse fenômeno, funcionando como uma “máquina panóptica” que observa silenciosamente, mas de forma implacável. Não há necessidade de justificar o porquê, basta clicar e acessar as câmeras espalhadas pelo país, monitorando cada movimento. Estamos diante de uma sociedade em que as autoridades veem tudo, mas permanecem invisíveis para aqueles que são observados.

Sob o argumento de proteger a segurança pública, o Córtex permite que esses agentes monitorem pessoas e veículos, sem deixar claro quem está sendo vigiado e por quê. Quando você sabe que pode ser observado a qualquer momento, sem motivo aparente, não há como evitar a sensação de estar preso a uma teia invisível, onde qualquer movimento pode ser registrado. Foucault disse que “nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância” (Foucault, 2014) — e o Córtex parece concretizar essa ideia, levando a vigilância para além das fronteiras da segurança e diretamente para a esfera da vida privada.

A falta de transparência sobre o funcionamento e o uso do Córtex é um fator que causa extrema preocupação. De acordo com um estudo publicado recentemente, o Córtex não apenas expande as capacidades de vigilância do Estado, mas também o faz à margem da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e das garantias constitucionais de privacidade. Assim como durante a ditadura militar, onde o monitoramento do Estado era utilizado para suprimir liberdades, o Córtex é um lembrete inquietante de que essa vigilância indiscriminada e sem controle é uma ameaça contínua à democracia (BARRETO; DIAS, 2023).

Imagine saber que seu carro foi monitorado sem nenhuma razão explícita ou que um conhecido teve a rotina vigiada sem saber. O Córtex torna essa possibilidade real, e isso sem a devida supervisão. Assim como Foucault observou no passado, esse tipo de disciplina infiltra-se nas relações sociais, transformando o poder de vigiar em um fim em si mesmo. E sem transparência, não sabemos ao certo quem está protegendo quem, ou mesmo se estamos sendo protegidos ou apenas controlados.

Na perspectiva de Gilles Deleuze, a "Sociedade de Controle" é aquela em que a vigilância serve para moldar e regular comportamentos (SOUZA; AVELINO; SILVEIRA, 2018). O Córtex é a concretização dessa sociedade: um mecanismo que intimida, constrange e até ameaça a população sob o pretexto da segurança. Aqui, ecoam as palavras de Kafka (1997), que, em A Metamorfose, retrata uma humanidade transformada em “baratas”.

O que o Córtex ameaça fazer ou já está fazendo com nossa inteligência social (empatia, segurança social, interação, sociabilidade) pode ser resumido à aplicação do chamado princípio da exceção – que sempre será (concomitantemente) um acesso aos meios de exclusão. Resumidamente:

·       “Normalmente, seguiríamos as regras; mas, neste caso, as regras devem se dobrar aos fatos e vamos tratar o caso de modo particular”.

·       “Particularmente, sigo as regras, mas vejo que o caso deve ser tratado de modo especial”.

 

O Princípio da Exceção excede o limiar do aceitável, mas como é de uso regular, recebe a justificação necessária. A percepção de que há algo insólito (Camus, 1990) nas relações sociais e políticas vem desse efeito de se justificar o inaceitável.

Neste contexto, somos todos baratas, à mercê de um sistema que nos vigia, nos suspeita e nos acusa. Essa "carnavalização" da vigilância a transforma não apenas em um ato rotineiro, mas também em algo desprovido de seriedade e de controle ético, criando um ambiente sombrio onde qualquer um pode ser vigiado e incriminado.

O que está em jogo aqui não é apenas a privacidade individual, mas a própria responsabilidade do Estado em garantir que o uso de tecnologias como o Córtex seja justo, transparente e ético. Desse modo, entende-se que a resposta do Estado ao uso do Córtex é insuficiente e carece de regulamentação. Para piorar, as auditorias sobre o sistema são raras e ineficazes, deixando a sociedade à mercê de um sistema de vigilância que parece operar sem freios, totalmente opaco (Valente & Freitas, 2024). Essa ausência de controle externo significa que, hoje, o poder de vigiar está nas mãos de um grupo restrito de agentes, sem que saibamos a quem realmente interessa essa vigilância.

Michel Foucault nos alertou que "somos suas engrenagens" (Foucault, 2014, p. 210), peças de uma máquina que exerce controle sobre nossas vidas. O Córtex é a materialização dessa máquina, e a sociedade precisa decidir até onde está disposta a sacrificar sua liberdade em nome da segurança. Cabe a nós, como cidadãos, exigir que o Estado garanta que a proteção à segurança pública não se torne um pretexto para suprimir nossa liberdade.

Chegou a hora de repensar até onde estamos dispostos a ir em nome da segurança. A vigilância pode até nos prometer proteção, mas a que custo? Quando permitimos que um sistema como o Córtex opere sem supervisão, corremos o risco de perder nossa liberdade e nossa autonomia como cidadãos. Precisamos nos perguntar: o que mais estamos dispostos a sacrificar para nos sentirmos seguros?

No mundo de Kafka, e no nosso também, há muitos sujeitos de direito, mas quase-nenhum sujeito de fato, como sujeitos sociais provocadores de fatos históricos. Com certeza, Kafka ficaria muito mais feliz em reconhecer o Sujeito Social Histórico do que debater-se com o famoso “Operador do Córtex” – até porque este está contido no primeiro, mas sem que ocorra o contrário. E este talvez fosse o primeiro passo justo e democrático.

Do contrário, o título do texto seguirá se impondo na forma de “verdades políticas” do cadafalso do Estado Democrático de Direito e, assim, obviamente, o Córtex seguirá sendo o antípoda, mas, sobretudo, o verdugo, da inteligência social no Brasil.

 

 

Referências

BARRETO, Alana Maria Passos; DIAS, Clara Angélica Gonçalves Cavalcanti. A exposição da privacidade diante da falta de transparência: um estudo sobre o Córtex. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais, Aracaju, v. 10, n. 1, p. 707-719, 2023. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/humanas/article/view/11767. Acesso em: 10 out. 2024.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Plataforma de Monitoramento Córtex. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-seguranca/seguranca-publica/operacoes-integradas/destaques/plataforma-de-monitoramento-cortex. Acesso em: 10 out. 2024.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. São Paulo: Record, 1990.

KAFKA, Franz. A metamorfose. 18ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

REBELLO, Aiuri. Da placa de carro ao CPF: conheça o Córtex, sistema de vigilância do governo que integra de placa de carro a dados de emprego. The Intercept Brasil, 21 set. 2020. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2020/09/21/governo-vigilancia-cortex/. Acesso em: 10 out. 2024.

SOUZA, Joyce; AVELINO, Rodolfo; SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Modulação Deleuziana, Modulação Algorítmica e Manipulação Midiática. Sociedade de Controle, Manipulação e Modulação das Redes Digitais. São Paulo: Hedra, 2018. p.13.

VALENTE, Rubens; FREITAS, Caio de. Programa de vigilância do MJ permite a 55 mil agentes seguir “alvos” sem justificativa. Agência Pública, 2024. Disponível em: https://apublica.org/2024/10/vigilancia-55-mil-agentes-podem-monitorar-alvos-sem-justificativa/. Acesso em: 10 out. 2024.

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