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Vinício Carrilho

O metafísico na praia - da Majorlandia/CE


O metafísico na praia - da Majorlandia/CE  - Gente de Opinião

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 

Eu possa me dizer do amor (que tive)

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure

 

Soneto de fidelidade

Vinícius de Moraes

 

 

          Como você já deve ter percebido, estamos construindo uma série sobre esse personagem que chamamos de O metafísico. Outro dia traremos uma descrição dessa criatura humana, verdadeira tipologia social brasileira.

          Hoje retrataremos uma suposta viagem do metafísico à praia de Majorlandia, no Aracati do Ceará. Aracati é um município com praias fabulosas, a mais celebrada pelos gringos é Canoa Quebrada. Conheço praticamente todas, mas desconfio que o metafísico não. Provavelmente seu passeio de final de ano seria na Faria Lima/SP.

          Aracati quer dizer “bons ventos, bons ares”. No vídeo que destaca esta crônica, com uma imagem de encher os olhos de maresia e de encanto natural, feito por Celinha Ferreira, é fácil perceber os bons ventos que a Lua nos traz.

          Num exercício de liberdade literária, viajei na Lua avermelhada, brandindo sua aparição de encantamento, banhando as ondas do mar e iluminando a quem lá estivesse. E coloquei o metafísico a ver o Brasil. Nessa liberdade literária que me concedi, o metafísico ficaria embasbacado, como qualquer pessoa normal, com a brisa, a Lua avermelhada, a branquitude de paz que as ondas nos oferecem.

          Com obrigação, o poeta nos brindaria com linhas aveludadas, sonoras, saborosas de encanto e de amor, com a Lua avermelhada como testemunha ocular do abraço, dos beijos dos amantes. Nossos olhos se encheriam de saudades, do tempo em que se amou, de tudo que foi compartilhado, das esperanças que renascem (renasciam) com a imagem do paraíso. Com o poeta esqueceríamos de nossas limitações, de tudo que está fora de alcance; esqueceríamos de nós mesmos, de nossa falha, das fadigas de nossa singular e frágil humanidade. Ali estaríamos na presença de deuses, sem nenhum sentimento que não fosse nossa grandeza diante da capacidade que a natureza tem de nos amar.

          Como não estou lá e não sou poeta de profissão, até agora estou na descrição do fenômeno natural mais belo que se possa saborear nesta região nordestina. O metafísico normal faria uma descrição semelhante, uma “fenomenologia da natureza”.

          O metafísico não estaria errado, em sua fenomenologia da natureza – descrevendo meio secamente (tipo “vídeo-descrição”) “o que os olhos alcançam” – porém, a questão é que há muito mais-além do que a vista empresta. Há pelo menos dois sentidos que o metafísico (meio estrábico para a vida) não chegaria nem perto: um, é aquele que toda pessoa normal consegue sentir com as vibrações no alto da cabeça, um certo “arrepio mental” que aflige “quem está do lado certo da história”, e quando se lê uma poesia sobre a Lua e a praia (daquelas crônicas de Rubem Braga: A mão e a luva – da mulher que não se conheceu[1]).

O segundo alcance impeditivo ao metafísico, em sua “fenomenologia da natureza”, advém do que podemos chamar de “fenomenologia social e política” – a mesma que conseguimos nos aproximar ao ler Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou Pedagogia do Oprimido, do grande mestre Paulo Freire.

          Se o metafísico, adorador da Faria Lima, desconfio, é incapaz de sentir a “vibração orgânica” de um poema sobre a praia e a Lua, imaginemos qual seria sua interpretação sobre o Nordeste brasileiro, as maravilhas naturais, seu povo, sua saga, sua luta pela sobrevivência – em meio ao caos patrocinado, exatamente, pela Faria Lima do metafísico de plantão. Não dá para o metafísico, em seu encolhimento de perspectivas e de vontade ou anseio político, nem chegar perto do que é o “mar de esperanças”.

          O que se encontra próximo à estrutura mental, moral, social, do metafísico – no estofo da Faria Lima – é o preconceito, ou seja, a notificação cognitiva baseada na ausência de conhecimento: é óbvio que ocorre uma dissonância cognitiva. O metafísico tem e mantém preconceito para com o povo nordestino, claro. Preconceito baseado na ignorância de quem desconhece, não quer conhecer e ter raiva de quem conhece um pouco. A fenomenologia da natureza do metafísico não lhe permite escapar ao pré-conceito social e político: o pré-conceito equivale à que temos (à primeira vista), sem percorrer as camadas do entendimento, sem, obviamente, aproximar-se do que realmente é: a isto, “aquilo-que-é”, chamamos de conceito. Então, pré-conceito é o que se põe como “verdadeiro” antes de se saber o que de fato é. Em outras palavras, o pré-conceito é o que se opõe “ao-que-é”, retido no domínio da ignorância.

          Curiosamente, quando nos aventuramos – entre o mar e a Lua – a falar ou interpretar a fenomenologia da natureza do metafísico, acabamos por descer ao seu nível de compreensão (“vídeo-descrição”), contudo, além disso, avançamos para uma tentativa de observar a “essência do próprio metafísico”. Nós conseguimos fazer isso, se e quando ultrapassamos a vídeo-descrição do indivíduo chamado O metafísico.

Em suma, ao retratar a fenomenologia da natureza do metafísico, nós alcançamos sua essência preconceituosa, desfigurada pela impossibilidade real de ver além das próprias aparências. Não à toa, para o metafísico, aparência se limita à imagem do espelho – e esse, como sabemos, é dominado, performado por idiossincrasias –, daquele mesmo espelho que destronou a mitologia grega antiga. Mas que é a cara do metafísico – um espelho de alma vazia.

Enfim, o metafísico não faz fenomenologia de si mesmo. Vê-se como experimento, muitas vezes um produto social inacabado. É um tipo de "não-ser-aí", posto que é menos do que finito. Se fosse o contrário, iria requerer que tivesse um fim, um propósito. Mesmo que fosse finito e imperfeito, "eterno enquanto dure", como disse o poeta, para o metafísico estaria muito longe do alcance dos seus olhos míopes e da visão de mundo turva, opaca, enterrada na ignorância.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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