Quinta-feira, 28 de dezembro de 2023 - 09h24
E assim, quando mais
tarde me procure
Quem sabe a morte,
angústia de quem vive
Quem sabe a solidão,
fim de quem ama
Eu possa me dizer do
amor (que tive)
Que não seja imortal,
posto que é chama
Mas que seja infinito
enquanto dure
Soneto de fidelidade
Vinícius de Moraes
Como você já deve ter percebido, estamos construindo uma
série sobre esse personagem que chamamos de O metafísico. Outro dia traremos uma
descrição dessa criatura humana, verdadeira tipologia social brasileira.
Hoje retrataremos uma suposta viagem do metafísico à praia
de Majorlandia, no Aracati do Ceará. Aracati é um município com praias
fabulosas, a mais celebrada pelos gringos é Canoa Quebrada. Conheço
praticamente todas, mas desconfio que o metafísico não. Provavelmente seu
passeio de final de ano seria na Faria Lima/SP.
Aracati quer dizer “bons ventos, bons ares”. No vídeo que
destaca esta crônica, com uma imagem de encher os olhos de maresia e de encanto
natural, feito por Celinha Ferreira, é fácil perceber os bons ventos que a Lua
nos traz.
Num exercício de liberdade literária, viajei na Lua
avermelhada, brandindo sua aparição de encantamento, banhando as ondas do mar e
iluminando a quem lá estivesse. E coloquei o metafísico a ver o Brasil. Nessa
liberdade literária que me concedi, o metafísico ficaria embasbacado, como
qualquer pessoa normal, com a brisa, a Lua avermelhada, a branquitude de paz que
as ondas nos oferecem.
Com obrigação, o poeta nos brindaria com linhas aveludadas,
sonoras, saborosas de encanto e de amor, com a Lua avermelhada como testemunha
ocular do abraço, dos beijos dos amantes. Nossos olhos se encheriam de
saudades, do tempo em que se amou, de tudo que foi compartilhado, das
esperanças que renascem (renasciam) com a imagem do paraíso. Com o poeta
esqueceríamos de nossas limitações, de tudo que está fora de alcance;
esqueceríamos de nós mesmos, de nossa falha, das fadigas de nossa singular e
frágil humanidade. Ali estaríamos na presença de deuses, sem nenhum sentimento
que não fosse nossa grandeza diante da capacidade que a natureza tem de nos
amar.
Como não estou lá e não sou poeta de profissão, até agora
estou na descrição do fenômeno natural mais belo que se possa saborear nesta
região nordestina. O metafísico normal faria uma descrição semelhante, uma
“fenomenologia da natureza”.
O metafísico não estaria errado, em sua fenomenologia da
natureza – descrevendo meio secamente (tipo “vídeo-descrição”) “o que os olhos
alcançam” – porém, a questão é que há muito mais-além do que a vista empresta.
Há pelo menos dois sentidos que o metafísico (meio estrábico para a vida) não
chegaria nem perto: um, é aquele que toda pessoa normal consegue sentir com as vibrações
no alto da cabeça, um certo “arrepio mental” que aflige “quem está do lado
certo da história”, e quando se lê uma poesia sobre a Lua e a praia (daquelas
crônicas de Rubem Braga: A mão e a luva – da mulher que não se conheceu[1]).
O
segundo alcance impeditivo ao metafísico, em sua “fenomenologia da natureza”, advém
do que podemos chamar de “fenomenologia social e política” – a mesma que
conseguimos nos aproximar ao ler Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou Pedagogia
do Oprimido, do grande mestre Paulo Freire.
Se o metafísico, adorador da Faria Lima, desconfio, é
incapaz de sentir a “vibração orgânica” de um poema sobre a praia e a Lua, imaginemos
qual seria sua interpretação sobre o Nordeste brasileiro, as maravilhas
naturais, seu povo, sua saga, sua luta pela sobrevivência – em meio ao caos
patrocinado, exatamente, pela Faria Lima do metafísico de plantão. Não dá para
o metafísico, em seu encolhimento de perspectivas e de vontade ou anseio
político, nem chegar perto do que é o “mar de esperanças”.
O que se encontra próximo à estrutura mental, moral,
social, do metafísico – no estofo da Faria Lima – é o preconceito, ou seja, a
notificação cognitiva baseada na ausência de conhecimento: é óbvio que ocorre
uma dissonância cognitiva. O metafísico tem e mantém preconceito para com o
povo nordestino, claro. Preconceito baseado na ignorância de quem desconhece,
não quer conhecer e ter raiva de quem conhece um pouco. A fenomenologia da
natureza do metafísico não lhe permite escapar ao pré-conceito social e
político: o pré-conceito equivale à que temos (à primeira vista), sem percorrer
as camadas do entendimento, sem, obviamente, aproximar-se do que realmente é: a
isto, “aquilo-que-é”, chamamos de conceito. Então, pré-conceito é o que se põe
como “verdadeiro” antes de se saber o que de fato é. Em outras palavras, o
pré-conceito é o que se opõe “ao-que-é”, retido no domínio da ignorância.
Curiosamente, quando nos aventuramos – entre o mar e a Lua
– a falar ou interpretar a fenomenologia da natureza do metafísico, acabamos
por descer ao seu nível de compreensão (“vídeo-descrição”), contudo, além
disso, avançamos para uma tentativa de observar a “essência do próprio metafísico”.
Nós conseguimos fazer isso, se e quando ultrapassamos a vídeo-descrição do
indivíduo chamado O metafísico.
Em
suma, ao retratar a fenomenologia da natureza do metafísico, nós alcançamos sua
essência preconceituosa, desfigurada pela impossibilidade real de ver além das
próprias aparências. Não à toa, para o metafísico, aparência se limita à imagem
do espelho – e esse, como sabemos, é dominado, performado por idiossincrasias
–, daquele mesmo espelho que destronou a mitologia grega antiga. Mas que é a
cara do metafísico – um espelho de alma vazia.
Enfim, o metafísico não faz fenomenologia de si mesmo. Vê-se
como experimento, muitas vezes um produto social inacabado. É um tipo de
"não-ser-aí", posto que é menos do que finito. Se fosse o contrário, iria
requerer que tivesse um fim, um propósito. Mesmo que fosse finito e imperfeito,
"eterno enquanto dure", como disse o poeta, para o metafísico estaria
muito longe do alcance dos seus olhos míopes e da visão de mundo turva, opaca,
enterrada na ignorância.
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