Quinta-feira, 18 de abril de 2024 - 15h15
Todos
os dias têm trabalho escravo acontecendo no Brasil. Todo dia está em vigência o
pensamento escravista neste nosso regressivo e repressivo século XXI. Podemos simplificar
o pensamento escravista como a aliança imoral (cultural e institucional) entre o
racismo e a exploração do trabalho – em condições análogas à escravidão: do
trabalho escravizado no campo à uberização. Assim, também podemos entender como
opressão sistêmica, subalternização (vide a uberização hegemônica), recrudescimento
do supremacismo branco (racista e violento), negação, exclusão e imposição de
exceções como regras e normas (pejotização, negação das políticas sociais, em
prol do capitalismo rentista), “normalização dos absurdos” – violência social,
política, institucional contra a cultura dos Direitos Humanos.
Se
alguém nos diz que não se pratica violência física, moral, coativa, coercitiva
em quem se vê prostrado, subalternizado, negado em sua mínima condição de
dignidade, submetido ao trabalho escravo, ao alcance do racismo inabalável na
sociedade brasileira, então temos que reinventar a roda, voltando ao ensino
fundamental. O Brasil parece preso, repetindo um looping infinito, condenado ao
eterno retorno da mais antiga 5ª série primária. De fato, a combinação entre subjetividade
(racista) e a base material da exploração do trabalho, revigorado no século XXI
(uberização), que alcança o trabalho escravo, é a combinação mais primária e
bárbara que possamos imaginar.
Os
casos de pessoas libertas do trabalho análogo à escravidão nunca cessam. Aliás,
a atualização mais recente da “Lista Suja” de empregadores condenados por
trabalho escravo bateu o recorde, com a inclusão de 248 novos nomes (entre
pessoas físicas e jurídicas)[1].
Esses trabalhadores e trabalhadoras são, em maioria, pretos e pardos, o que não
é de modo nenhum um acaso. O racismo também permanece. Uma trabalhadora idosa
resgatada em 2023 contou: “Acordava de manhã e só ia dormir quase meia-noite.
Sem contar que eles me xingavam muito, ficavam falando palavrão. Ficavam
xingando minha raça, chamando de negra e aquelas coisas todas” [2].
O
racismo e a exploração do trabalho (até níveis análogos à escravidão) são
persistentes, resilientes, parecem muito bem acomodados na cultura, conectados
com a máxima expropriação das condições de trabalho e reprodução do capital.
Produtores da maior exportadora de café do Brasil foram incluídos na lista suja
do trabalho escravo em 2024[3].
No Rio Grande do Sul, trabalhadores foram resgatados trabalhando em condição
análoga à escravidão em uma pedreira clandestina, e recebiam como pagamento,
pedras de crack e cocaína[4].
Mesmo
que haja uma previsão punitiva séria, há um silogismo constitucional, um
abrandamento moral/social com esses dizeres (trabalho análogo à escravidão),
uma vez que, na prática, de sol a sol, são trabalhadoras e trabalhadores
brutalmente escravizados, sem que os paliativos linguísticos façam qualquer
diferença em suas vidas negadas. Não são sujeitos de direitos, não têm o status
de seres sociais (por isso são escravizados, com ou sem normativas legais). São
completamente retidos na condição subalterna, inferior, na qual não deveriam
estar se fossem considerados plenamente como “animais políticos” – dotados de
liberdade, vontade, autonomia.
Não
será incomum encontrar uma classe média – inclusive com “famílias
abolicionistas”, “liberais”, “iluminadas” – que mantém um porão ou o mais
genuíno “quartinho da empregada”. “Ah, mas ela tem registro em carteira”, dirão
esses “esclarecidos”. O que não nos dizem é que essa pessoa (via de regra negra,
parda) está ali sempre à disposição: 24 horas por dia, sete dias por semana[5].
No
geral, essas pessoas “tidas como se fossem da família” não têm carteira
assinada, podendo se enquadrar nas diversas tipologias hoje existentes para a
exploração do trabalho: precário, degradante, semiescravo, trabalho forçado e
embrutecido, análogo à escravidão. Na “lista suja” do trabalho escravo de 2024,
as atividades de âmbito doméstico (domésticas, cuidadoras e caseiros) tiveram o
maior número de empregadores incluídos, a maior desde a criação da base de
dados em 2003[6].
É
essa combinação perversa entre racismo e exploração do trabalho (análogo à
escravidão ou mascarado pelo “quartinho de empregada”) o que chamamos de
pensamento escravista. A ocorrência do pensamento escravista, como vemos em
todos os meios de comunicação menos obtusos, percorre o meio rural e os
ambientes urbanos, como se estivessem repetindo a estética e os lemas de Casa
Grande & Senzala.
A
classificação racial da população, necessária para a dominação colonial, mantém-se
como padrão de poder e racionalidade. O pensamento escravagista, por um lado,
prospera nas subjetividades (racismo); por outro, objetivamente e no âmbito da
exploração do trabalho, sustenta a reprodução do capital. Não se trata do
resquício de um passado mal resolvido, mas de um passado-permanente e inerente
às dinâmicas sociais brasileiras. Nessa “lógica”, o povo pobre, negro e
oprimido ainda é escravo.
A
Modernidade Tardia brasileira, sob essa forma de revolta passiva dos
escravizadores (muitos são rentistas também), segue desafiando a lógica e a
dignidade humana. Equivale a dizer que não basta explorar, subjugar, subordinar
(como fez a Reforma Trabalhista de 2017), é preciso aniquilar, extorquir ao
máximo a dignidade. O próprio conceito (dignidade), além de não constar do
vocabulário dessas pessoas (senhores escravocratas pós-modernos), aparece como
ofensa de quem a pronuncia. Lembremos que o trabalho análogo ao escravo é um
silogismo para diminuir alguém à condição de coisa, isto é, ainda mais
inferiorizado do que os animais domésticos e de criação. Os animais do agronegócio
são tidos como bens e capitais – seus trabalhadores, não.
O
pior, da perspectiva social, é saber que não são apenas os escravistas que
pensam e agem desse modo. As chamadas “elites” – brutas e brutais –, mais
assemelhadas a quem não tem nenhuma condição de elitizar-se (na cultura, na
sociabilidade, na própria educação formal), tratam o povo e entendem os
Direitos Humanos da mesma forma como se organizam para enfrentar o Estado de
Direito: têm como fim corromper todas as institucionalidades e normalidades.
O
nível do atraso societal, das “elites” plutocráticas, é tão pronunciado que
qualquer referência aos Direitos Humanos é sempre vista como motivação para as
piores reações (agressões físicas, verbais, demissões, perseguições). Isso tudo,
é claro, segue como parte da composição subjetiva do pensamento escravista.
Seus apoiadores, perpetradores, admiradores (incluindo-se, sobretudo, quem diga
“não é bem assim”), não se cansam de reproduzir o passado perverso, pervertido,
abatido pelas piores doenças de sucumbência moral.
É
o mesmo “raciocínio” que tanto vemos coordenar as ações policiais nas
periferias, porque o embrutecimento guia os dizeres que se estampam nas
mentalidades e nas ações dos “portadores do Estado”: é negro, é pobre, é
marginalizado, logo, será reprimido e condenado. A periferia conhece do poder
público apenas a visão e audição do giroflex. Não é preciso dizer que não há
inclusão social, simplesmente, porque não há nem mesmo igualdade formal onde
prospera o escravismo pós-moderno.
Para
conhecer o país, seu funcionamento sistêmico, sua própria origem, a gestão
dominante (hegemônica) das estruturas, do sistema institucional e econômico, a
regência das condições de reprodução social, torna-se cada vez mais evidente
que é obrigatório recorrer a esta chave que designamos como “pensamento escravista”,
e, sob o qual há um país fervendo na forma de um capitalismo escravista do
século XXI. Como enunciamos, a reforma trabalhista de 2017 emplacou a
uberização, a extrema subalternização e expropriação do trabalho – o que,
obviamente, é a outra perna desse capitalismo de barbárie que nos dirige em
2024, ou capitalismo escravista, se pensarmos em quanto trabalho doméstico é
mantido sem nenhum registro formal e nas fazendas que alimentam o agronegócio.
O
que o país esperava é que, em 2022, as tais “elites” dos “cidadãos de bens”
apontadas para o ponteiro regressivo da civilização (plutocracias e governo dos
piores), fossem pelo menos domadas, numa tentativa de serem alinhadas com o
futuro. Por enquanto, quase nada saiu do lugar, seja com a elevação das condições
de trabalho, do nível civilizatório mínimo que retire/anule o trabalho precarizado,
seja com a castração econômica dos racistas e escravizadores (prevista com
gravames constitucionais: crimes inafiançáveis, imprescritíveis).
Por
isso, o pensamento escravista segue firme e forte, aqui e aí, com ou sem
participação direta dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, por
todos aqueles que repelem qualquer cultura de direitos humanos e se aplicam na
eliminação moral e física dos já-marginalizados: os negros, os pobres, os
oprimidos.
Temos negado, sistematicamente, na
história e nas mentalidades, até mesmo os marcos ou padrões civilizatórios mais
elementares. É óbvio, então, que a plutocracia nacional sequer reconhece o
estágio inicial, elementar, de cidadania ao povo brasileiro. Escravos e
escravas do Brasil todo, mais ou menos acorrentados (ou não), definitivamente,
não são cidadãos e cidadãs.
É assim que o Brasil vê o seu povo.
[1] https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2024/04/05/governo-atualiza-lista-suja-do-trabalho-escravo-com-248-novos-empregadores.ghtml
Acesso em 16 abr. 2024.
[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-01/brasil-resgatou-31-mil-trabalhadores-escravizados-em-2023#:~:text=O%20Brasil%20resgatou%2C%20em%202023,menor%20n%C3%ADvel%20em%2030%20anos.
Acesso em 16 abr. 2024.
[3] https://reporterbrasil.org.br/2024/04/produtores-exportadora-cafe-brasil-lista-suja-trabalho-escravo/
Acesso em 16 abr. 2024.
[4] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/04/16/rs-trabalhadores-de-pedreira-clandestina-recebiam-crack-como-pagamento.htm
Acesso em 16 abr. 2024.
[5]https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2024/04/16/casal-que-escravizou-domestica-em-minas-e-condenado-a-mais-de-14-anos.htm. Acesso em 16 abr. 2024.
[6] https://reporterbrasil.org.br/2024/04/escravidao-domesticas-lista-suja/
Acesso em 17 abr. 2024.
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