Sábado, 12 de outubro de 2024 - 08h10
Vinício Carrilho Martinez (Dr.) –
Cientista Social
Márlon Pessanha
Doutor em Ensino de Ciências
Docente da Universidade Federal de
São Carlos
Isabela
Biagio
Professora da
rede pública e mestranda pela PUC/Campinas
É isso
mesmo. Para quem não se lembra, “fichas de leitura” de livros didáticos
emanados pelo governo de São Paulo vieram com ilustrações sobre uma praia na
Avenida Paulista. É certo que se trata de um governador carioca, que nunca
havia colocado os calcanhares no poder por aqui, também é sabido que as praias
do Rio de Janeiro estão além da memória, são fantásticas; porém, trazer tudo
isso para a principal avenida paulistana é um pouco demais, não é mesmo?
E como não
falar da mais nova contribuição para a educação "praiana" da capital
paulista?
Sim, estamos
falando do "material digital" que, com sua genialidade, padroniza absolutamente
tudo, ignorando por completo as particularidades das turmas. Afinal, quem
precisa de autonomia docente ou reconhecer as especificidades nas salas de aula
quando se tem um roteiro pronto e formatado para todos? É claro que uma mesma
solução não pode funcionar perfeitamente para qualquer escola, não importando o
contexto, o histórico dos estudantes ou a região do Estado. Ou será que toda
escola é igual, assim como as praias da Paulista!?
Além disso,
o cronograma rígido e a quantidade absurda de material para cumprir em poucas
aulas tornam a adaptação desses conteúdos praticamente impossível para os
professores e professoras. Isso sem falar no anúncio brilhante do secretário,
que decidiu que os livros didáticos do PNLD eram dispensáveis, pois o ensino
agora seria 100% digital. Uma imposição que, convenientemente, esquece da LDB,
que preconiza a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias – conceitos
aparentemente ultrapassados por aqui.
O
"material digital" não só impede o pluralismo, como também reduz o
papel dos docentes a meros repetidores de fórmulas antiquadas. Por fim, o
governador foi obrigado a suspender a retirada do Estado do PNLD. E o
secretário, num golpe de mestre, declarou que os livros serão apenas um complemento.
No fim das contas, a única coisa que parece continuar "plural" nessa
história é a nossa capacidade de colecionar absurdos.
Será que os
jovens praianos da Paulista estavam contentes? Não saberemos, mas, se não
bastasse isso, temos outras pérolas cultivadas pelo regine de faschio
que veio nos brindar, diretamente das terras estranhas – meio dominadas por grupos
muito esquisitos. Dá até receio de falar...Em todo caso, nós falaremos da mais
nova pérola cultivada, na educação praiana da capital paulista.
Da praia paulistana à negação climática
Nestes
primeiros dias do mês de outubro de 2024, recebemos a notícia, por diferentes
meios de comunicação, que o governador Tarcísio de Freitas vetou o projeto de
lei que previa ações de educação ambiental nas escolas do estado de São Paulo.
O projeto de Lei Nº 80 de 2023[1]
teve a autoria do deputado Guilherme Cortez e previa a inclusão da temática
“educação climática” no programa da rede pública de ensino do Estado de São
Paulo, como conteúdo suplementar, multidisciplinar e transversal.
O veto do
governador foi feito sob a argumentação de que existem dois programas vigentes
que tratariam da temática ambiental: Programa Escola Mais Segura; Programa de
Alfabetização Ambiental.
O foco do
programa Escola Mais Segura, mesmo após uma modificação que incorporou conteúdos
que tratam da Redução de Riscos e Desastres (ERRD), envolve mais uma ação
pós-facto do que, propriamente, uma formação profunda e em torno das origens
antropocêntricas das mudanças climáticas e sobre as ações necessárias para retroceder
tais mudanças. O que nos daria a ideia da prevenção, precaução, recuperação
ambiental – para os governantes que conhecem o mínimo, trata-se do artigo 225
da Constituição Federal de 1988.
Outrossim, se
tomarmos como um recorte representativo a Playlist[2]
do programa no canal do Youtube do Centro de Mídias do Estado de São Paulo, o
único vídeo que trata, mais diretamente, das Mudanças Climáticas dedica um
curto período de tempo para indicar a ação humana e, ao se referir às possíveis
ações para reverter os problemas ambientais, as indica enquanto uma empreitada
individual.
Alguns mais
irônicos chamariam de Centro de Midas – parece que tudo vai virando ouro...
Já o
Programa de Alfabetização Ambiental, que explicitamente trataria da questão
ambiental[3]
(Conservação da Biodiversidade; Resíduos Sólidos; Mudanças Climáticas; Preservação
da Qualidade das Águas; Energia), consiste em uma ação de formação docente que,
a julgar pelos materiais também disponibilizados no canal no Youtube[4]
do Centro de Mídias do Estado de São Paulo (Midas?), parece direcionar mais o
debate para ações pontuais, inclusive no espaço escolar, sem que se explicitem abordagens
em um nível mais articulado entre as Ciências da Natureza e as Ciências
Sociais, obviamente necessárias para um aprofundamento da questão. Essa
interrelação seria importante, inclusive, pelo fato de os materiais serem parte
de uma formação docente.
Desses
programas, deduzimos que há, de um lado, uma abordagem com foco casualista
(diminuição de riscos) baseado no individualismo e, de outro lado, há um foco
centrado em práticas (por exemplo, como fazer a compostagem), que ainda que tenham
uma relevância, não sinalizam para a necessária transversalidade a fim de se
lidar com o tema ambiental.
O que podemos perceber, baseando-nos na
literatura em educação ambiental (veja-se as referências ao final), é que os
programas elencados como sustentação argumentativa no veto do governador
repousam em uma perspectiva acrítica de educação ambiental e assim não promoveria,
de fato, uma conscientização do problema ambiental. A acriticidade, neste caso,
afasta o processo educativo da compreensão de causas da degradação ambiental
relacionadas com a forma de produção capitalista e, ademais, indica soluções
que seriam restritamente individuais[5].
Negação da Ciência
As
preocupações como o meio ambiente não são recentes, ainda que o debate sobre as
mudanças climáticas remonte há algumas poucas décadas. Conforme explicita
Carvalho (2012), as preocupações com o meio ambiente têm suas raízes nas
percepções de uma degeneração do meio ambiente e da vida urbana que decorreram
da revolução industrial.
O impacto da
poluição da destruição dos meios naturais fez emergir, no Século XVIII, uma
sensibilidade em relação à natureza que viria a se intensificar com o movimento
chamado Romantismo, no Século XIX, e que, dentre outras coisas, ressaltou uma
apreciação da natureza que se contrapunha à subjugação extrema da natureza ao
homem. Com isso, em lugar de destruir a natureza, deveríamos mantê-la para
apreciá-la. A subjugação extrema seria substituída, assim, por uma subjugação
contemplativa.
Longe de ser
um caminho de conscientização mais crítica, a apreciação se submeteu à lógica
individualista do capital. Para exemplificar o que estamos dizendo, vale
ressaltar um padrão argumentativo presente em muitas propagandas de empreendimentos
imobiliários: a redução a algo como “venha viver próximo à natureza”. Nessa
lógica, em lugar de coletivamente buscarmos tornar as cidades mais
ecologicamente adequadas, a solução posta é a fuga para espaços supostamente
“naturais”. Neste caso, a fuga é para poucos.
Neste ponto,
você leitor, deve estar se perguntando: “mas qual é, objetivamente, a relação
entre a apreciação da natureza e o veto ao projeto de Lei?”
Pois bem...
Assim como nem toda a apreciação da natureza irá garantir a manutenção ou
recuperação do meio ambiente, programas que tangenciam o tema também não
garantirão. O que, potencialmente, promoveria uma consciência crítica sobre o
problema ambiental entre os estudantes, seria incorporar o tema, assim como
seus muitos subtemas, no programa das disciplinas escolares. Este seria um
passo importante e era justamente essa a proposta do projeto de Lei vetado.
O projeto
previa, explicitamente, que fossem tratados nas disciplinas escolares já
existentes: aquecimento global, geopolítica e clima; mudanças do clima local;
sustentabilidade; biodiversidade e alterações ambientais; justiça climática e
racismo ambiental; povos originários, seus saberes e soluções baseadas na
natureza; fenômenos atmosféricos, como ciclones, furacões, tufões e tornados, e
suas relações com as mudanças do clima; transição energética justa: Brasil e
panorama global; integridade da biosfera; mudanças no uso das terras; poluição
e os impactos no clima; história dos movimentos climáticos, ambientalismo
interseccional e práticas sustentáveis; colapso ambiental; antropoceno.
Os programas
existentes indicados pelo governador Tarcísio de Freitas não suprem, nem em
profundidade nem em foco o que prevê o projeto de Lei. Falha na análise do
governador e de sua equipe? Não sejamos ingênuos! É apenas uma estratégia...uma
alça de poder que se propõe a condicionar a realidade de milhares de estudantes
fora do mundo da Ciência.
Referências:
CARVALHO, I. C. M. A questão ambiental e a emergência de um campo de
ação político-pedagógica (7a. ed.). In: LOUREIRO, C. F.; LAYRARGUES, P. P.;
CASTRO, R. S. (Org.). Sociedade e Meio Ambiente. 7ed.São Paulo: Cortez, 2012,
v. 1, p. 55-69.
CARVALHO, I. C. M. O sujeito ecológico: a formação de novas identidades
na escola. In: PERNAMBUCO, M.; PAIVA, I. (Org.). Práticas coletivas na escola.
1ed. Campinas: Mercado de Letras, 2013, v. 1, p. 115-124.
CARVALHO, I. C. M.; FARIAS, C. R.; PEREIRA, M. V. A missão
“ecocivilizatória” e as novas moralidades ecológicas: a educação ambiental
entra a norma e a antinormatividade. Ambiente $ Sociedade, v. 14, n. 2, p.
35-49, 2011.
CARVALHO, I. C. M.; MHULE, R. P. Intenção e atenção nos processos de
aprendizagem. Por uma educação ambiental “fora da caixa”. Revista de Educação
Ambiental, v. 21, n. 1, p. 26-40, 2016.
LIMA, G. F. C. Crise ambiental, educação e cidadania: os desafios da
sustentabilidade emancipatória. In: LAYRARGUES, P. P.; Castro, R. S; LOUREIRO,
C. F. B. (orgs.) Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania, São
Paulo: Cortez, 2002.
RUFINO, L.; CAMARGO, D. R.; SÁNCHEZ, C. Educação ambiental desde El Sur: A perspectiva da Terrexistência como Política e Poética Descolonial. Revista Sergipana de Educação Ambiental. v. 7, n. especial, p. 1-11, 2020.
[1]
Íntegra da tramitação, incluindo a redação final e o veto do governador: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000485127.
[2]
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EvqliBvHgmg&list=PLWISVgw6NXVwlzqolLoBolPRjmSZkigcx&pp=iAQB.
[3]
Informações disponíveis em: https://semil.sp.gov.br/sma/alfabetizacaoambiental/#1713537604661-92f09290-5f3f
[4]
Playlist disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=PLoNQG_3aYTagP6M7UP-XxHLNJo16qsOkD.
[5]
Um exemplo utilizado em muitos diálogos sobre o que seria uma educação
ambiental crítica envolve o uso da água. As soluções acríticas que são
apresentadas frequentemente se remetem a uma ação individual e são restritas a
“tarefas” como fechar a torneira ao escovar os dentes, banhos rápidos ou não
lavar calçadas. Ainda que essas ações possam ser feitas (e até deveriam), uma
educação ambiental crítica, ao tratar da degradação dos recursos hídricos, incluiria,
por exemplo, uma discussão sobre a lógica produtiva, sobre o fato das
indústrias e o agronegócio serem os consumidores da grande parte da água, assim
como sobre a necessária ação coletiva para pressionar e dialogar sobre meios
para alterar as formas de consumo por empresas, espaços públicos, para além do
restrito às residências.
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