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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Um governo praiano na Avenida Paulista


Um governo praiano na Avenida Paulista - Gente de Opinião

Vinício Carrilho Martinez (Dr.) – Cientista Social

 

Márlon Pessanha

Doutor em Ensino de Ciências

Docente da Universidade Federal de São Carlos

 

Isabela Biagio

Professora da rede pública e mestranda pela PUC/Campinas


É isso mesmo. Para quem não se lembra, “fichas de leitura” de livros didáticos emanados pelo governo de São Paulo vieram com ilustrações sobre uma praia na Avenida Paulista. É certo que se trata de um governador carioca, que nunca havia colocado os calcanhares no poder por aqui, também é sabido que as praias do Rio de Janeiro estão além da memória, são fantásticas; porém, trazer tudo isso para a principal avenida paulistana é um pouco demais, não é mesmo?

E como não falar da mais nova contribuição para a educação "praiana" da capital paulista?

Sim, estamos falando do "material digital" que, com sua genialidade, padroniza absolutamente tudo, ignorando por completo as particularidades das turmas. Afinal, quem precisa de autonomia docente ou reconhecer as especificidades nas salas de aula quando se tem um roteiro pronto e formatado para todos? É claro que uma mesma solução não pode funcionar perfeitamente para qualquer escola, não importando o contexto, o histórico dos estudantes ou a região do Estado. Ou será que toda escola é igual, assim como as praias da Paulista!?

Além disso, o cronograma rígido e a quantidade absurda de material para cumprir em poucas aulas tornam a adaptação desses conteúdos praticamente impossível para os professores e professoras. Isso sem falar no anúncio brilhante do secretário, que decidiu que os livros didáticos do PNLD eram dispensáveis, pois o ensino agora seria 100% digital. Uma imposição que, convenientemente, esquece da LDB, que preconiza a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias – conceitos aparentemente ultrapassados por aqui.

O "material digital" não só impede o pluralismo, como também reduz o papel dos docentes a meros repetidores de fórmulas antiquadas. Por fim, o governador foi obrigado a suspender a retirada do Estado do PNLD. E o secretário, num golpe de mestre, declarou que os livros serão apenas um complemento. No fim das contas, a única coisa que parece continuar "plural" nessa história é a nossa capacidade de colecionar absurdos.

Será que os jovens praianos da Paulista estavam contentes? Não saberemos, mas, se não bastasse isso, temos outras pérolas cultivadas pelo regine de faschio que veio nos brindar, diretamente das terras estranhas – meio dominadas por grupos muito esquisitos. Dá até receio de falar...Em todo caso, nós falaremos da mais nova pérola cultivada, na educação praiana da capital paulista.

 

Da praia paulistana à negação climática

Nestes primeiros dias do mês de outubro de 2024, recebemos a notícia, por diferentes meios de comunicação, que o governador Tarcísio de Freitas vetou o projeto de lei que previa ações de educação ambiental nas escolas do estado de São Paulo. O projeto de Lei Nº 80 de 2023[1] teve a autoria do deputado Guilherme Cortez e previa a inclusão da temática “educação climática” no programa da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, como conteúdo suplementar, multidisciplinar e transversal.

O veto do governador foi feito sob a argumentação de que existem dois programas vigentes que tratariam da temática ambiental: Programa Escola Mais Segura; Programa de Alfabetização Ambiental.

O foco do programa Escola Mais Segura, mesmo após uma modificação que incorporou conteúdos que tratam da Redução de Riscos e Desastres (ERRD), envolve mais uma ação pós-facto do que, propriamente, uma formação profunda e em torno das origens antropocêntricas das mudanças climáticas e sobre as ações necessárias para retroceder tais mudanças. O que nos daria a ideia da prevenção, precaução, recuperação ambiental – para os governantes que conhecem o mínimo, trata-se do artigo 225 da Constituição Federal de 1988.

Outrossim, se tomarmos como um recorte representativo a Playlist[2] do programa no canal do Youtube do Centro de Mídias do Estado de São Paulo, o único vídeo que trata, mais diretamente, das Mudanças Climáticas dedica um curto período de tempo para indicar a ação humana e, ao se referir às possíveis ações para reverter os problemas ambientais, as indica enquanto uma empreitada individual.

Alguns mais irônicos chamariam de Centro de Midas – parece que tudo vai virando ouro...

Já o Programa de Alfabetização Ambiental, que explicitamente trataria da questão ambiental[3] (Conservação da Biodiversidade; Resíduos Sólidos; Mudanças Climáticas; Preservação da Qualidade das Águas; Energia), consiste em uma ação de formação docente que, a julgar pelos materiais também disponibilizados no canal no Youtube[4] do Centro de Mídias do Estado de São Paulo (Midas?), parece direcionar mais o debate para ações pontuais, inclusive no espaço escolar, sem que se explicitem abordagens em um nível mais articulado entre as Ciências da Natureza e as Ciências Sociais, obviamente necessárias para um aprofundamento da questão. Essa interrelação seria importante, inclusive, pelo fato de os materiais serem parte de uma formação docente.

Desses programas, deduzimos que há, de um lado, uma abordagem com foco casualista (diminuição de riscos) baseado no individualismo e, de outro lado, há um foco centrado em práticas (por exemplo, como fazer a compostagem), que ainda que tenham uma relevância, não sinalizam para a necessária transversalidade a fim de se lidar com o tema ambiental.

 O que podemos perceber, baseando-nos na literatura em educação ambiental (veja-se as referências ao final), é que os programas elencados como sustentação argumentativa no veto do governador repousam em uma perspectiva acrítica de educação ambiental e assim não promoveria, de fato, uma conscientização do problema ambiental. A acriticidade, neste caso, afasta o processo educativo da compreensão de causas da degradação ambiental relacionadas com a forma de produção capitalista e, ademais, indica soluções que seriam restritamente individuais[5].

 

Negação da Ciência

As preocupações como o meio ambiente não são recentes, ainda que o debate sobre as mudanças climáticas remonte há algumas poucas décadas. Conforme explicita Carvalho (2012), as preocupações com o meio ambiente têm suas raízes nas percepções de uma degeneração do meio ambiente e da vida urbana que decorreram da revolução industrial.

O impacto da poluição da destruição dos meios naturais fez emergir, no Século XVIII, uma sensibilidade em relação à natureza que viria a se intensificar com o movimento chamado Romantismo, no Século XIX, e que, dentre outras coisas, ressaltou uma apreciação da natureza que se contrapunha à subjugação extrema da natureza ao homem. Com isso, em lugar de destruir a natureza, deveríamos mantê-la para apreciá-la. A subjugação extrema seria substituída, assim, por uma subjugação contemplativa.

Longe de ser um caminho de conscientização mais crítica, a apreciação se submeteu à lógica individualista do capital. Para exemplificar o que estamos dizendo, vale ressaltar um padrão argumentativo presente em muitas propagandas de empreendimentos imobiliários: a redução a algo como “venha viver próximo à natureza”. Nessa lógica, em lugar de coletivamente buscarmos tornar as cidades mais ecologicamente adequadas, a solução posta é a fuga para espaços supostamente “naturais”. Neste caso, a fuga é para poucos.

Neste ponto, você leitor, deve estar se perguntando: “mas qual é, objetivamente, a relação entre a apreciação da natureza e o veto ao projeto de Lei?”

Pois bem... Assim como nem toda a apreciação da natureza irá garantir a manutenção ou recuperação do meio ambiente, programas que tangenciam o tema também não garantirão. O que, potencialmente, promoveria uma consciência crítica sobre o problema ambiental entre os estudantes, seria incorporar o tema, assim como seus muitos subtemas, no programa das disciplinas escolares. Este seria um passo importante e era justamente essa a proposta do projeto de Lei vetado.

O projeto previa, explicitamente, que fossem tratados nas disciplinas escolares já existentes: aquecimento global, geopolítica e clima; mudanças do clima local; sustentabilidade; biodiversidade e alterações ambientais; justiça climática e racismo ambiental; povos originários, seus saberes e soluções baseadas na natureza; fenômenos atmosféricos, como ciclones, furacões, tufões e tornados, e suas relações com as mudanças do clima; transição energética justa: Brasil e panorama global; integridade da biosfera; mudanças no uso das terras; poluição e os impactos no clima; história dos movimentos climáticos, ambientalismo interseccional e práticas sustentáveis; colapso ambiental; antropoceno.

Os programas existentes indicados pelo governador Tarcísio de Freitas não suprem, nem em profundidade nem em foco o que prevê o projeto de Lei. Falha na análise do governador e de sua equipe? Não sejamos ingênuos! É apenas uma estratégia...uma alça de poder que se propõe a condicionar a realidade de milhares de estudantes fora do mundo da Ciência.

 

 

Referências:

CARVALHO, I. C. M. A questão ambiental e a emergência de um campo de ação político-pedagógica (7a. ed.). In: LOUREIRO, C. F.; LAYRARGUES, P. P.; CASTRO, R. S. (Org.). Sociedade e Meio Ambiente. 7ed.São Paulo: Cortez, 2012, v. 1, p. 55-69.

CARVALHO, I. C. M. O sujeito ecológico: a formação de novas identidades na escola. In: PERNAMBUCO, M.; PAIVA, I. (Org.). Práticas coletivas na escola. 1ed. Campinas: Mercado de Letras, 2013, v. 1, p. 115-124.

CARVALHO, I. C. M.; FARIAS, C. R.; PEREIRA, M. V. A missão “ecocivilizatória” e as novas moralidades ecológicas: a educação ambiental entra a norma e a antinormatividade. Ambiente $ Sociedade, v. 14, n. 2, p. 35-49, 2011.

CARVALHO, I. C. M.; MHULE, R. P. Intenção e atenção nos processos de aprendizagem. Por uma educação ambiental “fora da caixa”. Revista de Educação Ambiental, v. 21, n. 1, p. 26-40, 2016.

LIMA, G. F. C. Crise ambiental, educação e cidadania: os desafios da sustentabilidade emancipatória. In: LAYRARGUES, P. P.; Castro, R. S; LOUREIRO, C. F. B. (orgs.) Educação ambiental: repensando o espaço da cidadania, São Paulo: Cortez, 2002.

RUFINO, L.; CAMARGO, D. R.; SÁNCHEZ, C. Educação ambiental desde El Sur: A perspectiva da Terrexistência como Política e Poética Descolonial. Revista Sergipana de Educação Ambiental. v. 7, n. especial, p. 1-11, 2020. 



[1] Íntegra da tramitação, incluindo a redação final e o veto do governador: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000485127.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EvqliBvHgmg&list=PLWISVgw6NXVwlzqolLoBolPRjmSZkigcx&pp=iAQB.

[3] Informações disponíveis em: https://semil.sp.gov.br/sma/alfabetizacaoambiental/#1713537604661-92f09290-5f3f

[4] Playlist disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=PLoNQG_3aYTagP6M7UP-XxHLNJo16qsOkD.

[5] Um exemplo utilizado em muitos diálogos sobre o que seria uma educação ambiental crítica envolve o uso da água. As soluções acríticas que são apresentadas frequentemente se remetem a uma ação individual e são restritas a “tarefas” como fechar a torneira ao escovar os dentes, banhos rápidos ou não lavar calçadas. Ainda que essas ações possam ser feitas (e até deveriam), uma educação ambiental crítica, ao tratar da degradação dos recursos hídricos, incluiria, por exemplo, uma discussão sobre a lógica produtiva, sobre o fato das indústrias e o agronegócio serem os consumidores da grande parte da água, assim como sobre a necessária ação coletiva para pressionar e dialogar sobre meios para alterar as formas de consumo por empresas, espaços públicos, para além do restrito às residências.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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