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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

UNESP – Universidade Estadual Paulista Campus de Marília - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais


UNESP – Universidade Estadual Paulista Campus de Marília - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Gente de Opinião

Relatório Pós-doutorado 

 

EDUCAÇÃO CONSTITUCIONAL

CARTA POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS


 

Supervisão: Marcos Del Roio

Pós-doutorando: Vinício Carrilho Martinez 

 

 

O mais importante meio para a conservação dos Estados, mas também o mais negligenciado, é fazer combinarem a educação dos cidadãos e a Constituição

Aristóteles 

 

Primavera de 2023


INTRODUÇÃO 

Pode-se ler este trabalho como um elogio à Constituição Federal de 1988, e talvez um dos últimos retratos realizados desse modo – uma vez que o pragmatismo político já embebeda a mente cansada da política da maioria do povo, quanto mais se exigido a se manifestar em defesa da Lei que nem sabe ser sua. E por isso iniciamos com uma epígrafe, a de Aristóteles, e agora remetemos a outra. 

Não se tolera quem defende, nutre, instiga, propaga, alimenta, expande a ignorância 

Sabemos que não se tolera a intolerância, diz-se NÃO a quem só diz sim aos próprios interesses, por mais obscuros que possam ser. Então, tolerância é princípio e ação: afirmativa e negativa. Afirma-se o que se deve tolerar, o Bom Senso, a Ciência, a Educação Pública com sentido libertário, reflexivo e crítico; nega-se, sendo-se intolerante, a intolerância de quem prega o ódio, o racismo, os golpes institucionais, o desmatamento, o descaso que afronta a dignidade do povo pobre, negro e oprimido.

Nega-se, em ação concreta, politicamente, socialmente, culturalmente, sob o Princípio da Tolerância, quem nega a existência da Dor do Outro, exalada pela fome, miséria humana e social, pelo descalabro da brutal divisão de classes sociais – exatamente por tudo isso reverberando a total insuficiência de sociabilidade, interação e inteligência social. Ou seja, devemos ser absolutamente intolerantes com tudo e todos os incapazes da empatia.

Devemos ser intolerantes com a antipatia de quem prega o racismo, o capacitismo, a misoginia, o elitismo, a segregação, a desigualdade e o preconceito. Devemos ser tolerantes com as diferenças, acomodando-as em torno de algo em comum, um nicho agregador com vistas a ideias e ideais que possam ser compartilhados sem distinções de gênero, classe, cor, origem, nível de escolaridade.

A Educação para a Tolerância, portanto, tem duas missões: solidificar o princípio e a práxis da tolerância – observando-se seus elementos de formação/ação – e solapar todas as investidas intolerantes contra a própria tolerância. É uma educação do SIM (para quem já é tolerante) e do NÃO a todos e todas que promulgam de qualquer noção limitada às perspectivas segregacionistas, supremacistas, excludentes e aniquiladoras dos tolerantes.

Não é, portanto, de forma alguma, uma Educação (práxis) inofensiva, idealista, metafísica, muito menos será neutra, no sentido de que sua práxis é ontológica – por exemplo, nos julgamentos de Nuremberg e de Haia – e é teleológica: mira-se tanto a fabricação social de meios e de “valores-guia” quanto a restauração e/ou manutenção dos suportes sociais, institucionais, jurídicos e políticos, que, notadamente, preservem os marcos da tolerância.

Temos isso exemplificado no Pacto de San José, na Declaração de Princípios sobre a Tolerância, da UNESCO[1], na Constituição Federal de 1988 – no seu Preâmbulo, no art. 1º, III, arts. 3º e 4º. O que nos falta é a prática social, com essa engrenagem em ação, com os valores passando à condição de hábito. Enquanto povo – com toda nossa estrutura social, institucional, estatal –, poucas vezes soubemos o que é “harmonia na diferença” (tolerância) e “unidade na diversidade” (Direitos Humanos).

De nossa parte, dá para dizer e assegurar que temos outra chance histórica, a partir de agora, para mudarmos o rumo da nossa prosa enquanto povo. Quem são os que duelam violentamente em prol de seus interesses e que, por ventura, podem ser analisados pela ótica das práticas e aspirações da tolerância?

O sujeito da nossa história é o povo, não no sentido jurídico de que equivale ao conjunto dos eleitores, e sim como resultado de um composto orgânico formado de indivíduos, cidadãos e cidadãs, gentes, grupos, etnias, camadas, setores, classes e estratos que compõem a sociedade. O povo retratado aqui é um pouco de cada um de nós, quando somamos, dividimos ou multiplicamos esforços em busca do sentido público. Porém, uma vez que o povo não constitui uma massa hegemônica, muito menos harmônica, também veremos que essa relação de convivência, longe de ser pacífica, está marcada por interesses pessoais, grupais, de classes, e que são específicos e muitas vezes mesquinhos. Em outras palavras, as relações de convivência política, apesar do esforço de alguns para que prevaleça o diálogo e a argumentação, é regulada por meios, instrumentos, técnicas e práticas violentas.

A questão mais objetiva é a seguinte: ninguém é livre para propor a indignidade. Desse modo, nosso objetivo primeiro é divulgar a Constituição Federal de 1988 (CF88) no que traz ou guarda de essencial – sua conotação de Carta Política. Muitos são aqui os aspectos realçados desse perfil da CF88, desde a prevalência da Justiça Social (arts. 3º, 170) à evidente defesa dos direitos fundamentais, em que se incluem a participação, a emancipação, a inclusão e uma Estrutura Constitucional que se assegura por meio do Processo Civilizatório (Preâmbulo, art. 215 e 225) – para o futuro e o presente, como recuperação do nosso passado. Pode-se dizer que fora da Carta Política (um tipo de Polis Constitucional) não há futuro, nem presente, porque não se observa desde o passado.

Portanto, a Educação Constitucional trata sobre propugnar uma Educação especial – Educação para a Constituição, como Carta Política – que permita reconhecer, defender e projetar (praticar) os direitos humanos fundamentais. De maneira a observar a teleologia da proposta, trata-se de educar para entender e propagar a óbvia e necessária restituição do Estado, da sociedade, de toda série de crimes cometidos contra a democracia, as instituições públicas – vide o 8 de janeiro, o vandalismo, a depredação contra os três poderes: o terrorismo –, na forma típica de políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação e saúde pública (pró-societas).

Nossa premissa maior é de que a Constituição Federal de 1988 é uma Carta Política, em vários aspectos e por vários motivos; entretanto, nenhum de seus princípios basilares é superior ao Princípio do Processo Civilizatório. A CF88 não apenas alinha-se ao Processo Civilizatório como o destaca explicitamente e não em uma única vez. No sentido mais amplo, ainda podemos/devemos observar que o Princípio do Processo Civilizatório está angariado no TÍTULO VIII - Da Ordem Social. Desse modo, pode-se avaliar que o princípio maior recobre toda a sociedade e inclui todas as formas de sociabilidade que, exatamente, performam a formação social brasileira. O artigo 214 da CF88 não deixaria dúvidas, especialmente o inciso V:

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:         

V - promoção humanística, científica e tecnológica do País (grifo nosso). 

É óbvio, portanto, que a CF88 daria abrigo sistemático – por meio do estabelecimento de obrigações públicas de fazer, ao Estado, evidentemente, e impondo-se garantias aos direitos fundamentais – em áreas especialmente sensíveis à sociedade como um todo. Basta-nos olhar a composição do Título VIII para efetivarmos a Segurança Constitucional quanto a isso, nas “áreas de cobertura”: Seguridade Social, Saúde, Previdência Social, Assistência Social, Educação, Cultura, Desporto, Ciência e tecnologia, Comunicação Social, Meio Ambiente, Família, Criança, adolescente e idoso, Índios (ainda que coubesse revisão do texto para “populações indígenas”)[2].

Para efeito didático, o texto está dividido em quatro capítulos. A metodologia utilizada é conceitual e bibliográfica, bem como é intuitiva, no sentido de que recorta muitos aspectos mais ou menos presentes em nossa realidade – alguns mais submersos, outros bastante renitentes – e isto também nos permite avaliar que o realismo político é parte integrante da pesquisa. Não é uma análise de conjuntura no sentido específico da nomenclatura, ainda que se valha de muitos pontos dessa realidade que se faz presente, mesmo sendo o passado que se ouve. E é sob este último aspecto que se incluem (e se justificam) o que chamamos de links do cotidiano, sempre referenciados nas notas de rodapé.

Ainda que se aponte a necessidade (ainda hoje) de um Positivismo Constitucional – afastando-se de toda forma de criacionismo, em que a exceção e o fascio são conviventes – este trabalho não se pôs o encargo do positivismo metodológico, estando as discussões, temáticas, conceitos, espargidos ao longo dos capítulos. O texto recobre ideias-fortes que ocupam todos os capítulos, ainda que em algum mereçam um destaque mais pontual. O trabalho é uma pesquisa de pós-doutorado em Ciência Política, não é uma tese de doutorado.

Não se trata de manual, nem de Ciência Política, nem de Direito Constitucional, mas sim da ideia central de que Ciência, Política e Direito podem/devem convergir (como algum conhecimento mais aprofundado) a uma possibilidade (de conteúdo) que abasteça e direcione uma Educação Constitucional – com forte conotação de que é preciso conhecer os clássicos e a realidade política que nos envolve. É evidente que sem a mesma tonalidade ou profundidade aqui almejada, mas manuais didáticos da escola pública já dispõe de tópicos iniciais – para crianças e jovens – de uma Educação Constitucional. Esta abordagem especial de uma Educação Constitucional tem em conta que deva ser um aprendizado universalista, laico, político (Carta Política) e jurídico (aspectos da Constituição), que confronte todas as formas de negação do Princípio Civilizatório (Fascismo) e se fortaleça, também, enquanto Ciência da Constituição. De certo modo, este é o fio condutor da pesquisa.


 

CAPÍTULO I

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CONSTITUCIONAL

 

Um ponto de partida: o meio ambiente e os povos originários[3]

Uma das revelações mais estimulantes – pelo nível e sofisticação da inteligência social demonstrada – implica na realização/promulgação legislativa em que o meio ambiente surge como o próprio sujeito de direitos, colocando-se para além daquela condição inercial do século XX, em que, na melhor das hipóteses, era convencionado como objeto de proteção legislativa. Agora o meio ambiente é sujeito de direitos e, mais especificamente, com toda a capacidade principiológica que recai sobre os direitos fundamentais (aqui, como direitos difusos). É tão sujeito de direitos quanto qualquer um de nós, os leitores e este que escreve.

Na cidade de Cáceres, Mato Grosso, mudanças na Lei Orgânica municipal consignaram o “status humano” para o meio ambiente, a natureza – no que segue outros cinco municípios: Guajará Mirim/RO, Bonito e Paudalho/PE, Florianópolis/SC, Serro/MG. Os principais destaques recaíram mais diretamente na proteção do Rio Paraguai e nas nascentes que abastecem o Pantanal[4].

         Embora não seja uma criação nacional, a conferência do status humano ao meio ambiente (pode ser um rio) nos realinha às premissas do Estado Ambiental (Canotilho, 1999) já inscrito no artigo 225 da Constituição Federal de 1988. E que, por sua vez, procura atentar com preceitos constitucionais (segurança constitucional) para os piores problemas da atualidade sob o chamado Capitalismo de Risco – que é fortemente agressor do meio ambiente e sério ameaçador da condição humana.

         Entende-se que a famigerada crise ecológica do século XXI nada mais é do que a crise do próprio capitalismo: “A acumulação no capitalismo é centrada na exploração em grande escala da força de trabalho e da apropriação do trabalho não pago ou mal pago dos seres-humanos e da natureza.” (Arbarotti & Reis, 2022, p. 52). Capitalismo e natureza devem ser encarados de forma integrada, pois o sistema é, antes de tudo, baseado na apropriação do trabalho humano e da natureza.

         Martins (2006) afirma que na agricultura o que transforma a matéria prima em mercadoria não é apenas o trabalho humano, mas sua combinação com o que chamou de ritmo biológico das forças naturais. Ou seja, na produção agrícola, por exemplo, existe um tempo de trabalho não humano crucial para a atividade. A partir daí depreende-se que há uma apropriação do trabalho gratuito ou mal pago dos seres humanos, do clima, do solo, das florestas, e dos oceanos.

Essa compreensão possibilita aquilo que Moore (2015) chamou de metabolismo singular, que é ver o ser humano dentro do tecido da vida. “A integração da dimensão ecológica na compreensão da crise econômica e das desigualdades sociais (classe, raça, gênero) a partir da análise de como o capitalismo organiza o tecido de vida permite, portanto, articular problemas que eram vistos como distantes” (Arbarotti & Reis, 2022, p. 53).

         Nessa mesma via, o estabelecimento do status humano para o meio ambiente em algumas localidades no Brasil, assim como a previsão de um Estado Pluriétnico, no Equador e na Bolívia, sinaliza para a instigação dessa conquista jurídica do meio ambiente e que, pela lógica, beneficia à humanidade em sua sobrevida.

         Ensinarmos isso, o básico sobre direitos humanos fundamentais, a começar pela sobrevida do Planeta Terra – do qual somos absolutamente dependentes e também os seus priores agressores –, é o início de uma Educação Constitucional com amparo no conhecimento advindo das leituras iniciais da Carta Política de 1988, bem como já traríamos uma base empírica (realista, concreta) tanto acerca do Capitalismo de Risco quanto sobre iniciativas (de fundamento crítico) no tocante ao enfrentamento desse mesmo estágio disruptivo do capital, especialmente no século XXI.

         Com o andamento dessas discussões, numa fase um pouco a posteriori – em que teoria e prática jurídico-constitucional já estivessem mais alicerçadas –, poderíamos trazer outras reflexões alinhadas ao tema ambiental: tanto no aspecto da conservação, restauração, prevenção, quanto sobre o maior significado que obtemos lendo o artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (CF88). Neste ponto, estaríamos diante de uma discussão constitucional clássica, que é o chamado Estado Ambiental.

         Com mais algum prosseguimento, nossas conversas trariam os “povos brasileiros” para dentro do meio ambiente e nos atariam ao próprio ambiente político e econômico. O exemplo mais claro aqui seria o tal Marco Regulatório, esse que pretendia expulsar os povos originários das terras nativas e ocupadas desde sempre, a fim de se assegurar os interesses avidamente depreciativos do agronegócio, do extrativismo ilegal e imoral das reservas naturais, os garimpos poluidores com mercúrio da água que bebemos.

         Ainda neste recorte, avançaríamos para o ingresso da questão racial – indígena e negra no Brasil – uma vez que as “reformas” ao atual Marco Regulatório (piorando-se o que sempre foi muito ruim, na teleologia e na epistemologia) atingiriam as populações indígenas em cheio, mas também os quilombolas em seus assentamentos praticamente seculares[5]. É evidente que o Marco Temporal visava atacar em nulidade os marcos do Processo Civilizatório (artigo 215 da CF88[6]).

Neste sentido mais tecnicista que deriva dos aportes da Ciência da CF88, inferimos que a aposta no Processo Civilizatório (art. 215, §1º, da CF88) rechaça de plano qualquer postura negacionista e amparada em pensamento anti-ciência, bem como recusa-se qualquer retrocesso sócio-cultural.

A Constituição estatui que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, destacadamente as populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional (Silva, 2016, p. 860 – grifo nosso). 

Reafirmamos que o pertencimento da cultura no Processo Civilizatório é uma constante, bem como o fato de que o pensamento negacionista não tem acolhimento na CF88, especialmente no escopo da formação cultural, como bem interpretou o STF:

Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as procidências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao gênero [arts. 23, V, 205, 208, 215 e 217[7], § 3º, da CF]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. O direito ao acesso à cultura, ao esporte ao lazer são meios complementares a formação dos estudantes (STF, ADIn 1.950, rel. Min. Eros Grau, Pleno, j. 03.11.2005). 

Assim, reafirma-se o preceito disposto no art. 215, § 1º, alocado no guarda-chuva civilizatório da Carta Política: “Dificilmente um projeto de justiça social para a nação brasileira terá sucesso se não for culturalmente aceito. Os objetivos e fundamentos estipulados na Constituição (cf. arts. 1º e 3º) projetam a identidade cultural do futuro” (Medina, 2014, p. 708).

         O voto a seguir é extenso, mas absolutamente condizente nesse Arranjo Constitucional civilizatório em que devemos pensar de modo articulado tanto a cultura inclusiva, quanto a preservação do meio ambiente e o reconhecimento do Direito Originário (como nomos da vida indígena) – e para termos clareza do quanto regredimos no Processo Civilizatório, pois até os manguezais estão ameaçados pelo Poder Público[8]:

·        Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. 10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art.  da Constituição Federal[9], assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena. 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS [...] 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do Sol". 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem "necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnico-indígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal) [...] Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas [...] 12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). 13. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em "bolsões", "ilhas", "blocos" ou "clusters", a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio). (...)” (Pet 3388, Relator (a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212-01 PP-00049 – grifo nosso).

 

Essa prescrição está absolutamente de acordo com o referido art. 23, VI e VII, bem como com o art. 225 da CF88: a preservação do meio ambiente se desloca exatamente para o coração da CF88, onde se encontram a alma, o espírito, o xamã dos povos indígenas – o que se deslinda a partir do art. 231 da CF88.

Se o (e)leitor não consegue ler a Demarcação Constitucional, por óbvia, do Processo Civilizatório, do ser, então, podemos concluir que o problema não é mais de hermenêutica, mas sim de natureza ética. Pois, é no sentido emancipatório e alinhado ao Processo Civilizatório que se deve ler a CF88; sobretudo, o capítulo destinado ao Processo Civilizatório – e ao meio ambiente e aos indígenas (CAPÍTULO VIII).

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. (grifo nosso).

 Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (grifo nosso). 

Vê-se claramente que se instituiu constitucionalmente os indígenas como “legítimos” para interpelar por seus direitos e até interpor contra o Estado e a chamada sociedade nacional (art. 232).

Internamente, devastamos a Floresta Amazônica com a desculpa do agronegócio e sem a culpa jurídica (na verdade dolo) porque a Bancada BBB é uma das mais poderosas (ricas) do Congresso Nacional. No plano global, corremos o risco de ter um planeta de plástico[10]. Em 2020, a queimada do Pantanal é iniciativa criminosa para se ampliar a área de pasto – até o Poder Público chegou a esta conclusão intempestiva[11].

Mais do que oportuno, sempre é necessário indagar o porquê do art. 225 da CF88 não ter protegido o cerrado, a caatinga e os pampas. Atualmente, os três deparam-se com um verdadeiro Estado de Emergência Ambiental. O cerrado, já em 1988, estava na mira do agronegócio, especialmente com a exploração da soja.

A caatinga, enquanto esteve sob a exploração tradicional, familiar, para obtenção de lenha e caça de subsistência, conseguiu se recuperar; porém, quando passou a produzir carvão conheceu a extração em escala e aí teve início o processo de desertificação.

Com os pampas gaúchos o processo de desertificação não é diferente e, neste caso, não se obteve resguardo constitucional por força da indústria da pecuária. Nas três situações, a força do capital falou mais alto do que os princípios ambientais constitucionais. E, nos três, a interposição de gravidades ambientais e sociais implicam nas condições mínimas do Estado de Emergência Ambiental.

Afirmamos que a Política é o eixo essencial, fulcral, do meio ambiente construído pela cultura em que se (trans)forma a sociabilidade humana. Realmente, o caldo entornou[12], mas foi por meio de genocídio programado, nesta fase do Necrofascismo de 2020. É desse modo que pensamos uma síntese de nós mesmos.

O que foi o Brasil em 2021/2022? Estado de Exceção, Estado Militar, Estado Paralelo? Há definição que satisfaça um pesquisador sério, sem se considerar as veleidades, afinidades eletivas ou ideologias – mesmo aquelas que se inclinam pela condução do Princípio Democrático como orquestração do Processo Civilizatório?

Se observamos, já de início o Objeto Positivo da CF88 – meios de inclusão, autonomia, participação que expandam a teleologia –, de outro modo, é importante reconhecer que há fatores que são o antípoda daquilo que propugnamos aqui: a negação ou objetivos negativos opostos à Carta Política, à Polis, à cidadania, à democracia, aos direitos humanos.

Para responder tais perguntas, vamos retroceder e compreender o direito no Estado de Sítio Político.

 

Do Golpe de Estado ao Estado de não-Direito 

O poder traz materialidade ao direito, apesar de negá-lo, pois esta negação é transitória e instrumental, e não da ordem da consecução prática. E isto leva a crer que a “essência manifesta” do direito é mesmo o poder. Pode-se dizer que o direito se afirma ao se auto-excluir, exatamente porque sua essência é o poder e ao se auto-excluir (o direito) deixa transparecer seu núcleo quente: o poder. E isto faz do poder, o soberano, e da lei o seu castelo: “É precisamente o soberano quem é capaz de atribuir força de lei à vida, ao puro poder, que é capaz de impor a fé, a fé absoluta em seu monopólio sem lei [...] A soberania é uma potência radical, uma vontade de ampliação de possibilidades” (Ghetti, 2006, p. 294-295 – grifo nosso).

Em resumo, como se vê na citação, “o direito é o puro poder”. Esta luta do Estado contra a sociedade, receberá o nome já tornado clássico de Estado de Sítio Político. Conceitualmente, Estado de Sítio significa um regime jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente submetida. As circunstâncias perturbadoras que costumam dar lugar a tal situação são geralmente de ordem política, podendo também advir de acontecimentos naturais, como terremotos, epidemias[13].

O Estado de Sítio pode resultar em simples “medidas de polícia” (por exemplo: suspensão de reuniões) ou outras medidas cautelares. O Estado de Sítio assume configurações diversas, mediante as condições reais em que tem lugar: distinguem-se sobretudo os casos de guerra explícita (externa ou guerra civil) de outras situações de emergência interna (até mesmo de ordem econômica: “estado de emergência econômica”).

Os problemas de Estado de Sítio se inserem na questão mais vasta dos poderes de guerra, enquanto que a ideia de Estado de Sítio civil ainda carece de uma referência melhor apostada. Nos ordenamentos anglo-saxões, por exemplo, não há diferenças claras quanto aos tipos de Estado de Sítio bélico e civil. Por isso, têm-se consagrado a expressão Estado de Sítio Político, uma vez que a simples soma do substantivo com o adjetivo já revelaria seu sentido mais recôndito: há suspensão dos direitos em nome do poder (Bobbio, 2000).

O Estado de Sítio Político é, portanto, uma atualização desse antigo lastro da soberania do Estado (supostamente, legitimado, sob a Razão de Estado): em virtude da rigidez do poder, não há o gozo dos direitos (é o que veremos ao longo do trabalho). Com a perda da autoridade ocorre que se movimentam forças subterrâneas que buscam impor o poder soberano de forma incontestável, agindo com poderes de exceção.

O golpe de Estado (que se intentou protagonizar em 8 de janeiro de 2023, por exemplo) nada mais é do que o Estado de Sítio clássico fora (além) dos limites jurídicos (judiciais) estabelecidos anteriormente. Às vezes, pode ocorrer de, contra o golpe de Estado (ou, mais acertadamente, a guerra civil), impor-se o Estado de Exceção – a maneira absolutista de se impor a Razão de Estado: “A sociedade da informação nos transformou em eternos suspeitos” (Dupas, 17/03/2007). O que ainda permitiria pensar que o Estado absorve formas de poder ocasionalmente, oportunamente não legais.

Na atualidade do século XXI, os golpes de Estado, denominados golpes institucionais, a exemplo do que perpetraram Egito e Paraguai (ambos em 2012), retomam temas políticos clássicos. Mais do que um problema jurídico, se cometidos dentro ou fora do Estado de Direito, implicam envolvimentos políticos muito mais profundos: uma intrínseca relação entre a Razão de Estado e o capital (não é a toa que os EUA enviam bilhões de dólares anualmente ao Egito: interesse estratégico).

O golpe militar perpetrado no Egito, com a deposição do presidente Mohamed Mursi ligado à Irmandade Muçulmana, é um típico de Golpe de Estado militarizado com apoio popular. No Egito, é claro, há muitas variáveis e nuances a serem analisadas, mas é certo que o golpe serviu para abalar a incidência de movimentos muçulmanos mais radicais e intransigentes – um golpe em defesa do Estado Laico. Em todo caso, assim como em muitos outros casos, trata-se de Golpe de Estado que serve como antessala para impor-se um Estado de Sítio Político.

No golpe institucional, tal qual ocorre desde a chamada Comuna de Paris, em 1791, e mais recentemente no Paraguai (e no Brasil, de 2016), esquece-se que o medium-direito precisa ser entendido como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/enfrentar o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais, exigindo-se muito mais legitimidade do que a mera legalização.

O Estado de Sítio tem uma origem eminentemente política, como analisara o pensador Karl Marx (1978) a partir de 1848, na França e na Europa insurreta contra a Comuna de Paris. Sua forma jurídica foi instituída na Revolução Francesa, num decreto de 8 de julho de 1791; portanto, na análise de Marx, já era instrumento jurídico de defesa do poder absoluto. O nazismo é outro grande exemplo desse instituto, perdurando por 12 anos. O ponto fulcral é a referência ao uso constante dos meios de exceção e do chamado Estado de Emergência. Neste caso, trata-se de emergência política e, no nazismo, de emergência econômica, pois foi a crise econômica que serviu de justificativa à Solução Final.

Esta mesma modalidade de regimes de exceção ainda se expressam como Estado de Emergência Econômica, como visto em países de terceiro mundo, e a exemplo da guerra civil no Mali, país africano. Neste caso, pode-se ter na economia a justificativa para a decretação da suspensão dos direitos democráticos fundamentais. Contudo, conceitualmente, Estado de Sítio significa um regime jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente submetida à negação de direitos fundamentais.

As circunstâncias perturbadoras que costumam dar lugar a tal situação são geralmente de ordem política, podendo também advir de acontecimentos naturais, como terremotos, epidemias, pandemias. Ainda que aqui o mais correto fosse denominá-lo de Estado de Emergência, como condição análoga à “calamidade pública”. O Estado de Sítio pode resultar em simples “medidas de polícia” (por exemplo: suspensão de reuniões) ou em soluções cautelares mais contundentes, como na “suspensão de direitos civis e políticos”.

O Estado de Sítio assume configurações diversas, mediante as condições reais em que tenha lugar: distinguem-se, sobretudo, os casos de guerra explícita (externa ou guerra civil) de outras situações de emergência interna. Não se confunda, entretanto, com o chamado estado de alerta, decretado pela Defesa Civil em casos graves de “intempéries” ou outros problemas de origem natural e que ameacem seriamente à população civil. E muito menos se faça referência do lockdown, interposto na maior parte do mundo, diante da pandemia da COVID-19 – e mesmo que o filósofo italiano Giorgio Agamben (2004) o tenha sublinhado como Estado de Exceção.

Na prática, as diferenças entre o Estado de Sítio Político e o Estado de Necessidade (e que deveriam ser de espécie e de gênero) acabaram reduzidas ao grau – no lugar da qualidade, a “quantidade de tempo” em que os direitos fundamentais sofrem de irrestrita mitigação. É como se a Razão de Estado e o Estado de Exceção fossem o lado quente e o lado frio do poder, respectivamente.

Em nome da salvaguarda do Estado, vê-se a sociedade ser vitimada em suas garantias básicas e sem “garantia ao próprio direito à vida”. O Estado de Sítio Político será a espécie, o próprio processo de transformação da Razão de Estado. Os efeitos naturais são intencionalmente politizados e assim o Estado de Sítio Político acaba pouco diferenciado dessa condição de necessidade: a calamidade natural se avizinha da calamidade política. Historicamente, a necessidade foi “naturalizada”, naturalmente transformada em Estado de Necessidade.

Por sua vez, a Razão de Estado está presente na formação da primeira modernidade, nos séculos XV e XVI, sob a justificativa das lutas pela autoconservação – de lá para cá, para se debelar a guerra civil foi instituído um “novo” regime jurídico em que se nega, exatamente, o direito. Na versão mais atualizada, o Estado de Exceção tanto se vê nos séculos XVIII e XIX, quanto é válido o sentido adotado contemporaneamente do golpe institucional e na ditadura militar egípcia.

O Estado de Sítio Político, como Estado de Exceção, é, portanto, uma atualização desse antigo lastro da soberania do Estado: em virtude da rigidez do poder, não há gozo e fruição de direitos essenciais. Com a perda da autoridade ocorre que se movimentam forças subterrâneas que buscam impor o poder soberano de forma incontestável, agindo com poderes de exceção.

O Golpe de Estado nada mais é do que o Estado de Sítio clássico fora (além) dos limites jurídicos (judiciais) estabelecidos anteriormente. A possível controvérsia jurídica reside no fato de que, no Estado de Sítio Político, é a política que impõe claramente a exceção como violação da liberdade, da democracia, da própria segurança jurídica de todo cidadão. Do ponto de vista institucional hegemônico assim se opera a transformação da Razão de Estado na legalidade pretendida ao Estado de Exceção.

Por isso, diferentemente do Golpe de Estado, o Estado de Sítio Político não é uma ilegalidade, uma vez que tem previsão legal. Nunca é demais lembrar que, uma das máscaras mais comuns ao Estado de Sítio Político é exatamente a alegação de que se age com poder brutal, em decorrência das necessidades de preservação do poder e do status quo e, por fim, como tábua de salvação amparada pelo ordenamento jurídico.

 

Terrorismo de Estado e democídio 

Para especialistas, trata-se de uma nova doutrina, apelidada de “guerra de pressão direcionada” (com o intuito de deixar o adversário paralisado, utilizando a tática do Titan Rain: um programa especial conhecido como “Chuva de Titã”). A tática invasiva tem fases elaboradas, tipo passo a passo:

1)       Escolha de alvo: hackers identificam computadores suscetíveis à invasão. Os EUA são o alvo central por causa de seu próprio “gigantismo”: operam 3,5 milhões de computadores em 65 países.

2)       Formas de ataque: a) força brutahackers invadem os sistemas e descobrem as senhas centrais; b) oportunistas – aproveitam-se de falhas já existentes com o intuito de invadir os sistemas. Costumam invadir computadores periféricos meramente administrativos para, em seguida, aproveitar de suas deficiências e pular aos demais que articulam a cadeia de comando.

3)       Objetivo: não apenas invadir os sistemas para “roubar” dados, mas principalmente para levar esses sistemas ao colapso. Esse hacker altamente especializado infecta e procura adquirir o controle de milhares ou milhões de computadores domésticos, “escravizando-os”, para que sejam redirecionados ao alvo central do ataque. Esta força multiplicada, aliada a programas invasivos de última geração, sobrecarregam o sistema e o levam à falência das operações.

4)       Consequências: parte da rede do Pentágono travou por sete dias, numa “batalha silenciosa” que durou meses. A meta principal tem duplo efeito: obter informações e destruir comunicações.

5)       Doutrina: esta modalidade de guerra pela hegemonia da Razão de Estado está montada na surpresa e na capacidade inicial de invadir e neutralizar bancos de dados. Em seguida, procura-se impedir o funcionamento dos recursos de comando e controle, criando insegurança e decepção na população, ante um “inimigo invisível”.

6)       Suposições: acredita-se que algo em torno de 120 países estejam envoltos na tentativa de avançar nesta modalidade de “guerra cibernética” (com destaque também para Arábia Saudita que não “criminaliza” a ação hacker). A China espera dominar a guerra no ciberespaço em 2050[14], tendo criado um “exército especializado”[15] (Norton-Taylor, 06/09/2007).

7)       A Guerra do Futuro: “Pense bem: um dia os 11 milhões de clientes dos bancos de Londres acordam e encontram suas contas esvaziadas. Horas depois, é a energia que desaparece sem explicação. No fim da tarde será o caos – e a batalha terá sido vencida sem um só tiro” (Godoy, 06/09/2007).

8)       Razão de Estado ou ciberterrorismo: além dos tradicionais ataques e contra-ataques, dos segredos de Estado, do próprio terrorismo de Estado, há a eterna mania persecutória (por vezes anti-industrialista: o que é irônico) e amplamente baseada no conservadorismo (ou anti-intelectualismo). No fundo, seguem um resumo do pensamento fascista: o futuro precisa de ordem e o presente de controle[16]. Porém, já em Mianmá, a junta militar iria se deparar com uma avalanche de “contra-ataques tecnológicos” e que fez a base do terror tremer de medo. Pois, não lidava mais com o mundo antigo, como na revolta de 1988, em que os monges massacrados não tiveram repercussão e apoio internacional:

Costumava ser mais fácil: fechar as fronteiras, montar os bloqueios de estrada, parar os trens, cortar as linhas telefônicas e então reprimir seu povo com impunidade [...] Na semana passada, quando um soldado atirou e matou um repórter japonês, Kenji Nagai, alguém no alto de um prédio filmou a cena [...] Elas enviaram mensagens de texto SMS, e-mails e postaram em blogs diários, segundo alguns dos grupos de exilados que receberam as mensagens. Elas postaram anotações no Facebook, o site de rede social. Elas enviaram mensagens minúsculas em e-cards. Elas atualizaram a enciclopédia online Wikipedia. As pessoas também usaram versões de Internet de "pombos-correio" - os repórteres mensageiros que no passado transportavam filmes e notícias, entregando o material para embaixadas ou organizações não-governamentais com acesso a conexões de satélite [...] E então, na sexta-feira, o fluxo de imagens parou [...] "Eles finalmente perceberam que este era seu maior inimigo e o abateram", disse Aung Zaw [...] Seu site foi atacado por um vírus, cujo momento sugere a possibilidade de que o governo militar conte com alguns poucos hackers habilidosos em suas fileiras [...] Mas em uma batalha pela alma de seu país e pelo apoio do mundo, a junta está perdendo mesmo enquanto vence, disse Xiao Qiang, diretor do Projeto Internet China e um professor adjunto da Escola de Doutorado em Jornalismo da Universidade da Califórnia, em Berkeley [...] "Ao derrubarem a Internet eles mostraram estar errados, que têm algo a esconder", ele disse. "Nesta frente, mesmo um blog desativado é um blog poderoso. Mesmo o silêncio na Internet é uma mensagem poderosa" [...] "Hoje, todo cidadão é um correspondente de guerra", disse Phillip Knightley, autor de "The First Casualty" (a primeira baixa), uma história do jornalismo de guerra que começa com as cartas enviadas por soldados na Criméia, nos anos 1850, à "guerra na sala de estar" no Vietnã nos anos 70, quando pessoas puderam assistir uma guerra pela televisão pela primeira vez. "Os celulares com vídeo com capacidade de transmissão possibilitaram a qualquer um noticiar uma guerra", ele escreveu em uma entrevista por e-mail. "Basta apenas estar lá"[17]. 

9)       Mundo da vida: a sensação é de que realmente vivemos uma espécie avançada, sofisticada, com regras, lógicas sedutoras que nos levam direto à “colonização do mundo da vida”, com extrema xenofobia, uma eterna sensação de vigilância e castração.

10)    Terrorismo de Estado: a Razão de Estado, alegando “a questão da segurança nacional” tanto usa das armas convencionais, como expõe táticas e estratégias de “guerrilha cibernética” em seu menu: “plantar dúvidas e falta de confiança”. O mais interessante é que isto é descrito como um achado da América, de uma “inteligência maquínica superior” aos pobres hackers e “guerrilheiros virtuais do Islã”, como se o excesso de confiança não fosse uma vulnerabilidade[18]. Há uma guerra de quarta geração, em que se debatem o Império e as forças contra-hegemônicas, em luta acesa por sobrevivência econômica e ideológica.

Neste sentido, também se pode falar de um verdadeiro cardápio de novas tipificações sociais excludentes e punitivas, bem como de verdadeiro atentado aos princípios do Estado Democrático de Direito.

 

Golpe institucional 

Quando há confissão de “golpe dentro do golpe” – no pós-2016, desembocando em 2018 –, especialmente porque o próprio beneficiário declara as benesses recebidas pelo Poder Judiciário; mormente o que se convencionou chamar de Operação Lava Jato. Neste caso, não só não-foi imparcial, como o Judiciário escolheu deliberadamente uma frente política, literalmente, tomou partido: “É evidente o ativismo político do Judiciário ... A Lava Jato tirou o Lula da eleição”[19]. Ressalte-se que isto foi declarado por alguém que se beneficiou do procedimento político e antijurídico que antecipou o resultado da eleição de 2018. Não será, por óbvio, por outro motivo que parcelas significativas do Judiciário se amotinam contra cursos de formação social, sobretudo, quando vinculados à “ideologia” antirracista e antifascista[20].

A CF88 trouxe autonomia ao Judiciário e ao Ministério Público, estadual ou federal. Essa autonomia é essencial ao Estado de Direito; no entanto, sempre nos cabe repetir a máxima de que “autonomia sem auditoria é autocracia” (Martinez, 2019). No Estado de Direito, a auditoria dos três poderes e de seus agentes políticos e servidores públicos é uma obrigação moral republicana e decorre dos Princípios Gerais do Direito. Logo, ninguém está acima da lei, menos ainda a magistratura e o MP, especialmente se recordarmos que o STF é o guardião da Constituição.

O fato de termos milhares de juízes só nos serve de diagnóstico da injustiça social e é revelador do fato de que parte ativa e significativa do problema social é de ordem política, ética e econômica, ou por derivação da luta de classes, se assim preferirmos. Afinal, como atuam parcelas significativas dos vários segmentos da magistratura, neste que é um dos países mais injustos do mundo[21]?

A resposta deveria ser encontrada na CF88, no chamamento nacional para que a sociedade passasse a exigir aplicações e interpretações societais da lei e não como se vê, salvo exceções, tendentes à defesa do direito injusto, patrimonial. As reformas administrativas, por exemplo, não podem excluir de seu alcance os militares e a magistratura, atuando o Executivo como se o Estado Democrático de Direitos Fundamentais tivesse sido sequestrado pelo capital de barbárie do século XXI. Esta, sem dúvida, é uma forma de corruptela do Direito Justo e que, infelizmente, muitos e muitas ainda não se dão conta.

Em quase todo o mundo “civilizado”, pode-se apontar uma certa promiscuidade entre poder público e grupos criminosos. Todos os exemplos de “máfias” poderiam ser aqui alegados — tendo-se como símbolo a conhecida Operação Mãos Limpas, conduzida pelo juiz italiano Giovanni Falcone:

Resume-se em poucas frases: devemo-nos resignar a fazer investigações excessivas, a recolher um máximo de informações, úteis e inúteis, a serem colhidas largamente no início; depois, logo que se têm à sua frente os pedaços do puzzle, então, se pode construir uma estratégia [...] O nosso trabalho de magistrado consiste, portanto, em possuir também uma importante grade de interpretação dos sinais; para um palermitano como eu, isso faz parte da ordem natural das coisas (Falcone, 1993, p. 42-43). 

Isto não evidencia a análise de que temos a erupção constante de interesses próprios a um regime de castas sociais[22] – e, o que talvez ainda seja pior, com a expressão ainda mais ativa de estratos sociais dentro da casta[23]? Afinal, por que razão – a não ser a clivagem da divisão de classes sociais – 38 (trinta e oito) milhões de pessoas, dentre os mais pobres, ficaram sem acesso ao auxílio emergencial durante a pandemia COVID-19[24]?

Do mesmo modo, não se explica pela lógica mediana que advogadas e advogados possam defender outro regime político que não seja a democracia, notadamente porque na autocracia não vigora o Princípio do Contraditório. Logo, sem democracia não há liberdade e direito à defesa, e nem função social para a advocacia.

É importante destacar que a CF88, do artigo 101 ao 126, regula e disciplina o Poder Judiciário – exatamente para que exista fonte legal de disciplinarização e controle democrático, sobre erros reiterados e abusos, e a fim de que os tribunais de exceção sejam absolutamente refugados, tal como previsto no art. 5º, XXXVII: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Do mesmo modo é fundamental assinar, especialmente nesta longa pandemia, algumas das principais funções e atribuições do Ministério Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. 

No que também corresponde à advocacia, como binômio de representação do processo jurisdicional – ressaltando-se que suas prerrogativas são amparadas pela CF88:

 

SEÇÃO III

DA ADVOCACIA

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. 

Isto já se anunciava em obra específica dedicada ao(à) Advogado(a), assegurando-se suas prerrogativas funcionais. Porém, ironicamente, teremos dois “poréns”:

1.   Advogados e advogadas que defendem os regimes de exceção e autoritários, desconsideram a lógica rudimentar, uma vez que sem democracia não há contraditório. Afinal, a ninguém será ofertada a ampla defesa se nem mesmo a liberdade puder ser defendida e, assim, o defensor do Direito e das garantias vê-se sem função jurisdicional ou emprego.

2.   Chega a ser cínica a alegação de que a ninguém será permitido alegar ignorância da lei. Como já dizia Henri Robert (1997), no início do século: “É ali, diante dessa ignorância, por vezes desconcertante, das mais elementares noções jurídicas, que se pode medir bem toda a cruel ironia deste axioma famoso de nosso direito...” (p. 72). 

A lição, muito básica, ainda indica que devemos conviver no ambiente político, a fim de vivermos como animais políticos (Aristóteles, 2001) e não como abutres da República. Do mesmo modo, a educação será a base para se manter o Estado coeso: “O mais importante meio para a conservação dos Estados, mas também o mais negligenciado, é fazer combinarem a educação dos cidadãos e a Constituição” (Aristóteles, 1991, p. 218).

No plano técnico-teórico, ainda de acordo com o exemplar caso brasileiro, em que a maioria absoluta dos eleitores está condicionada à faixa que se denomina de analfabetos funcionais e uma outra grande soma é constituída de analfabetos totais, como exigir o reconhecimento da lei? Ou melhor, como se pode esperar o reconhecimento da lei sem educação? E mais: é possível haver Direito sem bom senso?

A própria ideia de justiça, como princípio de imparcialidade, de regulação do poder e do poder da comunicação, ainda parece trazer desde a formação de seus agentes ou operadores do direito a ideia de que o próprio poder oprime, soma, e não liberta, comunica ou divide.

Temos dois casos exemplares, como rescaldo do regime militar que se inseriram como princípio de exceção, no miolo do Objeto Positivo da CF88: os capítulos das Forças Armadas e da Segurança Pública. Assim, vejamos onde se coloca o Objeto Positivo – neste caso, afirmado como compartilhamento entre Direito e corresponsabilidade pública, sobressaindo-se neste negrito do caput da Segurança Pública:

·        Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos (grifo nosso). 

Agora, vejamos o princípio da exceção que se incrustou negativamente ao mesmo Objetivo Negativo do referido artigo 144 e também sublinhado:

§ 6º As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis e as polícias penais estaduais e distrital, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.   

Note-se que se trata de emenda constitucional (no 104) de 2019, impositora de clara subjugação da Segurança Pública como “força auxiliar do Exército”, em evidente alusão ao conteúdo repressivo e beligerante das polícias – em oposição à necessária e pretendida prevenção e pacificação social.

 

Segurança Pública não é segurança nacional 

Podemos traçar os dados essenciais do conceito/realidade da segurança pública que se encontra, por exemplo, no Japão (Polícia Comunitária), nos EUA (Estado Penal: criminalização social associada ao terrorismo social), no México (Estado Militarizado: segurança pública = segurança nacional), no Brasil (Estado Paralelo: violência social, crime organizado). Também relacionamos com a formação de uma base miliciana de poder, sob uma total ausência de ideal que se requer para a segurança pública, como equilíbrio social para a convivência e interação social mínimas.

A segurança tem sido vista como resposta imediata à violência social (e suas formas de criminalidade) e, por isso, não raras são as vezes em que a força física é destacada como remédio para o controle social. A crescente violência na vida social e a resposta de força do poder público tem como desenvolvimento imediato a militarização da sociedade e a própria insegurança.

Por sua vez, a militarização provoca um estranhamento entre Estado e sociedade, na confluência da crise social e sistêmica (a violência que ameaça a vida, no espaço público e privado) e de uma crise institucional: o Estado, como instituição per si, não é capaz de produzir hegemonia social, vê-se cada vez mais questionado, sobretudo quanto à segurança, além de tratar o controle social unicamente com a receita da violência institucional.

O que outrora fora atributo exclusivo do Estado, a força física garantidora da Razão de Estado, é hoje disputada por atividades privadas em empresas de segurança particular e pelo crime organizado (este que não deixa de ser uma empresa organizada), pois ambas se baseiam na rentabilidade, com contabilidade capitalista por “partida dobrada”.

Na lógica da partida dobrada, a violência gera violência, com duas formas empresariais nas pontas da produção social da insegurança. Porém, não é difícil de se ver que se trata de uma soma-zero, porque não há lucro, aproveitamento, enriquecimento das formas de vida social. Esta lógica econômica também é provocadora da crise de civilização, como negação das formas tradicionais da vida social, e ainda esboça uma parte significativa do terrorismo social.

Devido à crescente pressão social gerada pela quebra da hegemonia (controle social listado pelo consenso) e do monopólio da força física, o Estado perde base na própria soberania. Esta ameaça à Razão de Estado, à medida que a soberania não é mais una e indivisível, põe em alerta todas as reservas de poder. Este uso excessivo dos estertores do poder como violência vê-se claro na associação entre segurança pública e segurança nacional.

O Estado Penal responde empregando este conjunto de força física, como se a ação policial se voltasse ao combate de verdadeiros inimigos de um Estado em guerra. Então, pela lógica da militarização social também não é difícil perceber que o criminoso é recepcionado pelo tipo penal do inimigo público. O direito penal é cada vez mais um direito militar e o crime organizado recebe o status e o tratamento estratégico de guerras assimétricas das ruas.

         Uma forma de racionalidade social, embasada na legitimidade (reconhecimento) e na autonomia (consciência, engajamento e formulação social de alternativas “dentro do sistema”) pode ser um antídoto ao moto-contínuo de que “a violência gera violência”. A mudança não pode ser apenas “por dentro” do sistema, mas sobretudo “por fora”, com a entrada em cena de novos atores sociais que destruam e construam outros sentidos e significados. Como alertava o pensador:

O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: desejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que todo ódio [...] O caráter destrutivo está no front dos tradicionalistas [...] O caráter destrutivo não vê nada de duradouro [...] O que existe ele converte em ruínas, não por causa das ruínas, mas por causa do caminho que passa através delas (Benjamin, 1987, p. 236-7). 

Segurança, portanto, não é o antípoda da criminalidade social, mas sim da violência social/institucional. A segurança será construída a partir das ruínas que produzimos até hoje. Esse posicionamento subserviente aos princípios de exceção e negação do Objeto Positivo da CF88, por sua vez, ainda se afirma como retrocesso do Processo Civilizatório. Pois, além de ser óbvio que se institui como controle e repressão – em contradição às características de prevenção, ainda se afirma que o militarismo é detentor de um poder acumulado, somando-se as polícias e os corpos de bombeiros aos meios de guerra (talvez de guerra civil).

Ainda é curioso pensarmos que, historicamente, desde a Grécia antiga e sua Polis, a polícia se vestia como Politia, como desdobramento de politikos (política), em alusão à formação de grupos sociais incluídos e participativos. Pelo fato de que a polícia nada mais era do que uma função exercida pelos mesmos membros da Polis, magistrados ou políticos. Portanto, a Política, a Polis e a Politia não se desvinculavam.

O que não está distante dos romanos quando nomeavam a civitas. Nem mesmo para Maquiavel (2006) havia junção de controle social, repressão e forças armadas – aliás, é por isso que defende a instituição de formas armadas regulares. Naquele contexto, chamadas de milícias – e que não se referem às nossas, por óbvio. E é por isso que em muitos países (Turquia, por exemplo), a polícia é chamada de Polis.

Essa contramão ainda surgiria no capítulo destinado às Forças Armadas – contramão inclusive diante das proposições de Maquiavel (2006), em seu máximo receio à Guerra Civil. Todavia, vejamos o nosso caso:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (grifo nosso). 

O grifo em itálico é, precisamente, o recorte que fomentou uma “leitura” torta, destrutiva, disruptiva dos objetivos constitucionais mais elementares – a começar pelo fato de que os propósitos e fundamentos da Constituição Cidadã não coadunam, sob nenhuma forma, com a aniquilação da democracia e a suposta legitimação de poder das forças armadas para tomarem o poder. Em nenhum sentido, a CF88 pode ser lida como autorização para a transmutação do poder civil (legitimado) em poder militar interventor e autocrático.

Não é por acaso, portanto, que se tentou “colar” a tese de uma suposta e inaudita “intervenção militar”, como se o artigo (em péssima redação) estivesse autorizando recursos de poder de exceção às forças armadas para atuarem como se fossem um “poder moderador”, intreventor. É certo que o analfabetismo disfuncional iria colaborar com essa “interpretação” negativa (disruptiva) do Objeto Positivo da CF88, no entanto, o fato mais grave se viu na confecção de pareceres de juristas renovados, em defesa dessa invocação de “poder moderador”.

Ainda contabilizemos a GLO (Garantia de lei e ordem) e sublinhemos que a péssima redação (nebulosa, imprecisa, tal qual “crime penal em branco”), deixa entreaberto o chamamento e manuseio das forças de exceção por qualquer um dos poderes instituídos e quiçá por “iniciativa” de uma das referidas Forças Armadas (sabe-se hoje que, em 2022, a marinha cumpriu esta missão) e que deveriam ser tuteladas e não realçadas como protagonistas dos meios e dos recursos de exceção.

A diferença entre os dois abusos inseridos contra o Objeto Positivo da CF88, está em que:

1.   Na Segurança Pública (art. 144), o inciso 6º demove o esforço do caput, invertendo-se seu significado e real amplitude: enquanto o caput ressalta o Princípio da Corresponsabilidade social e pública (pacificação), envolvendo-se direitos e deveres sob a ótica da Prevenção, o inciso 6º rege-se pela subordinação aos meios de guerra e de repressão.

2.   Na concepção do artigo 142, das Forças Armadas, o próprio Objeto Positivo da CF88 é inexistente, vendo-se a abdução do Direito e das garantias institucionais pelo emprego dos recursos de exceção. Portanto, a civitas se submete a uma, igualmente nebulosa, Razão de Estado. Não seria demais a observação de que o regime de exceção de 1964 deixou suas pegadas de Stasi em 1988: uma exceção entre a guerra civil e a força do fórceps, e a polícia controlativa dos espaços vitais do mundo da vida (a polícia da ex Alemanha Oriental). Esses, por fim, são alguns casos de fins de meios de exceção, como analisa Agamben (2015). 

Ou seja, nunca acabará a necessidade de poder (e nem do poder em se arvorar em mais poder) como forma eficaz de organização social e, assim, o Estado – identificado como a fonte precípua ou “única” do poder – acaba consagrado como também inevitável.

1) A stasis[25] não provém da oikos, não é uma “guerra em família”, mas é parte de um dispositivo que funciona de forma idêntica ao estado de exceção. Como, no estado de exceção, a zoe, a vida natural, é incluída na ordem jurídico-política através da sua exclusão, de modo análogo através da stasis a oikos é politizada e incluída na polis. 2) O que se encontra em jogo, então, na relação entre oikos e polis é a constituição de uma zona de indiferença na qual o político e o impolítico, o fora e o dentro, coincidem. Devemos, portanto, conceber a política como um campo de força no qual os extremos são a oikos e a polis: entre eles a guerra civil assinala o limiar de transição através do qual o impolítico se politiza e o político se “economiciza” (Agamben, 2015, p. 30 – grifo nosso). 

Em sentido correlato, se a vida natural é incluída na ordem jurídico-política, pode-se concluir que a necessidade (do próprio poder) se metamorfoseia em Estado de Necessidade Política (Martinez, 2019).

Por fim, alinhamos mais uma questão cotidiana de nossa experiência do Fascismo, na pandemia de 2020/2021. Qual seja: Haverá (in)justiça se apenas atos contra o governo são passíveis de punição e de multa[26]? Do mesmo modo, se o “ não-combate” à COVID é denunciado na ONU como lesivo à Humanidade (“tragédia humanitária” [27]), por que aquele ou aquela que fazem desse diagnóstico, uma séria denúncia, devem ser intimados com base na (extinta) Lei de Segurança Nacional[28]?

 

Há um mix de terrorismo de Estado no Brasil? 

Não há lugar para pobres e trabalhadores na sociedade nacional do século XXI[29]. Quer dizer que, no Dia do Trabalhador, sob o governo que se imiscuiu de Estado, não houve regulamentação contra a exploração do trabalho escravo ou análogo[30]. Aliás, o que seria análogo à escravidão? Até hoje usamos parábolas escapistas para negar e fugir da realidade. A escravidão recalcitrante em 2021/2022 não precisa de tecnicalidades e de analogia, necessita de combate jurídico e institucional e penalidades efetivas. Para piorar a sobrecarga de negação dos espaços da vida no campo, em 2023, ainda criaram uma “CPI do MST” (naufragada que fora), com o objetivo inequívoco de criminalizar os movimentos sociais.

Alegando-se “terrorismo no campo”, procurou-se regulamentar o Terrorismo de Estado – por negar-se a regulamentar o pior dos crimes: o escravismo no século XXI. Nessa mesma antevéspera do fechamento fascista, lideranças indígenas passaram a ser investigadas pela Polícia Federal, exatamente, porque protocolaram pedido no TPI por investigações sérias acerca da Amazônia queimada[31].

         A imposição de uma irracionalidade que obriga o país a naufragar na condição de pária internacional, porque se imiscui Estado e Governo e, desse modo, condena-se o povo e não o governante, no entanto, é só o resultado, o desfecho final em que podemos dizer que o Fascismo Nacional descoloriu Max Weber (1979), no sentido de desmoronar o Estado de Direito com base na dominação racional-legal.

Os protestos populares de sábado (1º de Maio: Dia do Trabalhador), lotando praias e avenidas centrais pelo país afora, exatamente, embebidos pelo frenesi (“viva la muerte”) da negação da vida – seguindo docilmente a maquinaria estatal de desinformação: o novo coronavírus não é letal (sic) – é prova suficiente da irracionalidade do “nosso” Estado de Direito. Ou a irracionalidade política é prova, adicional, de que a exceção estatal é altamente contagiante e se converte em cultura política popular.

         Porém, numa retrospectiva, que antecede a 2012, portanto, anterior à revolta infanto-juvenil (mirim) de 2013, podemos dizer que a Modernidade Tardia não apenas confirmou o Estado de Exceção como eixo motriz da dominação racional-legal (Martinez, 2010) – na forma de um enorme e contundente estoque/aporte de poder extraordinário ao Estado de Direito (Razão de Estado) –, e capaz de se impor como golpe institucional, em 2016, bem como “desobrigou” Max Weber.

Assim, podemos ainda concluir que, se a exceção política – ou exceção à Política, pois que se ocupa a praça pública a fim de se requerer intervenção militar – é arma decisiva da sobrevivência do Poder Político (a LSN, por exemplo, é a Lei da Razão de Estado), como exceção inoculada na inconsciência política popular (brutalizada ao extremo) e, assim, foi capaz de levar um sujeito a proclamar, docilmente, nessas manifestações negativas da vida e da saúde pública, “Eu autorizo que o presidente me mate”.

         Definitivamente, o Brasil nunca conheceu o Estado de Direito Democrático; o país somente teve lampejos de uma consciência política anti-escravista; o país nunca entendeu o exercício da democracia e a fruição de seus direitos – 2013 é apenas um exemplo mais contemporâneo. Porque, definitivamente, a liberdade política não pode ser invocada em defesa do golpe institucional (2016) e muito menos a liberdade de expressão democrática será o legitimado do fim da mesma democracia (2028/2022). A democracia é um fim em si mesma e, pela lógica mais elementar, não pode ter seus meios utilizados contra si.

Apenas a lógica da exceção permite que os procedimentos se tornem mais relevantes do que os fins – a ponto de se negar o fim proposto. Afinal, é próprio da irracionalidade provocada pela exceção subverter a lógica de que “os meios concorrem para os fins”. Em palavras simples, podemos concluir dizendo que somente na exceção “os meios concorrem contra os fins propostos”, no caso, a suposta “liberdade” usada para se promover exatamente o fim da liberdade.

         As restrições, as violações, as deturpações constitucionais – a emenda da reeleição, a cláusula de barreira social designada como Reserva do Possível e muitas das seguintes, desembocando em 2021 – são aqui tratadas como deturpações constitucionais, em desalinho ao escopo e ao Princípio da Unicidade Constitucional: vide Princípio do não-Retrocesso Social e a garantia da dignidade humana.

         Por fim, neste ponto, concluímos que o Objeto Positivo e o Estado de Direito assentados na CF88 congregam a liberdade, a democracia, a dignidade, a Justiça Social, a participação popular e política constitutiva do espaço público e que, diga-se de forma absolutamente consciente, “a ninguém é conferido o direito de se negar a dignidade”. Ou seja, mais uma vez, verifica-se porque a CF88 é a maior e mais profícua Constituição enquanto Carta Política.

Tecnicamente, as violações constitucionais ora se afiguram como Golpe à Constituição (Bonavides, 2009) ora se materializam como Transmutação Constitucional. Portanto, já a partir de 1990 vemos que atacam a CF88 os que atacam a cidadania nacional. Do mesmo modo como o Núcleo Constitucional luta por se manter porquanto Carta Política: da não-suspensão de direitos políticos à inclusão de legitimados individuais e coletivos nos mecanismos de controle de constitucionalidade[32]. As exceções, algumas vislumbradas com mais facilidade, outras nem tanto, não se restringem.

 

Transmutação Inconstitucional

A CF88 como “paradigma” de uma análise de conjuntura ampliada

“utilizam”, ou invertem, a letra fria da lei para aniquilar o Espírito da Constituição 

Que formas a exceção pode assumir? Muitas, com certeza. Algumas mais sutis e outras bem embrutecidas – e tem aquelas que embrutecem a cidadania, apesar de soarem sutilezas.

Exemplo da última – e que tem se tornado um modelo adotado na Transmutação Constitucional que se abrigou na Ditadura Inconstitucional, no pós-2016 – é a ação do Judiciário interpretando (melhor dizendo, criando) leis, mas ao arrepio da própria lei.

Neste caso, o Judiciário praticamente se converte em legislador, uma vez que interpreta e aplica uma determinada lei em sentido inverso ao previsto no Espírito da Constituição. Este procedimento é adotado desde o impeachment de 2016.

         Uma dessas atuações reacendeu o priorado de 2016: em discurso de posse no TSE[33], em 2018, o ministro do STF Luís Fux alegou que lá haviam candidaturas “irregistráveis” – independentemente do curso de seus processos e do desfecho encontrado.

Neste caso, as ações de excepcionalidade que marcaram a estrutura do Golpe de 2016 reanimaram a fórmula original: a inexistência de vínculo entre materialidade e autoria no crime de responsabilidade.

Todavia, em consonância com esta interpretação (transmutação), além de não se saber se há vínculo entre materialidade e autoria nos casos pendentes e futuros do TSE – uma vez que há inocência até prova (em juízo) em contrário –, admite-se um suposto vácuo legal. Suposto apenas, porque o preenchimento é político.

Revivida a fórmula adotada em 2016, portanto, não mais se preocupam com a CF88, com os limites do que se convencionou chamar de Positivismo Constitucional. Ou seja, o juiz – na divisão dos três poderes – deveria apenas aplicar a lei, interpretando-a de acordo com a Constituição. No exemplo concreto, o Judiciário interpreta contra a Constituição Federal de 1988.

Em sua prática judicial – e que não é exatamente jurídica – o Judiciário teoriza sobre a República[34] e se utiliza de uma contabilidade “Ética” surgida com a “criminalização da Política”, para em seguida, e em desconformidade, decidir contra as mais elementares prescrições constitucionais, como a legalidade e a dignidade.

A ética que embala a Transmutação Constitucional, igualmente, independe do decurso final da aplicação do direito aos casos concretos: a subsunção é tão abstrata que evaporaram o Positivismo Constitucional.

Pois, ainda que a postura monocrática pudesse ser refeita, a mera alegação da possibilidade de se violar a CF88 já emociona o Direito Ocidental que deu origem e sustenta o Estado de Direito.

Com decisões graves contra a Política e a CF88 – proibitivas do direito político – sob o condão interpretativo (ao revés da Constituição) de um-só ou que seja de um colegiado de magistrados, e mesmo que sob a vara legal de uma possível eticidade, é fato que irregistrável esteve a representação política, a democracia participativa e o respeito ao Império da Lei.

Isto tem um nome e se chama excepticio: na forma-Estado da exceção jurídica regressiva e repressiva. Se ou quando esta evolução anticonstitucional progredir, legalmente ou ilegitimamente, poder-se-á denominar de Estado de Exceção: quartelada, Estado de Sítio, intervenção militar e outras agremiações do mesmo gênero. Vimos isso em 2016, em 2018 (sob a prisão política na Lava Jato – a mesma que seria declarada pelo mesmo STF) e vimos a mais séria tentativa em 2023.

A ação em confronto direto à Constituição, a partir de uma tomada de poder ilegítima e antipopular, em 2016, denomina-se Ditadura Inconstitucional. Conceitualmente, a Ditadura Constitucional está prevista nos artigos 136 e 137 – “Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, ‘devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta” (grifo nosso) – e segue as demais ressalvas e limites assentados nos artigos 138, 139, 140 e 141 da CF88.

Entretanto, como temos um conjunto de ações institucionais, dos três poderes, sobretudo na violação de preceitos constitucionais fundamentais, configura-se como Transmutação Constitucional; pois, a CF88 parecia não estar em vigência em 2016 ou em 2018/2022.

 

Não é a lei que impõe a Transmutação Constitucional 

É necessário reafirmar que – quando nos referimos ao Positivismo Constitucional –, não nos enlaçamos na retórica esvaziada desde os anos 1950: quando se afirmava que o “único direito legítimo é (ou era) o que provém (ou provinha) do aparato estatal”.

Nossa argumentação é de que a Ciência da CF88 revela uma Força Normativa Democrática e assim deve ser cumprida por todas e todos: indivíduos, sociedade, Estado, povo, grupos, segmentos, estratificações, minorias ou maiorias. Apenas a título de explicação, referimo-nos ao Estado como a instituição pública originada da ação direta de um povo em um determinado território – e de modo soberano.

O próprio reconhecimento internacional da soberania seria discutível. Entretanto, a trilogia povo, território e soberania é inclusive afirmada pelo Direito Internacional – desde a Convenção de Montevidéu. Quando assim prescreveu, em 1933:

·        Art. 1º O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos:

I – população permanente;

II – território determinado;

III – governo;

IV – capacidade de entrar em relações com os demais Estados.

·        Art. 2º O Estado federal constitui uma só pessoa ante o direito internacional.

·        Art. 3º A existência política do Estado é independente do seu reconhecimento pelos demais Estados. Ainda antes de reconhecido, tem o Estado o direito de defender sua integridade e independência, prover a sua conservação e prosperidade, e conseguintemente, organizar-se como achar conveniente, legislar sobre seus interesses, adminis­trar seus serviços e determinar a jurisdição e competência dos seus tribunais.

O exercício destes direitos não tem outros limites além do exercício dos direitos de outros Estados de acordo com o direito internacional (grifo nosso). 

De todo modo, deve-se ter atenção maior a fim de não se confundir Estado com Direito (ou Constituição) e nem soberania com autonomia. Muito menos podemos imiscuir Estado com governo, e bastaria termos em consideração que o Estado tende à perenidade e o governo (ainda que ditatorial ou como dinastia) tem um limite temporal.

Veja-se, também inicialmente, que todo indivíduo é capaz de “dar normas a si mesmo”, isto é, de exercer a proposição de autonomia; mas que só o Estado é soberano. Tanto é assim que não cabe superlativo, do tipo, soberaníssimo, pois ou o Estado é ou não é soberano.

Na verdade, a própria instituição de autonomia – como temos no art. 207 da CF88 – pertence à instituição, no caso, a universidade federal. Ninguém é autorizado a colar ou plagiar na escola, não há margem de liberdade para isso – e tanto não há liberdade, um consentimento social, que a infração deve resultar em penalidades. Também não se assegura que a relação social, sexual, deve ser consentida? Este consentimento não é um freio à suposição da liberdade de outrem?

Ainda podemos pensar que o lema “é proibido, proibir”, é só um lema, de conotação liberal e propositiva de direitos; tem forte sinalização política e emancipatória, sem dúvida, porém, nunca será restritiva dos direitos dos outros e das outras, que requerem, exatamente, alguma forma de consentimento. Nenhum direito, por mais liberal que seja, poderá abdicar da liberdade dos outros dizerem não – e assim imporem alguma limitação ao pretendido “direito de agir com liberdade”, do outro sobre todos nós.

O mesmo raciocínio se aplicaria a uma determinada sharia, uma obrigação de fazer ou deixar de fazer regulamentada por lei amparada em códigos ou nas validações tradicionais, mas sempre carregada da imposição de sanções – ou da “força de lei”, para a sociedade moderna do Ocidente. É óbvio que colar ou não colar, e desse modo estudar, ou roubar e violar, são atos individuais (com reflexos sociais) e, portanto, impõem-se como “livre arbítrio”, em última análise.

Contudo, como não somos seres sociais livres da relação espaço-temporal, são missões individuais destinadas em razão de escolhas nem tão livres assim: porque acarretam reações individuais ou coletivas ou porque podem sofrer sanções institucionais ou do próprio Estado. Isto é, observe-se que uma possível livre escolha, “dar normas a si mesmo”, de modo bem preciso, tem/guarda dependência à função ou ao papel social exercido (status). Exemplo típico é o de que a ninguém é dado o direito de negar socorro, ou não-denunciar um crime, ou alegar a ignorância da lei – inclusive as que nos obrigam a tudo isso.

Em sentido semelhante, a reciprocidade pode ser orientada por uma valoração pessoal ou até constar de um código político, partidário, mas a hospitalidade, em outro exemplo, é uma atribulação pertencente às tradições, e são tradições com “força de lei”; assim como a tal cordialidade brasileira – e que em nada tem a ver como honestidade de proposições, uma vez que, via de regra, essa inaudita “cordialidade” desemboca em corrupção da relação pública.

Indivíduos cordiais podem ou tendem a ser supremacistas, com tendências isolacionistas e até racistas, excludentes ou hegemônicas; todavia, nem mesmo a hegemonia lhes caberá, tanto quanto a hegemonização não é da alçada de um partido ou de segmentos sociais isolados ou isolacionistas.

No mínimo, a hegemonia de um processo social, político, ou da tomada de poder, é condição explícita de um Grupo, ou melhor, de um Grupo Hegemônico de Poder, representativo de uma classe ou de algumas classes, ou de frações de classes socias organizadas em face de projetos políticos comuns ou assemelhados.

 

Da cultura que nem sempre é jurídica

 

Vejamos o caso do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que dominou o Executivo por 70 anos, no México, e cuja nomenclatura já abriga termos contraditórios: não se trata de um partido hegemônico, é um aglomerado de forças econômicas, inclusive dos chamados narcos, e que manipulou a cultura e as tradições como “representação institucional” de outros favores.

No entanto, e de forma geral, o Estado retificado no século XX, é capaz de produzir legislação autonômica e a CF88 é exemplar nisto: o Estado Espanhol é mais autonômico do que o nosso, sem dúvida; entretanto, basta-nos verificar a iniciativa popular para visualizarmos alguns caminhos de “autonomia compartilhada” (mesmo a iniciativa popular recebeu fortes Limitações Constitucionais). De qualquer modo, nenhum Estado ou indivíduo são soberanos a ponto de se esquivarem do Direito Internacional, em mais um exemplo.

Por outro lado, ainda que o Estado arrogue a si o monopólio legítimo da produção legislativa – e que também se denomina de monismo jurídico: uma só esfera produtora do Direito –, em seguimento à própria ideia da dominação racional-legal, burocracia e legislação que formam o Estado de Direito (Weber, 1979), o Poder Político (ou Estado) não é mais o único legitimado juridicamente. A Desobediência Civil, como demonstração conceitual – e clássica (Thoreau, 1966) – afronta esta capacidade soberana do Poder Político a todo instante. Entretanto, como todos sabem, a autonomia de afrontar a “força de lei” tem muitas consequências.

Aliás, o próprio Estado – enquanto organizador da institucionalidade ou assim denominado enquanto “a instituição por excelência” – reconhece seus pecados e sua falibilidade, ao estender sua capacidade de homologação jurídica a outras formas de legitimação das relações sociais e jurídicas. Neste sentido, haveria uma ponderação interessante entre soberania, legitimidade e autonomia.

Este é o caso preciso da antiga Lei de Introdução ao Código Civil e hoje denominada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[35], de 1942, em redação repaginada em 2010, ao afirmar em seu art. 4º, que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (grifo nosso)”.

Então, analogia, costumes e princípios gerais do direito congregam legitimidade para se imporem obrigatoriamente – ou sob o constrangimento da “força de lei” (Derrida, 2010) –, além do fato de que a magistratura deve considerar sua própria jurisprudência e a doutrina (alhures) em seu embasamento e na formação da famosa “livre convicção”.

Veja-se, ainda, que nem mesmo a convicção do juiz é livre e isenta, no Estado-Juiz, posto que o Estado legalizado não comporta “fortes convicções” em apanágios na forma de sentenças judiciais. Tão-somente cabe o embasamento legal, moral, constitucional. Afinal, todo ditador tem “fortes convicções”, mas apenas o Estado de Direito Democrático tem convicções legítimas para se impor enquanto legislatura aceitável, predizível legitimamente, pois, além de tudo, deve a convicção de todas e de todos deve ser republicana.

A Guerra Civil espanhola pode nos guiar neste exemplo – exatamente, ou infelizmente, porque a derrota dos republicanos implicou na ascensão fascista de Francisco Moro: lá, os republicanos combatiam os nacionalistas, isto é, os falangistas. Tanto quanto no Brasil nós combatemos o Fascismo miliciano e as falanges que se impõem na forma de um Estado Paralelo – um Estado dentro do Estado.

E isto, é obvio, assim como a história não perdoa (e nem o povo), a lei não escusa a ninguém do seu cumprimento, como temos, outra vez, na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

·        Art. 3o  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. 

Ainda observemos a obrigação legal que atinge a toda magistratura:

·        Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (grifo nosso). 

Por certo, isto não está em desuso. Não é preciso dizer que a magistratura tem obrigação de conhecer a lei. A magistratura que descrê da CF88 é negacionista, é a mesma que barganha o Direito de todos.

No mais, seguindo-se a Regra da Bilateralidade da Norma Jurídica, no dizer do clássico Carré de Malberg (2001), ou em outras palavras (“suportas a lei que criaste”), será o Estado – enquanto Poder político – quem primeiro se submeterá aos seus próprios desígnios e atos declaratórios com força legislativa. Deve-se dizer que, de modo simples, é óbvio que o agente político não pode se escusar ao cumprimento da lei.

Isto quer dizer, além de tudo, que o Estado é obrigado (na forma de uma obrigação pública de fazer) a pautar-se como servo da Constituição. Nem sua suposta soberania desobriga o Estado desse cumprimento formal e lógico. O que nos assegura este suporte, técnico e teleológico, é a mesma Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 6º e, igualmente, nominado na CF88. No dizer da lei supracitada:

·        Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. 

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. 

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. 

§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.  

         No Dizer Constitucional (art. 5º, XXXVI): “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Com isto, reforçamos o sentido empregado aqui para nosso esforço de Positivismo Constitucional, como Afirmação Constitucional de que a ninguém é conferida uma suposta autonomia para alegar desconhecimento da Lei Maior, e muito menos é conferida a capacidade jurídica de se interpretar a CF88 (como ato de afronta), provocando-se seu descumprimento e assim submetendo-se as relações sociais ao estágio desumano da instabilidade institucional (caos sanitário, por excelência) e muito menos impor-nos a insegurança constitucional.

         Se os atos institucionais e políticos não ocorrem de forma legítima e republicana, sob essa nossa alegada Segurança Constitucional, e por analogia à segurança jurídica – como previsibilidade e espera de que a lei de amanhã seja a mesma praticada hoje (ou sua interpretação não salte de galho em galho, toda vez que se moverem as peças do poder) – , neste exato percurso, insiste-se, não se reporta aqui a nenhuma falha geológica da Constituição e nem a qualquer fadiga do material jurídico ou de seus princípios. Trata-se, de outro modo, de problema político, cultural (acostumar-se, por exemplo, à corrupção) ou da ausência inegável de um padrão ético, mínimo e urgentemente necessário, ao aprofundamento do Princípio Civilizatório.

Assim, diremos mais uma vez, não é a CF88 que recomenda a troca de favores no Congresso Nacional (hoje denominado de “semipresidencialismo, com o Centrão se ocupando do centro do poder decisório), nem é a Constituição que determina furar a fila, colar nas provas, trocar o voto por uma pilha de tijolos ou empreguinhos, ou se negar à vacinação, colocando-se em grave risco a saúde pública.

Aliás, diante da saúde pública, a ninguém será conferida uma suposta autonomia de não se vacinar, obviamente, porque a desídia de uns poucos coloca em risco a vida de muitos. Cabe, mais uma vez, a noção republicana, amparada no Princípio Geral do Direito (ocidental); trata-se do Princípio da Prevalência do Interesse Público sobre o Interesse Privado.

Quem se promove de modo refratário ao bom senso, em grave violação ao Bem Jurídico Maior (a vida pública), pode muito bem procurar albergue num alegado livre arbítrio, numa entoada autonomia, e normalmente são as mesmas que seguem à margem da lei republicana e que, por fim e ao cabo, aninha atos perversos e de muita corrupção da coisa pública.

Como se sabe, no Brasil, antes da Expectativa do Direito, há uma tentativa de direitos – ou tentativas de violação dos direitos, e mais ainda se forem direitos fundamentais sociais.

Isto nos parece uma anomalia, algo muito para além do normal, mas é, no mínimo, considerado absolutamente normal por 30% do povo brasileiro, em 2021; um tipo de “novo normal” em que a anormalidade absurda se naturaliza. Diga-se de passagem, retrata-se um normal muito antigo, incrustrado na carapaça da hipocrisia, do cinismo, do descaso com a coisa pública, aderente à servidão voluntária (La Boetie, 1986) e em descompasso absoluto com a Humanidade. Infelizmente, essa régua imoral da cultura brasileira não tem limites no interior das classes sociais, de todas as classes sociais. No rodapé dessa estruturação cultural e social há uma rebarba de casta social: os apinhados privilégios (leis privadas) conferidas ao Poder Judiciário (como auxílio moradia para magistrado que possua casa própria) e que vemos tão bem nas famosas pérolas de pequeno poder: “sabe com quem está falando?”.

Podemos pensar que o Direito, a sua interpretação oficial na forma da jurisprudência e a força de lei daí decorrente sejam a purificação dos males humanos e sociais, que a magistratura e outras instituições obedientes ao Poder Político, via regra confundida com o governo (Executivo), são demonstrações de um tipo de oficialato (coronelato nas polícias militares) dos ilegítimos intérpretes da CF88 – como querem seguidores de Derrida (2010). Também podemos pensar como Benjamin (2013), ensinando ao mesmo Derrida (2010), que o Direito é violência burilada, ou melhor, escondida/expandida em forma de teologia (e negação da teleologia) que se submete aos Grupos Hegemônicos de Poder. No entanto, jamais o Direito será santificado e isento de maldades.

Uma das piores maldades que se pode cometer, por exemplo, é tratar a Constituição Federal como ficção, obra aleatória que se lê embaixo da árvore e depois embrulha-se peixe. Não que seja proibido ler a CF88 embaixo da árvore: a não ser que isto seja prova de indigência humana, social e econômica; portanto, uma situação imoral e desacreditada em dignidade humana. O que não se pode, certamente, é, depois de ler a CF88, usá-la para embrulhar peixe.

A CF88 protege os peixes, as matas, a floresta, os povos da floresta, os animais, os lagos, os rios, a fauna e a flora, e a todos nós humanos que habitamos este país: indígenas, negros, brancos, pardos, pretos, cafuzos, quilombolas, mamelucos e todas e todos os filhos da imigração e da miscigenação. A CF88 é uma árvore frutífera de direitos, garantias, liberdades.

Essa lição vale tanto o homem médio em sua vida comum, como é uma obrigação funcional para aqueles que lidam diretamente, entremeios, com o espaço público. Essa lição é básica à cidadania, assim como é um pré-requisito para quem se arvora defensor da ética pública – como costumes republicanos, identitários – e, por isso, é uma obrigação pública de fazer: como mulheres e homens públicos que vivem sob a égide da vocação para a vida pública.

Na prática política nacional, do século XXI, vemos como resultado um combo completo nutrido desde 2005 – com o Mensalão e as teorias de responsabilidade atribuída pelos crimes cometidos por outrem, especialmente servidores públicos e agentes políticos, e mesmo que você seja outra pessoa. Este processo, repleto de procedimentos antiéticos, teve forte empuxo em 2016, e se concluiu na agraciada criação de Transmutações Constitucionais.

Este tipo de apoplexia interpretativa da CF88 é atroz, sem dúvida, e é capaz de gerar pânico em Kafka (1997), à medida em que, no exemplo da Lava Jato (2014-2021/2022), deu-se origem a um Código de Processo Penal alternativo, e que nem os russos aceitariam[36]. Isto é, sob o Necrofascismo, não há apenas intercorrência de “sinais de corrupção da democracia”, posto que se impôs decretos milicianos em todas as esferas de poder: social ou institucional[37]. Neste curso, o Fascismo é um projeto político (Martinez, 2021). Neste sentido, o Brasil já é o México (dos narcos) de ontem.

De um modo ou de outro, não se verá na CF88 a autorização para a compra de votos, de consentimentos, de apreciações, de interpretações parciais e benéficas a um ou outro interessado, seja o indivíduo isolado em sua mesquinharia, sejam os agentes políticos.

A cultura jurídica que se destaca, ao aplicarmos a ciência da CF88, ensina que os livros devem ser preservados – não rasgados ou queimados em fogueira santa –, assim como a CF88 precisa ser lida. A cultura jurídica divisada pela Ciência da CF88 também inibe o ritual do copiar/colar, seja em lição de estudantes (e muito pior se forem dos cursos de Direito), seja em decisões de magistrados. Afinal, a mesma honestidade pública requerida aos agentes políticos é esperada, enquanto honestidade intelectual, de quem quer construir uma base racional e ética que suporte a dignidade humana.

Diremos, neste caso, que a dignidade humana precisa de livros e de comida, para início de conversa. No segundo nível dessa Conversa Constitucional, diremos que há três componentes básicos da cidadania: alimentação, educação e perspectiva. Normalmente a escola atende ou deveria atender a essas três condições. Além de se diferenciar da família por proporcionar o coletivismo, a escola ainda tem livros e, certamente, um desses livros deve ser a CF88: nem todas as casas têm livros, muitas não têm recursoso mínimos, algumas rejeitam, outras demonizam o ato de estudar, ler, ensinar e aprender. No nosso caso, o nosso Livro Constitucional, entre outras coisas, preceitua um Estado Social, a cidadania e a própria educação – mormente a educação pública.

Pois bem, do sentimento de coletivismo possibilitado no interior da escola pública, derivam muitos outros elementos políticos, a contar da formação integral do indivíduo (com menor índice de egoísmo, com mais empatia), a perspectiva – além do seu congênere jurídico, denominado de “expectativa do direito”: uma possibilidade real de ocorrência do fato jurídico pretendido – e, na base de todos, ainda prefiguram-se tanto a isonomia quanto a equidade: sendo essas, por sua vez, as condicionantes reguladoras do Princípio Civilizatório.

Digamos, ainda, que aqui estão os aportes da cidadania democrática: sociabilidade, respeito mútuo, interação social e, é claro, a perspectiva social ontológica e teleológica. Com a notável diferença de que agora essa perspectiva tem um nome próprio e coletivo, denominando-se de teleologia do Princípio Civilizatório. No exemplo concreto do art. 19 (Estado Laico), não é difícil ao cientista compreender porque a Carta Política se construiu por meio da teleologia e não da teologia, do ensino religioso ou de qualquer outra forma (negativa) de se contabilizar crendices sob a mesma Régua Constitucional que se quer postar a integralização do humano genérico nacional.

Em síntese, enquanto súmula política e racional, a CF88 diz que a escola não se ocupa de religião e sim de educação laica, científica e libertadora. Por mais que se diga que a CF88 seja um oceano ou uma bíblia, pela extensão, a Complexidade Constitucional é de matriz racional; a CF88 não é mitológica, nem crente do salvacionismo redentor. A Constituição precisa de ação para que assim se efetive como força normativa.  

Diferentemente do salvacionismo, e como não poderia ser de outro modo, a Carta Política de 1988 instiga à Luta pelo Direito, desde Ihering (2002), “perspectiva” essa que sempre é parte de uma luta política, no bojo da luta de classes. Nosso Livro Constitucional nos ensina que a condição humana é política e não divina. Até porque são muitos os deuses do Olimpo jogando dados a essa altura: um deles é Ares, na Grécia clássica, o outro é Marte, na Roma antiga. E neste momento o nome do jogo (ainda) pode ser Clerical-Fascismo.

Então, como vimos nesta ciência da CF88, um só livro, um livro diferenciado, reúne duas condicionantes fundamentais: obriga a todas e todos, enquanto regra e obrigação de ser cumprida (chamemos de nomologia), e performa a coletivização de perspectivas humanizadoras – a referida teleologia.

É este conjunto que nos permite chamar a Constituição Federal de 1988 de Carta Política – essencialmente por que aponta para a Polis, a Política integradora e emancipadora, como realização plena do “animal político”. Como queriam os gregos clássicos, é no Rio Eufrates que se senta para o Banquete dos Deuses – e não impondo-se leitura religiosa em escola pública.

O que a escola pública, laica, de qualidade e racional, nos explica, é que, todos nós ignoramos muitos conhecimentos, é óbvio, especialmente porque somos seres incompletos da natureza e porque nossas perspectivas são moventes. Isso é ponto pacífico.

Na verdade, tudo isso está acatado na CF88, e basta-nos procurar com a lente correta, com a lupa do cientista e não com algum cálice sacramentado. Para concluir este ponto selecionamos a ótica do discrímen, da discriminação positiva, da diferenciação para melhor resguardar e assim incluir. Destacamos a prevalência da equidade, sobre a isonomia, notadamente quando a desigualdade de gênero se faz objeto de apreensão na CF88 – exatamente porque se revela de forma absolutamente abjeta na realidade da sociedade nacional.

O que vemos, portanto, é uma Constituição Política que poderia ter ido além, mas que foi muito mais longe do que aquilo que se propôs depois dela, e, por ter ido tão além, consegue-se ainda hoje inferir a lisura de preceitos e de princípios, a exemplo do art. 37, caput, e também de se ajustar aos desígnios da resolução das desigualdades sociais e regionais (art. 43 – e que ressoa o art. 3º, III) ou na forma do art. 40, III, no que se refere ao tratamento desequilibrado; porém, que se impõe como restrição à desigualdade material entre homens e mulheres.

O exemplo concreto traz o cuidado em estabelecer outras formas de equiparação entre homens e mulheres, pois a isonomia não impediu o constituinte de adotar o tratamento diferenciado, para alguns casos particulares. Mais especificamente em três situações, que não excluem muitas outras: 1. licença-gestação para a mulher, com duração superior à da licença paternidade (art. 7°, XVIII e XIX); 2. incentivo ao trabalho da mulher, mediante normas protetoras (art. 7°, XX); 3. prazo mais curto para a aposentadoria por tempo de serviço da mulher (art. 40, III; 203, I)[38].

Pode parecer que não, contudo, a CF88 é inclusiva e feminina:

·        A igualdade

·        A liberdade

·        A mulher

·        A servidora pública

·        A discriminação positiva

·        A expectativa do direito

·        A obrigação pública

·        A fruição das políticas públicas

·        A natureza

·        A fauna

·        A flora

·        A educação

·        A saúde pública

·        A dignidade humana

·        A eficiência...

·        A própria Constituição! 

Bastaria observarmos isso para empreender uma análise significativa da CF88, especialmente para que as críticas de esquerda e de direita não tivessem o mesmo foco e efeito. Do mesmo modo, é preciso saber, claramente, que não há teleologia sem perspectiva histórica. Não há futuro para quem desconhece o passado, não porque se repete os mesmos erros, mas simplesmente porque não se sai dos erros. Para quem ignora a história, o erro, o errar, não é um meio, é um fim em si.

Esta breve compilação ainda nos permite pensar que a CF88 determina o aprofundamento do Estado de Direito Democrático de 3ª Geração (arts. 1º; 4º; 225). Sem dúvida, isto implica no Positivismo Constitucional, sob a regência de um formato republicano, democrático, inclusivo, emancipatório, justo e equilibrado, e de acordo com as exigências do Processo Civilizatório.

Como se viu, a CF88 não é mesquinha, muito embora os maus tratos recebidos em interpretações criativas (como as contabilizadas pelo poder corrupto) ocorram em elevadíssimo desnível. Somente para efeito de reflexão final deste item: é correto que youtubers e clérigos, de qualquer tipo, tenham supremacia diante de cientistas?

         Essa resposta está na Ciência da CF88. Assim como não é impossível – aliás, nem é difícil – observar que a CF88 trata a discriminação positiva (discrímen) no pendor dos direitos fundamentais. Pois, ao se investir o Princípio da Justiça, a igualdade formal deixa de ser um obstáculo à Justiça Social ou um estímulo à desigualdade real, assim como a isonomia se submete à equidade: ofertar mais e melhor, exatamente, a quem mais necessita.

A homilia do cientista da CF88 é outra, nosso Santo Graal é muito diverso da ética protestante, sobretudo daqueles que só protestam pela engorda do bezerro de ouro. Nossa crença está bem distante do neopentecostalismo de resultados econômicos e desse espírito neocolonialista que, de dízima em dízima, vai dizimando a vida pública.

A principal justificação desta proposta é auxiliar na afirmação da CF88 e no desmascaramento dos crimes institucionais cometidos “em seu nome”. O método de demonstração e de avaliação mais simples tem-se mostrado muito eficaz: o recorte de alguns artigos da CF88, afirmativos de sua conotação enquanto Carta Política, é seguido de uma síntese da realidade social e política – sobretudo no pós-2016.

Com esta comparação entre a Nomologia Constitucional (premissa maior) e a síntese societal, vê-se claramente que o problema não é constitucional. Mas, sim, de ordem do Poder Público inclinado – sob o Fascismo Nacional (Necrofascismo) – a destruir as garantias, os direitos e as liberdades asseguradas na CF88. Por exemplo, em nome da “liberdade de expressão” propaga-se a mentira e se alimenta o negacionismo das obviedades.

Se cabem críticas ao excesso de competências atribuídas ao Poder Executivo – como referendo do Kaiserpresidente (Weber, 1985) –, não obstante, precisamos rever alguns passos: 1) a CF88 atribuiu, sobremaneira, autonomia e competência ao Legislativo e ao Judiciário – quando observamos as constituições anteriores; 2) para arrefecermos os poderes executivos, obviamente, teríamos de lastrear mais autonomia ao Estados Federados e aos municípios; 3) O que seria do país, em 2018/2022, com um maior e mais profundo enraizamento do caudilhismo e dos chamados “poderes locais”?; 4) Qualquer proposta de Emenda à Constituição, sugerida no bojo do Fascismo Nacional de 2016-2022, não tem o interesse público por objetivo.

São muitas ações que tornam fogoso o Estado Militar e de Exceção e que minimizam o Estado de Direito Democrático (de 3ª Geração), no Brasil de sempre, acirrado em 2021 sob um real Estado Militar, mas destaquemos algumas:

·        A Constituição Programática, especialmente na garantia dos direitos fundamentais sociais, é relegada aos limites do pragmatismo e/ou oportunismo político, balizado pela cláusula/barreira jurídica da “reserva do possível” – o que torna impossível a Justiça Social.

·        O Princípio da Oportunidade administrativa é substituído pelo oportunismo político.

·        A política volta a se tornar caso de polícia (e de CPI).

·        A miséria que alimenta a guerra civil traveste-se de “combates assimétricos de rua”: numa linguagem técnica do Estado Militar.

·        Há crescente criminalização das relações sociais (a cada dia há uma nova lei penal ou inquérito contra lideranças sociais); há endurecimento das penas e prisionização em massa – ao invés de se observar o Direito Penal Mínimo (prisão para os casos reais de sociopatia)[39].

·        O aprisionamento social seletivo não é capaz de recuperar/ressocializar[40] – o que eleva à reincidência criminal.

·        A “vitimização das vítimas do poder” (pobres de todo gênero) alimenta a indústria da privatização dos recintos penitenciários.

·        Vê-se a completa negligência estatal diante do Princípio da Coculpabilidade (quando o Poder Público, por ação ou omissão, é responsável pelo incremento da criminalidade social).

·        Sistematiza-se a desconsideração, deteriorização judicial pelo Princípio da Insignificância penal: O STF julga habeas de furto de barra de chocolate.

·        Confunde-se, propositalmente, segurança nacional com segurança pública.

·        Imiscui-se Estado e governo.

·        Confunde-se, propositadamente, Razão de Estado, justificativa de uso e emprego de recursos/meios de governabilidade (incluindo meios de exceção em casos graves), e desejo ou projeto de poder.

·        Diante da guerra civil patrocinada pela miséria e indignidade humana e pelo caos social, resguarda-se no Palácio do Poder um pacote jurídico, anti-ético, apelidado de Leis Antiterror ou de Lei Anticrime: que autoriza a utilização de provas ilegais.

·        Os adversários políticos são convertidos em inimigos de Estado: manifestantes políticos de oposição são presos com base na lei do crime de Associação Criminosa (em reais tribunais de exceção). A oposição política, para o Poder dominante, não faz política, posto que comete crime de natureza política.

·        Ao invés de se desmilitarizar o espaço público, cresce a ideologia fascista na base do “um cidadão, uma arma”.

·        Instaura-se/revigora-se uma nova era jurídica – talvez sem precedentes – em que se fortalecem e se refinam as chamadas Ditaduras Civis ou Ditadura Inconstitucional (Martinez, 2020). 

Entretanto, esta militarização do Estado, criação de repartições e estruturas legais em torno da noção de segurança nacional, é de longa data. Ou seja, o Estado Militar no Brasil do século XXI tem um déja vu da Guerra Fria:

·        1947 → EUA conhecem o Ato de Segurança Nacional, que criou a Comissão Nacional de Segurança e a Central Intelligence Agency (CIA).

·        1947 → Inglaterra decreta o Ato sobre conduta e disciplina de funcionários públicos.

·        1948 → Chile cria a Lei de Defesa da Democracia.

·        1949 → Portugal institui Conselho de Segurança Pública.

·        1950 → Bolívia, Austrália, África do Sul, Canadá aprovam leis anticomunistas.

·        1950 → EUA: a Lei McCarran de Segurança Interna autorizou o presidente da República a ordenar a prisão, sem julgamento, de acusados de atividades subversivas[41]. 

No Brasil, a Lei nº 38, de 4 de abril de 1935, deslocou os “crimes contra a segurança do Estado” do Código Penal para uma legislação especial, militarizando-se os crimes políticos, porque seriam julgados pela Justiça Militar. Com a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, as penas foram reduzidas e extinguiu-se a pena de morte, restabelecendo-se o foro comum para os crimes políticos[42]. Contudo, a Constituição Federal de 1988 prevê o nosso Estado de Sítio (artigo 137).

O Estado Militar de 2021, entre nós, fez reviver o famigerado “crime de vadiagem”, que só se aplicava a ex-escravos, revigorando-se sob as vestes da Tolerância Zero do capitão do mato. A estrutura societal brasileira converteu a luta de classes clássica em guerra civil contra o lumpemproletariado e é esta fração de classe que alimenta o crime (des)organizado[43] e avança, institucionalmente, na criação de uma bancada evangélica e miliciana, no Congresso Nacional.

 

CAPÍTULO II

POR UMA EDUCAÇÃO CONSTITUCIONAL

O DIREITO AO ESCLARECIMENTO

 

A prevenção é a melhor forma de ação

         Se na vida comum do homem médio vale uma espécie de regra básica, de guardar segredo para si, quando se refere ao fato consumado dele mesmo, isso, por óbvio, tem efeito enquanto o dito segredo não é revelado. Nesse momento, torna-se refém de outrem, pois, se não for confidente probo será chantageado e o segredo logo se fará fofoca alhures.

         Se no direito constitucional reina o princípio e a garantia do Direito de Livre Pensar e de assim se manifestar, com ampla liberdade, por outro lado, o mesmo condicionamento constitucional de 1988 veda solenemente o anonimato (art. 5º, IV).

Na especificidade da Administração Pública, além de vedar o anonimato – como Liberdade Negativa que atinge o cidadão, obrigação de não-fazer, em vista da defesa da Democracia –, a Constituição Federal de 1988 obriga à transparência e lisura dos atos públicos (art. 37, caput). Como é de conhecimento prévio, a Administração Pública deve ser regida pela transparência e publicidade de seus atos – sendo o secretismo uma exceção e a publicidade, faz-se sua regra.

O secretismo sem limitações conduz, no âmbito do espaço público, ao obscurantismo e à malversação dos instrumentos político-institucionais a cargo do aparato estatal. Quando se faz necessário, com o devido registro de sua natureza, por exemplo diante de investigação sigilosa, processo com trâmite em sigilo a fim de se resguardar direitos de privacidade e de incolumidade de hipossuficientes, ou de interesse voltado à segurança nacional, o sigilo deve ser acompanhado por uma rubrica que lhe ateste a obrigatória necessidade e que se manifeste de acordo com a CF88.

No mais, o secretismo – ao contrário do sigilo necessário à Democracia – é um dos mecanismos do Estado de Exceção (Agamben, 2002), visto que na autocracia são as clausuras do poder que, efetivamente, detém e manifestam o poder autoritário, ilegítimo e ilegal. Não é desconhecido de ninguém que o abuso de poder e de autoridade em regimes autocráticos e fascistas ocorrem fora do alcance, em paralelo, e contra o Estado de Direito. Entendido este Estado de Direito como está prescrito na Carta Política de 1988: Estado Democrático de Direito.

Neste momento, observamos que não se trata de “mera” questão conceitual, pois, o Executivo nacional investiu seriamente contra o Direito de Livre Acesso à Informação, com iniciativa legislativa (Medida Provisória) que não só ofende a lisura dos processos político-administrativos como também pretendia ferir de morte a Carta Política de 1988 e os direitos fundamentais – medida barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após provocação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)[44].

A recusa de acesso aos bancos de dados, notadamente, da saúde pública, comprovara o nível da gravidade diante da pandemia ou reforçam o esclarecimento da inépcia do Poder Público? Ou o bloqueio e a maquiagem dos dados indicam que se trata a pandemia do coronavírus com base em Fake News[45]?

A imagem de irresponsabilidade estatal e manuseio da informação como meios de morte apresentou forte rejeição nas redes sociais[46]. No Estado Penal, tudo é policialesco – como vimos na Cracolândia, nas chacinas policiais em São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro. Isto é, a questão sempre foi e é social, cultural, política e econômica. No básico dessa crise, não serve o mero emprego da polícia, mas do reforço dos profissionais da saúde, da assistência social e outros[47].

No Estado de Exceção, o secretismo concorre em apoio às práticas fascistas de esconderijo dos reais intuitos de poder: dominação cruel, corrupção dos atos administrativos, abusos de toda sorte e ilegalidades como regra. Portanto, nada mais ofensivo à democracia e ao Estado de Direito Democrático do que o secretismo na seara pública (ressalvadas as legítimas exceções), sobretudo, porque ainda se manifesta enquanto sincretismo de público e privado – levando-se o interesse público a coabitar e se submeter aos caprichos e veleidades dos interesses privados. Neste tom, é mais do que óbvio, inverte-se o principal instituto da Coisa Pública, em seu intento comum, publicizável e compartilhável: “Prevalência do Interesse Público sobre o Interesse Privado”.

É com esse caminho de Esclarecimento que devemos ler e pautar as ações governamentais (do passado recente) no tocante ao enfrentamento da mais grave pandemia que afligiu não só o país, pois, o Povo – instituição fundadora da República – tem o direito fundamental de ser bem informado do que se fez (ou não), na perspectiva estatal, na ação e na prevenção fitossanitária e de saúde pública, visando seu bem-estar e a segurança de todas e de todos.

Portanto, a prevenção é a melhor forma de ação, tanto na defesa da Democracia quanto na contenção do vírus. Defender a democracia do obscurantismo e do fascismo lancinante; defender as vidas humanas dos milhões de brasileiras e brasileiros sofredores da pandemia descontrolada do COVID-19.

Do mesmo modo que retomar a leitura clássica do poder minimamente salutar (Justiça, Prudência, Valor Ético, Eficácia) deve nos guiar em todos os momentos de crise, se não por intermédio estatal, inepto, que sempre nos sirva como guia de cidadania, cada um em seu campo de ação, luta e consumação da ética nas entrelinhas da vida privada – ou societal, uma vez que, o combate ao Fascismo se faz no trabalho, nas ruas, no largo público e nas redes sociais. Em todos esses graves momentos de crise – política, institucional, econômica, de saúde pública –, de pandemia societal, o pandemônio institucional não pode, em hipótese alguma, arvorar-se do arcana imperii.

Há uma suposta aceitação/adesão até meio inconteste de que tem de ser assim, a fim de que o Estado para se proteger, tem de omitir informações importantes dos cidadãos, há uma clara leniência com a mendacida[48] deste anti-Estado. Na lógica da exclusão, no entanto, não é difícil de se compreender, pois o anti-Estado provoca um anti-sentido, um non sense proposital, instrumental: a mentira traz a verdade; a regra contém e guarda (vela) a exceção; o provisório se torna permanente[49]. Porém, o próprio Estado corre sérios riscos e a conta do poder pode ser bem alta, como adverte Bobbio (na lição do Maquiavel republicano):

Ao contrário, onde o sumo poder é oculto, tende a ser oculto também o contra-poder. Poder invisível e contra-poder invisível são as duas faces da mesma moeda [...] Onde existe o poder secreto existe também, quase como seu produto natural, o antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conjuras, complôs, conspirações, golpes de estado, tramados nos corredores do palácio imperial, ou sob a forma de sedições, revoltas ou rebeliões preparadas em lugares intransitáveis e inacessíveis, distantes dos olhares dos habitantes do palácio, assim como o príncipe age o mais longe possível dos olhares do vulgo. Ao lado da história dos arcana dominationis poder-se-ia escrever, com a mesma abundância de particulares, a história dos arcana seditionis[50] [...] Nos Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel dedica às conjuras um dos capítulos mais densos e longos, que começa assim: “Ele não me pareceu do tipo dos que deixam para trás a consideração das conjuras (...) porque se vê que muito mais por elas príncipes perderam a vida e o estado, do que por guerras abertas [...] É usual a comparação com o médico que esconde do doente a gravidade da doença. Mas é igualmente usual a condenação do doente que engana o médico e, não dizendo a ele a gravidade do seu mal, o impede de curá-lo (Bobbio, 1986, p. 95-96). 

O anti-Estado congrega um antipoder e esta congregação de negações acaba por levar a uma afirmação: o direito de sedição. Aliás, a clara lição de Bobbio foi tomada de Maquiavel: “evitar as conjuras” para afastar os “falsos amigos” (ou bajuladores) e levar a clareza mínima, necessária à Razão de Estado. Esta clareza e transparência (as famosas glasnost e perestroika) do Estado Republicano são essenciais, até mesmo como princípio jurídico definidor de seu Estado de Direito.

Vale lembra que, em Dante, são virtudes centrais: força, justiça, prudência, temperança (Dante, 1998). A estas ainda se somam as virtudes teológicas da fé, esperança e caridade. Para Maquiavel (1979; 1994), são modernos os conceitos de virtù e de “fortuna”: sorte, acaso, influência das circunstâncias. Portanto, são virtudes cardeais (virtù) para o bom exercício do poder, a coragem, o valor, a capacidade e a eficácia política (Bobbio, 1985). Assim, mesmo as virtudes essenciais não lhes são comuns. Desse prisma não há paridade e nem piedade ao poder usurpador, autocrático, irresponsável e ávido pela desorganização da vida civil.

 

A Constituição é uma árvore e um fruto

A CF88 é uma história retida na retina de todos nós 

         Com o impreciso descolamento de retina para ver o horizonte – ou “para além” dos limites políticos – alguns empiriocriticistas (diria Lênin) entendem a palavra “praticamente” como se fosse uma dosagem de tempo (e de obrigações práticas: pragmatismo) e não como condição da substância e da existência. Não entendem, por exemplo, que a história é um recolho de práticas (em paráfrase a Benjamim) e que seus personagens, por mais remotamente ligados e adormecidos, são atuantes exatamente para nos manter distantes dessa “história”.

Esses personagens, em sua ação e inação, constroem seus atos, documentos, instâncias e instituições – praticamente – em práticas e ideários. E é certo que tanto a Política quanto o Direito são ilustrações dessas personagens – nem todas personalidades – e, mais especificamente, a constituição da Constituição é um desses atos de fabricação humana.

Aliás, a Constituição é Ética e práxis tanto quanto a história, a comunicação – o “grito primal”, ultrapassando os decibéis dos uivos do Lobo Solitário e de sua Licantropia –, o trabalho (o 1º Ato Histórico, diria Marx), a técnica, a arte e a política: esses advindos do Neolítico. 

         É neste sentido que se diz que a Constituição é histórica, como som que se propaga nos dizeres, práticas, ethos, e práxis de diferentes culturas, nacionalidades e interesses. A nossa Constituição de 1988 não é diferente, é igualmente histórica, mas não no sentido de longeva, talvez longitudinal, “interseccionando-se” entre negociações e projeções do passado e do futuro.

Neste mix de “ser-assim” e “dever-ser assim” (“fazer-se política”, porquanto a Carta Política), a CF88 é produto e produtora (representante e refém) da chamada Modernidade Tardia. A CF88 tem condições do passado, teses e contradições, de um passado negociado com as elites políticas, outrossim, também nos permite almejar a antítese projetiva, as práticas políticas que pudessem (e)levar seu próprio status presente.

A história da Constituição Federal de 1988, a bem ver pela visão angular que se amplia desde o Preâmbulo Constitucional (político e civilizatório, descontada a “graça de Deus”), não é uma história retida, presa, inamovível. Ao contrário, a Constituição não se reduz à práxis de 1988, posto que se abre aos próximos capítulos – e que já perduram por mais de 30 anos.

         Esta história conta o nosso fazer, refazer, desfazer, a exemplo da era que se iniciou em 2013/2016. Contudo, é nossa história, não é só história constitucional, sem as narrativas dos seus atores: mais acordados ou dormentes. É a história do cidadão governante mais ou menos sonolento (Canivez, 1991) e do cidadão do sofá: como sempre descreveu Maria Victória Benevides (1991).

A Ética Constitucional de 1988, portanto, como insumo e propagação do passado e do futuro, não se limita ao manual de sociologia. É a Filosofia Constitucional em mutação, em andamento. É certo que, nos últimos anos, temos retornado a tempos que se queria soterrar na vala do julgamento histórico. De regresso ao “passado sombrio”, é igualmente certo que experimentamos uma Transmutação Constitucional: regressiva, repressiva. Outra lição diz que o Fascismo, praticamente, é intempestivo.

         Então, por essas e por outras, a Ética Constitucional é uma práxis política – como “concreto pensado” – e uma ação/interposição jurídica. É muito difícil não perceber na Ética Constitucional a “ação histórica” (desde 1948) e não compreender que na Força Normativa da Constituição (“erga omnes”) estão subsumidos o niilismo, o empiriocriticismo, a negação teórica.

Afinal, como “produto histórico”, a Constituição Federal de 1988 nos obriga – enquanto “obrigação pública de fazer” –, praticamente, a “fazer história, fazendo-se política”. Desde que se sabe que não há e nem houve nenhum agrupamento humano desconhecedor do Direito (das práticas sociais reguladas), pelo menos desde que Lucy se apresentou, a Ética é exigida com a potência do “enforce de law”.

Assim, praticamente, não soa estranho que possamos aprender uma das inúmeras lições de Maquiavel, quando assevera em ressonância a Petrarca e diante da ação política: age como a espelhar a “vertú contra furore”. Como toda árvore, que um dia foi semente, a Constituição é uma virtualidade, um virtus, mas é acima de tudo “virtù”, uma força da potência do vir-a-ser político-jurídico.

Urge, pois, que o combate em defesa da CF88 se espraie bem depressa.

 

Fascismo nacional

 Antípoda da eticidade humana. Antítese dos Direitos Humanos. 

É sob esses auspícios que pensamos que Educar em Direitos Humanos, de forma aguda, também é educar para a sua negação. Se a afirmação histórica, ético-social, política, dos direitos humanos implica efetivamente na conquista do Direito que advém da luta política, isto implica, igualmente, no desalojamento e desconforto de estruturas e instâncias de poder que, anteriormente, eram assentadas e afirmativas do controle e do domínio.

Então, se toda ação na Luta pelo Direito, afirmativa de “novos” Direitos Humanos, provoca a reação dos que antes só estabeleciam deveres, ação e reação caminham em paralelo com afirmação e negação de direitos e de deveres. Pode-se dizer, neste prisma, que a mais atentadora forma de combate aos direitos humanos deriva do Fascismo, porque é um surto negativo de direitos construído silenciosamente, vagarosamente, até que se torne a fonte do poder opressor. Por isso, o Fascismo tende a ser uma forma regulamentar (“normalizando-se” em violência) e regulamentadora, especialmente porque se ocupa do Poder Político para “normatizar” outras regras de direito e administração da vida social e política.

O Fascismo, em forma populista e perversa, tende a colonizar a “mente” dos seguidores, notamente pela “exaltação da ignorância”, e tem como suas principais vítimas iniciais, não por acaso, a educação, a ciência, a cultura, as artes, a comunicação, as formas de interatividade social desbloqueadas do medo, do controle antiético, agora por ação/inculcação do atavismo, do moralismo, pelas religiosidades controladoras, enfim, pelo poder central manipulador, regressivo e repressivo. Desde sua apresentação clássica, a partir da Itália de Mussolini, a ideia de caos, desordem, conturbação, tem sido a bomba operatriz da manipulação popular.

Neste caldo fascista, do passado e do presente (quer seja como proto-fascismo), o ativismo democrático, participativo, instaurador da Política (Polis) e da civilidade – pelo engajamento social e popular nas causas dos múltiplos Direitos Humanos –, subverte-se em atavismo, um tipo de eterno retorno da inconsciência, do misticismo, das crendices.

·        Se o ativismo exige reconhecimento político da causa, o atavismo trabalha duro para que a Política seja desfeita;

·        Se o ativismo eleva a desmagificação (como “desencantamento do mundo”) e a necessária racionalidade processual (a exemplo do próprio Direito), o atavismo é complacente com a subsunção dos anteriormente declarados, democraticamente, imaculados direitos humanos fundamentais, individuais e sociais;

·        Se o ativismo faz da ação propositiva e não só reativa um elo fundante da consciência social e política, porque a práxis revê e revigora a concepção política original (teoria e tese), como parte sólida do mundo concreto em que se vive e atua, e a ser ele próprio repensado (antítese), o atavismo refuta qualquer perspectiva desse “mundo concreto-pensado”, porque não se pode, não se quer “pensar” para despossuir o domínio abusador;

·        Se o ativismo traz a Ideia de Síntese (inclusiva de Direitos Humanos), o atavismo é a antítese, o antípoda, dos mesmos Direitos Humanos que deveriam ser a síntese social;

·        Se o ativismo é projetivo, fertilizador do futuro (teleologia), a descortinar-se não-opressivo, o atavismo é arcaico, retrógrado, regressivo e repressivo. 

Hoje, porém, o Fascismo pode-se dar em formatos mais ou menos acentuados pelas características técnicas do século XXI, como é o caso da assim chamada “pós-verdade”, a partir do sobrepeso da mídias oficiais (tornadas reféns como Diário Oficial televisionado), das Fake News bijetoras das redes sociais de interação, das vontades e (in)determinações resultantes da consciência imagética – em que, efetivamente, uma imagem (manipulada ou não) vale muito mais do que mil reflexões –, do aceleramento das postagens do indivíduo/individualizado (que desconhece o Outro e a Outra) e do viral de si mesmo a ser compartilhado e dirigido pela inteligência artificial. Nesse caso, não deixa de ser profunda ironia a constatação de que a inteligência artificial, como quintessência da inteligência humana, seja utilizada exatamente para obnubilar qualquer criação inteligente e criativa.

Os nacionais se acostumaram a viver sob o mando do complexo de vira-latas. Isso nos disse Nelson Rodrigues: o verdadeiro Príncipe da Sociologia. Muito próximo dos dias atuais, definido hoje em estilo mais anacrônico, e ainda que indiferente ao cromo alemão, foi adorador dos preconceitos machistas e eurocêntricos.

Em todo caso, Plínio Marcos lhe faria companhia na cachaça e na loucura pra acabar com a hipocrisia da marca CBF, com suas “navalhas na carne”. Mas não acabou aí: para formar bem o grupo imaginemos um triunvirato, desses dois, mais Raul Seixas, arquitetando em 2018. O cabaré iria arder nas chamas do inferno ácido da crítica à desinteligência e à dissonância da Terra Plana.

Numa análise mais sofisticada sobre 2018/2022, talvez pudéssemos dizer que o lumpesinato empossou a estratocracia: governo militar movido por fake News e ignorância bruta. Se em 1964 havia um discurso nacionalista, de 2019 a 2022 vigorou só a boçalidade, a bestialidade, a violência, o embrutecimento.

O objetivo era dispersar a realidade, gerar desprendimento da segurança, mais o medo, a dissociação, o pânico plantado e fajuto, a desorientação com muita paranoia, simplesmente porque são engrenagens psicossociais de dominação dos aterrorizados ou "servos voluntários". Sob a regência, obviamente, da mais grave dissonância cognitiva, do emburrecimento complacente – admirando-se o pó e a sujeira.

Unimos o ultra-moderno ao mais arcaico: a melhor tecnologia digital do século XXI foi associada ao pior rebotalho terceirizado da história do sistema capitalista. A classe média das duas, uma: ou aderiu em frenesi, como no saldão das Casas Bahia, ou fez voto inútil.

Na democracia mínima, especialmente quando as forças políticas são equivalentes ou se organizam no mesmo espectro político, pode-se escolher ou se abster. No cenário fascista, entre barbárie e civilização, não existe o voto do tipo "ninguém me representa". Na pior das hipóteses seria um voto e militância "por exclusão". Porém, nesses tempos sombrios, apenas tolos e cínicos se esquivaram da análise e da práxis antifascista. Esta seria uma das mais claras lições da educação antifascista (Adorno, 1995).

Nesta novíssima modalidade golpista (Guerras Híbridas), o Judiciário nobiliárquico com seus rapapés atuou para criminalizar a Política (Polis – espaço público) e a mídia oficial injetou a vandalização e a demonização da esquerda, dos direitos humanos, do processo civilizatório, da convivialidade democrática.

No non sense criado, desde 2013 – com anarquistas caminhando lado a lado com as camisetas da CBF –, houve um crescente fluxo de desordem cognitiva, ética e cultural, a exemplo de bolsistas defenderem a privatização das universidades públicas.

A isto ainda podemos acrescer o fenômeno da Ditadura Civil e/ou militar – ou ditadura civil militarizada, em que os tanques de guerra não mais precisam ocupar a Avenida Paulista –, bem como a adesão carreirista do mundo jurídico, alguns porque veem somente a atividade economicista (advocacia) e outros (Magistratura e Ministério Público) porque se ocupam do poder para fazer carreira na administração pública abusadora da democracia, do Direito, da eticidade constitucional. Mas, é justamente desse lodo de distopia e negação da vida, imposição do caos, que ressurge a luta e a transformação libertadora que impõe politicamente a inclusão dos Direitos Humanos, tanto na pauta do poder central quanto na vida comum do homem médio.

 

Crimes contra a Constituição

         Quase todo dia vemos crimes cometidos contra a Constituição Federal de 1988 e, praticamente, pelos três poderes que agem em conjunto para este feito. A longa história de graves violações ou golpes contra a CF88 principia na década de 1990: o governo PSDB foi da negação (programada) da pragmática constitucional de políticas públicas inclusivas e sociais à emenda da reeleição. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu – outra vez – se aplicaria a criatividade a fim de se inverter o disposto textualmente na CF88, e mais uma vez a matéria fora a reeleição: da presidência da Câmara e do Senado[51]. Se não bastasse que outros poderes atentem contra CF88, em 2020 tivemos (outra vez) o STF negando textualmente a Carta Política[52].

         A esteira é longa, infindável, passando pelo Mensalão, movimentos infanto-juvenis de 2013 – com pregação de golpe à democracia –, Lava Jato, Golpe de 2016, reforma trabalhista que aniquilou o art. 7º da CF88, defesa de autogolpe militar (com leitura estrábica do art. 142 da CF88), além de 2019 que nos deu o recorde histórico mundial. É bem verdade que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem agido, algumas vezes, em defesa da unicidade da CF88 – a exemplo de negar provimento a quem pretendia ver o art. 142 como válvula de escape ao poder moderador imperial – ou em discursos em defesa da Carta Política[53], especialmente nas eleições de 2022.

         Enquanto denegação de fundamento educacional, no entanto, há uma em especial que devemos destacar e se refere à suposta desobrigação de se investir e manter cursos de Filosofia e de Ciências Sociais nas instituições públicas, especialmente nas Universidades Federais.

Porém, antes do argumento constitucional, precisamos indagar quanto teria custado à Alemanha a formação de apenas dois de seus maiores pensadores (Kant e Hegel)!?

Além de Max Weber e de Hannah Arendt, para não espicaçar os incautos com Karl Marx. Inclusive porque eles acreditam em terraplanismo e em “marxismo cultural”.

Será que os alemães não fariam tudo de novo, para garantir a partida dobrada como eixo funcional da Ética Protestante e das roldanas do capitalismo moderno? Se os neopentecostais soubessem disse não apoiariam tais ações.

Por outro lado, tem como medir o custo/benefício de um juiz de direito que nada sabe sobre sociabilidade, interação social, ressocialização, porque em seu curso não teve aulas de sociologia?

Provavelmente, Arendt diria: é o Fascismo instalado. E não haveria de ser diferente, quando uma liderança política da Namíbia, negro, é batizado de Adolf Hitler[54].

Ainda devemos dizer que este processamento disfuncional começou com Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a desregulamentação profissional da sociologia.

Assim sendo, o fato é que, além da desinteligência, o art. 207 da CF88 é claro, e óbvio, quando define a “autonomia universitária”[55].

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

...

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisa científica e tecnológica.

 

E também é óbvio que, se um governo não repassa recursos de custeio a esses cursos, está obrigando, na prática, a que as universidades públicas descumpram a Constituição.

O objetivo de se anular tais cursos é, igualmente, simples: demover a formação de massa crítica, militante e progressista no meio universitário. Querem formar lideranças, trabalhadores e profissionais obsequiosos, tementes a um deus-mercado e acalmados na miséria humana e social. 

Já se disse que um dos mais obtusos resultados dessas práticas é a “naturalização do ridículo”: a crença na distopia. A falta de sentido, de raciocínio lógico diante dos fatos, a troca da “verdade construída” pela mentira contada pela mídia corrompida, a adoração de Fake News nas mensagens de WhatsApp, é o que leva a aderir à desnaturalização do pensamento crítico. Certamente, há muitas formas de se atacar a educação pública.

 

O Necrofascismo desmantela o Estado em Rede 

Como o projeto de se tirar da cartola uma Constituição autocrática não vingou, deu-se início ao desfazimento do próprio Estado. O que também se observava na CF88, e de forma inequívoca desde o início de 2019, com investidas desmanteladoras das estruturas defensivas e propositivas de um tipo de Estado em Rede – em rede de assistência social, de promoção dos direitos fundamentais de populações já debilitadas pelo processo histórico, de minorias[56] e de temáticas específicas que traziam reportagens definidoras do papel do Poder Político na edificação do Processo Civilizatório.

Apenas a título de exemplificação, pelo decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, em ação monocrática, o governo federal decretou o fim da Constituição Federal de 1988 (CF88). Se pensarmos bem, com o decreto, decretando a inexistência de Colegiados públicos e sociais, populares e com “participação ativa” da iniciativa pública e privada, como Conselhos, Comitês, Comissões, Grupos, Juntas, Equipes, Mesas, Fóruns, Salas e “qualquer outra denominação” (art. 2º, incisos I a X), o governo federal pôs fim ao Princípio da Legalidade. Se os Colegiados decorrem de imposição constitucional e se foram criados por “força de lei”, pela lógica da pirâmide jurídica, não poderiam ser liquidados por um decreto. A título de ilustração segue uma breve descrição dos Colegiados atingidos e extintos, logo após a posse em 2019:

1.   Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).

2.   Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT).

3.   Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena.

4.   Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH).

5.   Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua.

6.   Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (Cnaeja). Comissão Nacional de Florestas (Conaflor).

7.   Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

8.   Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).

9.   Conselho Superior do Cinema (CSC).

10.               Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI).

11.               Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC).

12.               Conselho das Cidades (Concidades).

13.               Conselho da Autoridade Central Administrativa Federal contra o Sequestro Internacional de Crianças.

14.               Conselho Deliberativo da Política do Café (CDPC).

15.               Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf).

16.               Conselho de Desenvolvimento do Agronegócio do Cacau (CDAC).

17.               Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP).

18.               Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (Conpdec).

19.               Conselho de Recursos da Previdência Social (CRPS).

20.               Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp).

21.               Conselho de Relações do Trabalho (CRT).

22.               Conselho de Representantes dos Brasileiros no Exterior (CRBE).

23.               Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit).

24.               Comissão Especial de Recursos (CER).

25.               Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD).

26.               Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio).

27.               Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).

28.               Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (Cadara).

29.               Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI).

30.               Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia (CMCH).

31.               Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO).

32.               Comissão Nacional dos Trabalhadores Rurais Empregados (Cnatre).

33.               Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). 

Pois bem, a CF88 prescreveu exatamente ao contrário do decreto de extinção dos Colegiados, promulgando deveres sociais e responsabilidades públicas. Frisando-se que esses artigos, pelo mínimo de escolhas, são obsoletos sem a participação frutífera dos Colegiados:

Art. 144 – Segurança Pública.

Art. 187, VI – Política Agrícola.

Art. 194, VII – Seguridade Social.

Art. 198, I, II e III – Saúde.

Art. 204, I – Assistência Social.

Art. 205 e 206 – Educação.

Art. 225 – Meio Ambiente.

Art. 227 – Família. 

Sem o juízo de valor político-ideológico – que possa escapar ao alcance da lei – observamos aqui apenas o desfazimento da Constituição Federal de 1988. Como Carta Política – e também só como ilustração –, os artigos selecionados não podem ser contabilizados sem a observância e a fruição das ações políticas e institucionais no formato dos Colegiados, uma vez que requerem a ação tripartite ou quadripartite. Além de se constituir em ação com obrigação pública de fazer ou de obrigatória participação “de todos”, da sociedade ou da família. Nenhum Colegiado jurídico pode quedar inofensivo diante de tanta quebra institucional, com evidente violação ferina da Carta Política de 1988.

No Fascismo, ocorre, instrumental ou estrategicamente, uma confusão deliberada entre Estado de Direito e de uma concepção de que a justiça, necessariamente, só seria válida se identificada com o aparato estatal: chama-se Estado Judicial. Esse Fascismo ainda buscaria prover a moral oficial[57]. Com as medidas extremas do poder público, aniquilando as liberdades civis e a ética jurídica, o que não muda é a realidade de exclusão e de miséria social[58].

É também sob este sentido que o Estado de Sítio Político, igualmente, apresenta-se como estado latente da metamorfose do poder absoluto e que mantem um sobrenome na suposta regularidade jurídica.

 

Justiça Política Restaurativa no Estado Democrático de Direito 

Há dúvidas se enfrentamos um Estado de Exceção (2019/2022), se protagonizamos um jeito particular de Fascismo, ou se a extrema direita representativa do capital financeiro tomou o poder (direta ou indiretamente). De qualquer modo, precisamos de posições enérgicas contra os assaltantes do poder: em parte o STF vem julgando e condenando alguns dos agentes do 8 de janeiro.

Isto chamamos de Justiça política restaurativa: entendemos a necessária punição de quem atenta contra o Estado Democrático de Direito, no máximo rigor da lei os que buscaram atacar o Estado Democrático de Direito[59], quer seja no âmbito do direito penal, quer seja em processos de reeducação dos apenados, a fim de que conheçam o que é democracia e República, e reconheçam a validade dos direitos humanos fundamentais.

Fez-se algo assim no pós-Segunda Guerra Mundial, na Alemanha que precisava se reumanizar. Não se trata de “vingança pública”, mas sim do cumprimento da própria Constituição[60]. Então, em suma, trata-se de punição e de reparação dos danos perpetrados aos bens públicos, ao patrimônio público (material e imaterial), aos interesses públicos. O que não deixa de ser uma ilustração do que Saviani (1989) denomina de “curvatura da vara”[61] – uma guinada de 180 graus na ideologia dos terroristas institucionais, em direção ao respeito institucional republicano, federativo e democrático[62].

         Por sua vez, este sentido que emprestamos do direito penal (justiça restaurativa) e que já socorre populações, grupos, minorias sociais[63], seria entendido de forma extensiva, no âmbito do direito constitucional, para que o melhor resultado pró-societas (em favor da sociedade) fosse alcançado. Em si, isto já configura algum esforço realista quanto ao Princípio Pedagógico possível, alcançável, em termos de ressocialização, reeducação, voltada ao reingresso dos apenados (indivíduos e empresas) no seio social.

De outro modo, de forma esclarecedora (de real Esclarecimento), emancipatória, civilizatória, e já a partir do ensino fundamental, o ensino da Constituição Federal de 1988 (CF88) – notadamente como Carta Política, Constituição destinada ao espaço público (Martinez, 2021) – atuaria como vacina político-jurídica contra ataques e terrorismos futuramente; pois, desde cedo, as crianças e os jovens aprenderiam que o Estado Democrático de Direito é anseio social e deve ser protegido e promovido por toda a sociedade. No fundo, também estaríamos falando de uma forma de educação destinada ao convívio no espaço público, de forma republicana, democrática, em respeito à Federação brasileira, ao Processo Civilizatório e à diversidade cultural.

         É possível pensarmos essa questão de modo teórico e prático, por meio de demonstração e de consolidação dos princípios aí envolvidos? Sim.

Desse conjunto de críticas poderíamos avançar para a proposição de processos educacionais que tanto trouxessem marcos inquestionáveis quanto à autonomia, isonomia, equidade, Justiça Social, quanto para métodos e aforismos constitucionais igualmente consagrados: falamos aqui dos pressupostos da CF88 e de seus princípios basilares.

A autoridade baseada no conhecimento destaca legitimidade porque o saber é constituído de forma compartilhada, dialogada, intervindo o contraditório. Com o conhecimento social produzido com a aproximação entre as pessoas e as comunidades, os aparelhos repressores de Estado se veem modificados em instrumentos institucionais de negociação: a presença ostensiva se converte em presença constante. Exemplo desta vivificação do princípio democrático é-nos trazido pelo Policiamento Comunitário que ainda congrega a presença do Corpo de Bombeiros e porventura alguns outros equipamentos sociais.

A meritocracia (hierarquia do conhecimento), ao contrário, não resolve por si a questão uma vez que sem as mediações dos sujeitos, formas constitutivas de mecanismos de comunicação aberta, a hierarquia destacada pelo “saber acumulado” denota elitismo e estratificação. Compartilhar o conhecimento é estabelecer o princípio democrático, erigido pela isonomia dos discursos. A lógica presente na mera imposição hierárquica na ordem de comando (Segurança Pública e demais aparelhos repressivos do Estado) não condiz com a expansão horizontal do conhecimento, porque também acumula “segredos de Estado”.

A lógica própria à Razão de Estado não admite a comunicação e divulgação, de tal modo que os discursos são aprisionados na estrutura mecanicista do comando, via de regra ofuscado por suposto mérito. Assim, a ideia de uma segurança comunitária é inovadora e pode fazer frente ao Estado Penal – como sinônimo de repressão e de criminalização. Em suma, o conhecimento político está para a democracia horizontal (formulado em meio à troca de mensagens políticas livremente postadas no cenário público), assim como a meritocracia está para a acumulação provinda de um saber compartimentalizado. Aqui aprendemos que a educação fortalece elos entre equidade e isonomia, igualdade e liberdade.

 

Da igualdade primordial        

O direito à igualdade é um postulado resultante da luta política e ocorre no bojo da luta de classes e, por si, não é só Direito – como se costuma entender o direito público-subjetivo, até porque a igualdade não é uma subjetividade. Ou é objetiva ou objetivada, a exemplo do cumprimento da Constituição Federal de 1988 (art. 1º) e das políticas públicas que um dia daí decorreram, ou é um tipo de “imperativo” que se cumpre se quiser. Isto é, como subjetividade, a igualdade “deixa-de-ser” ou simplesmente “nunca-foi”.

Também por isso o princípio e o direito à igualdade ou é real, como um “dever-ser” (ainda que na forma de um vir-a-ser teleológico que se objetiva na luta política), e aí sim constitui-se na forma de direito fundamental (com “força de lei”), ou é quimera, placebo que em nada fere as estruturas do racismo, machismo, misoginia, elitismo. E é desse placebo antijurídico que se espraiam as formas variadas, intercambiantes, do Fascismo: forçosa seleção natural, darwinismo social, eugenia, segregação, guetualização, apartheids da vida pública, solução final.

         A igualdade não pode ser um direito subjetivado, mesmo que público, simplesmente porque a dignidade humana é a raiz do direito democrático; assim como, outrora, esteve a violência (base do efeito coercitivo) na origem do próprio Direito. De outro modo, princípios, direitos e garantias à liberdade (isegoria), igualdade (isonomia), equidade (justiça), dignidade, ou são objetivados com real expressão normativa, constitucional, ou não são fiduciários do direito democrático e humanizador.

Essa transformação da subjetividade em fato objetivo é, concomitantemente, o predicado e o resultado da luta política. Ou assim se faz, enquanto nomos da terra democrática, tensionado pela via política, ou permanece como “fato social”; porém, distante, apartado, da vida real e comum do homem médio. Esta também seria uma das diferenças da ideologia (do Direito enquanto ideologia) e do Direito com fundamento científico.

Esta, igualmente, será a principal diferença entre os aparatos legais opressivos, manipuladores, esfumaçantes dos meios de manutenção da desigualdade (madrinha do racismo e pai do fascismo), e o Direito como meio (medium) apto à substituição total da violência social e agente da emancipação humana. Esta ainda será a real diferença entre a ideologia jurídica (“dominação racional”, mas de fundo racial) e a luta política pelo direito – no âmago da luta de classes.

Por isso, a emancipação é ampla, profunda, radical (nas raízes da desumanização) ou a ideologia jurídica se mantém como “ficção jurídica”; só que não no sentido da ficção que leva à crença (tipo contrato social), como liame social desejado, como “esperança de justiça”, mas sim no formato do “discurso de autoridade” que aos gritos cancela o esforço histórico de homens e de mulheres, sobretudo de mulheres e, muito mais especialmente, de mulheres negras pobres: na linha de front do racial-fascismo.

         Não há outra forma de entender a Constituição de 1988, no tocante aos preceitos e direitos humanos fundamentais, a não ser como Carta Política destinada à emancipação, à desocupação das raízes fincadas nos calabouços, das senzalas que vicejam a céu aberto em pleno século XXI. Certamente este foi o maior desafio plantado em 1988, desabrigar do poder e do controle social as ideologias e as práticas senhoriais, racistas e fascistas, que sempre segregaram e destruíram a dignidade do povo.

Esta também é uma das grandes diferenças de quem lê a CF88 com apego simplificado às tecnicalidades (sem olvidar da importância da Técnica Constitucional), todavia, em desproveito da própria História Constitucional. A Constituição, a fim de se enraizar como Esperança Constituição (vir-a ser, “assenhorando-se”), só é possível como Carta Política, ou melhor, como efeito da Política Constitucional: a Política (da Polis) que se faz enquanto corpo jurídico. Esta é a natureza jurídica, a nomologia editada em 1988 para fins de salvaguardar direitos humanos fundamentais, como húmus da dignidade humana – e inseparável que é da liberdade, da igualdade e da Justiça Social.

Este é o escopo constitucional protetivo e prospectivo (a perfectibilidade da democracia social), afirmado na Carta Política de 1988, que devemos ter em mente, se objetivamos “objetivar” o combate ao racismo/fascismo; bem como deverá ser o guia político-jurídico de todo o nosso esforço. Faz-se aqui, portanto, uma proposta analítica, prospectiva e crítica dos enredos e das tramas sociais que afligem e vitimam diretamente mulheres, negros, indígenas, pobres, trabalhadores, hipossuficientes de todo gênero e oprimidos sem fim.

Sem o caráter promotor de dignidade, a Carta Política é só uma Constituição de Papel – sem validação humanitária – e até antijurídica. A dignidade, por óbvio, pressupõe a não-exclusividade ou, pelo contrário, a inclusão normativa que assegure a isonomia política, a defesa da democracia, a igualdade no “fazer-se política”, a promoção das minorias que podem vir a ser maioria constitucional (contra-majoritárias) e, também obviamente, um tratamento de “equidade” que faça alinhar os pratos da Justiça Social.

Como princípio jurídico, a tutela da dignidade humana (também na sua irradiação sobre direitos fundamentais específicos) é um dado prévio para o “Estado” e o “povo”, assim como para todas as derivações do governo e de nexos de responsabilidade ou de “legitimação” entre o povo e os diversos órgãos e funções do Estado (Häberle, 2007, p. 21). 

         Pois é a dignidade que inclui, limita e legitima a própria soberania popular. Isto é, tudo pode a soberania popular, desde que avolumada pela dignidade humana, e tudo pode na quadratura da Política, da Polis, do espaço público inclusivo e emancipador: “Dotada desse critério de aferição, a dignidade humana como direito à participação na definição da política (cf. agora os arts. 21 a 24 da Constituição do Estado de Brandenburgo) é um direito fundamental à democracia” (Häberle, 2007, p. 23).

E esta é exatamente a substância da Carta Política, ao passo em que constitucionalizam as Liberdades Negativas, restritivas ao Poder Político de se constituir em autocracia. Alimentando-se o Estado Constitucional contra disposições autoritárias ou totalitárias, pode-se assegurar que só há dignidade humana se houver fruição do direito à participação na definição da Política. Sem isso – isonomia na Política – nem há o direito como universalidade cultural, como experiência vivida[64].

         O intérprete legítimo da Constituição (Häberle, 1997), neste viés, está autorizado a se valer dos “direitos fundamentais à democracia” para fazer o Bem Constitucional – vetor inclusivo na Política – tanto quanto está obrigado (“obrigação de fazer política democrática”) a refrear a má constitucionalidade, em combate ao Fascismo, à autocracia, à exclusão, as manobras, chicanas e transmutações constitucionais que aprofundam a desigualdade e a injustiça.

A “soma” desses titulares de direitos fundamentais enquanto pessoas individuais significa, num sentido ideal, também uma soma de direitos fundamentais que são constitutivos para o povo no Estado Constitucional [como] direitos fundamentais à participação democrática [é) a configuração concreta da “camada” da cidadania ativa na cláusula da dignidade humana [pois] o nexo interno entre a dignidade da pessoa – compreendida também em termos políticos – e dos direitos eleitorais democráticos é especialmente estreito no Estado Constitucional. Localiza-se na sua “raiz[65]” (Häberle, 2007, p. 24). 

A isonomia (antes política, do que jurídica), em lição clássica, sobretudo na seara das relações políticas, não se efetiva sem o “direito de dizer não” (isegoria). Tendo-se em conta que só é legítimo “dizer-não” ao antidemocrático, além de ser obrigação de servir à democracia.

Na fase seguinte à experimentação da Ágora, outros direitos à democracia foram insculpidos (tanto pelo liberalismo e sua teoria democrática, quanto pelo socialismo): “O conceito de ‘liberdades de comunicação” [...] principia com a tríade da liberdade religiosa, artística e científica” (Häberle, 2007, p. 25). Todavia, sem as liberdades políticas, como fruição da Política, não há liberdade alguma – especialmente porque, vale frisar, não há liberdade sem isonomia, ou seja, sem dignidade.

         O Estado de Direito, na Carta Política, por sua vez, mais do que uma série de definições do próprio Poder Político, é uma segurança política dada às garantias constitucionais de que a Política não será esvaziada e nem o Direito será posto a serviço de práticas políticas oligárquicas, excludentes e de excepticio.

...o Estado de Direito, juntamente com muitos dos seus detalhamentos, tais como a separação dos poderes, a independência do terceiro poder, a proteção de minorias e sobretudo a assim chamada “cláusula pétrea” (.g. art. 59, § 3, da Lei Fundamental normatiza um limite para todas as formas da democracia). Nas esferas centrais, a justiça e o direito (“Estado de Direito”) não estão disponíveis para o assim chamado “governo do povo”. Como elemento cultural, são literalmente anteriores ao povo como grandeza de orientação: “governo do Direito”. Dito de forma esquemática: nem todo o Direito emana do povo, mas todo e qualquer Direito deve ser pensado a partir da dignidade humana! [...] Uma conquista do Estado Constitucional desenvolvido em muitas gerações consiste precisamente em literalmente “prescrever” uma grande parcela de “Direito”, como “grandeza de orientação” [...] Justamente na defesa contra sistemas totalitários, os limites da democracia liberal tornam-se sempre de novo necessários (Häberle, 2007, p. 27 – grifo nosso).

          O Estado de Direito, como visto – historicamente e epistemologicamente –, no bojo do Estado Constitucional está a cargo da promoção da Política, da Justiça Social, do Direito verdadeiramente democrático.

Por todo o exposto, a Carta Política, como constitucionalização da democracia e dos direitos humanos fundamentais, é uma conquista da Humanidade e não pode ser conjurada, remediada, alterada – por reformas, mitigações, negações, tergiversações – sem que se cometam graves crimes contra a Humanidade.

 

A Carta Política de 1988 e a defesa do social

Princípio da Não- Retrogradação Social ou Princípio do Não-Retrocesso Social        

         Mencionemos três assertivas ou premissas:

A Constituição Federal é programática.

Os direitos sociais fundamentais são guardados por cláusula pétrea.

O Princípio do Não-Retrocesso Social não pode ser abolido, nem mesmo modificando-se a CF88 ou, sequer, submetendo-a a interpretações oportunistas do Texto Constitucional. Porque é um princípio geral do direito democrático e humanizador, que decorre do conjunto complexo dos direitos humanos e assim consta como conquista jurídica da humanidade.

E há ainda uma assertiva inicial do Estado Democrático de Direito que precisa ser enunciada e fixada com a “força da lei”:

·        O direito democrático e justo não permite a desregulamentação ou a flexibilização (menos ainda a terceirização) da solidariedade e da justiça social. Simplesmente porque a CF88 nasceu com o selo da dignidade da pessoa humana, prontamente apta em princípios a ser um guia constitucional do Princípio Civilizatório. Como Carta Política, a CF88 foi promulgada com o objetivo reto (a menor distância para a justiça) de promover a socialização. 

Porém, se assim é, por que proibirem as pesquisas e avaliações públicas sobre a chamada reforma da Previdência Pública? Será que o povo, mais ainda os mais pobres, não deve saber o que o Estado sabe ou o que, efetivamente, o Estado pretende com isso?

Desta negação constitucional, praticada desde 1990, sobreveio o que podemos chamar de Golpe à Constituição Cidadã:

·        A chamada “reserva do possível”, reservadamente, continuamente, desobrigou o Estado a atender aos direitos sociais como direitos fundamentais, resguardados como cláusulas pétreas. 

O que foi convencionado como “reserva do possível” – na prática não cumprir a Constituição, em sua “obrigação pública de fazer”, de acordo com o interesse social – não pode, por óbvio, impor uma reserva de isenções que tornem impossível ao social ser um espaço público em que o Poder Político deve agir, pragmaticamente, a fim de debelar a injustiça e a miséria humana. 

O resultado é simples:

·        Esta inversão constitucional acabou por retirar a primazia de que a CF88 é uma Constituição Social (de justiça social) e tratou-a, na prática economicista, como uma Constituição que deve servir ao mercado, e não mais à sociedade. 

Como Carta Política, a CF88 teve em sua matriz – em que pese todas as lutas políticas para sua feitura – uma opção sistêmica (“opção preferencial”) para erradicar a miséria e a pobreza indigentes, e uma opção sistemática para a inclusão política e para a emancipação da cidadania. Portanto, todo o histórico que se desenvolveu em seus 30 anos de promulgação, quando agem em contrário apenas reanimam e reforçam os golpes constitucionais de longa data e que, a partir de 2016, desembocaram numa real Transmutação Constitucional: uma metamorfose político-constitucional que virou a Constituição Cidadã no seu avesso – e num sentido negativo, de oposto, contraditório, contrário, como expressão antagônica ao previsto desde 1988.

Cabe ainda mais uma reflexão:

·        O preâmbulo deste artigo se ampara no fato de que a Constituição Federal de 1988 é programática, ou seja, além de desenhar o Estado de Direito, a CF88 tem a obrigação constitucional de promover a erradicação da miséria e da pobreza aviltantes de seu povo: foi programada para isso. Portanto, todas as ações/inações em contrário, ou em favor exclusivo do mercado financeiro ou especulativo, são inconstitucionais desde a origem. 

Se os direitos sociais fundamentais (art. 6º da CF88) são cláusula pétrea, todas as políticas públicas já alcançadas, além de aprimoradas, devem ser estendidas – e jamais restringidas –, elevando-se a capacidade de o Estado cumprir com seus princípios-deveres (art. 3º da CF88). A CF88, enquanto mapa teleológico, deve ser um guia, uma bússola moral, para que o cipoal seja retirado da frente das políticas públicas.

A prevalecer a CF88, o Poder Público deve estar em equilíbrio institucional, mas não em pódio centrista, pendendo ou podendo cair do muro em qualquer dos lados que arregimente mais poder ou sob judice da “lei do mais forte” (Mészáros, 2015). Neste momento, ao contrário de 2020/2022, tendentes à barbárie fascista, com enorme constrição de direitos e de garantias fundamentais, a partir de 2023 tentamos pautar a Justiça política restaurativa no bojo do Estado Democrático de Direito.

         Por sua vez, ao contrário dos piores períodos recentes, a CF88 é expressa a fim de que Hamlet (Shakespeare, 2004) não nos coloque como o “não-ser”. Esta opção não é válida à vida humana e social. Foi assim que se desenhou o art. 225 da CF88, a Amazônia, o Pantanal e os manguezais (também os Pampas, o Cerrado, a Caatinga): prioridade – para que “sendo”, também possamos ser.

·        Como patrimônio nacional – natural, social, cultural (art. 225, § 4º, da CF88 – a preservação do meio ambiente nos inclina diretamente ao Processo Civilizatório (art. 225, caput).

·        Assim, a teleologia é esta bússola moral que nos preserva enquanto vida social, garantindo-se que o presente e o futuro das próximas gerações seja uma realidade e não uma evidência.

·        O meio efetivo, o mecanismo político-jurídico, de Segurança Constitucional ao Processo Civilizatório também está inscrito na Carta Política de 1988: trata-se da integridade do patrimônio genético e a ativação do Princípio da Diversidade (225, II).

·        Quando isto não ocorre, como diz Hamlet, é porque há algo de muito podre no Reino da Dinamarca e mais ainda no Brasil de 2016-2022.

·        Enfim, concluindo-se parcialmente este aspecto, pode-se dizer que precisamos expandir o direito à consciência que nos permita entender que toda Constituição tem uma unidade política; todavia, como Carta Política, na CF88 prefigura-se uma utilidade política, notadamente, para que nenhuma cidadã, nenhum cidadão, pergunte-se se é ou não. 

O que fazemos ao buscar orientação para uma ciência da CF88 não deixa de ser a aplicação de uma técnica ao próprio Texto Constitucional. Entretanto, tanto esta forma de abordar, inquirir, a CF88, quanto o próprio Objeto Positivo da CF88 – Princípio da Inclusão dos Direitos da Cidadania – são manifestações culturais; não são técnicas ou ciências positivistas no sentido específico de obtenção de neutralidade ou equidistância do conhecimento. Pelo contrário, trata-se de conhecimento técnico, político-jurídico, a serviço da militância em favor dos direitos de cidadania (Borja, 1998, p. 115).

Do mesmo modo, sob o alcance do Objeto Positivo da CF88 (pluralismo, mutualismo e multiculturalismo[66]), técnica e ciência aplicadas à CF88 são de natureza político-jurídica, e isto quer dizer que se autorreferenciam como inclusão e manifestação cultural do Conteúdo Constitucional (Borja, 1998, p. 115). De tal sorte que, à frente do realismo político, deve-se diferenciar os direitos políticos quando se observa a análise do cientista político e do jurista – propriamente dito (Borja, 1998, p. 118).

No que se refere ao Processo Civilizatório em destaque na CF88 – desde o art. 4º, IX e 215, § 1º – já fica sobrestado também que deve receber auxílio, nesta inicial Ciência da CF88, da Filosofia (ou Filosofia Constitucional), da Sociologia, da Antropologia Política, da Ciência Política, notadamente quando se referenciam os povos da floresta e todas as populações marginalizadas pelo próprio Estado de Direito, uma vez que só reconhecem o poder do giroflex (Borja, 1998, p. 118). 

Desse modo, reforçamos as diretrizes da CF88 e o emprego de uma metodologia constitucional que devemos fixar nesta leitura da Ciência da Carta Política. Neste sentido, entendemos que a Ciência da CF88 é mais devedora das Ciências Sociais e da Filosofia Constitucional do que de uma nomologia positivista – ainda que seja essencial enquanto conhecimento técnico a contribuir com a Luta pelo Direito. Uma leitura apurada dos direitos fundamentais individuais e sociais revela que a CF88 é inclusiva, emancipatória, cultural e expansiva.

A Ciência da CF88 traz as marcas do Constitucionalismo Moderno – Estado de Direito Democrático de 3ª Geração (por exemplo, com a internacionalização do direito à soberania: um tipo de internacionalização da liberdade negativa) – e, no caso em tela, da Ciência Política (ou mais precisamente da Teoria Política) e da Filosofia Constitucional, da própria Ética Constitucional, da Antropologia Política (fortemente cultural) e de outros substratos e constituições – por analogia, comparação, dedução.

Esta forma de metodologia angaria-se da História, sobretudo da História Constitucional, e da indução, sobremaneira quando pensamos que referências apostas aos arts. 4º, IX e 215, § 1º, são mais do que divisores de valores; antes de tudo, são indutores de padrões civilizatórios que devem guiar (constitucionalmente) a sociedade, os indivíduos e o Poder Político. Se isto não ocorre, como se sabe, o problema não é constitucional, mas sim da condição social e do realismo político enfrentando no país, mormente, sob os ganchos do Fascismo Nacional ou Necrofascismo.

Assim, afirma-se uma abordagem da CF88 que repudia todo sentido autoritário, a exemplo daqueles que defendem o art. 142[67] como afirmação de um suposto “poder moderador” a dar base a uma Constituição Cesarista. Pela imposição do Princípio da Unicidade Constitucional[68] e pela interposição do Princípio do não-Retrocesso Social, esse tipo de hermenêutica é ridicularizado.

 Ao contrário disso, a Ciência da CF88 deve perceber, ressaltar que se trata de uma Constituição Antifascista, anti-cesarista, e isto ainda revela muito do que seja a Ciência da CF88 – como Carta Política decisiva à socialização e ao humanismo. É obvio, portanto: apregoarmos que o Processo Civilizatório só se faz presente com garantias efetivas às gerações futuras (art. 225) e mediante a compreensão de que a Ciência da CF88 enfatiza o patrimônio cultural, ambiental, institucional, social.

         A seguir, iniciamos com breve apresentação do que inferimos como Ciência da CF88.

 

CAPÍTULO III

A Ciência na Carta Política de 1988

Toda Constituição é Política

        

E como seria a composição desta Ciência da Carta Política de 1988?

Como orientação geral temos que ter presente que faremos uma subsunção às avessas, da Norma Constitucional à Política – ou à sua ausência. A consciência social exige que se faça esta conversão, da CF88 à Política, especialmente para que o “fazer-se política” tenha um substrato jurídico-democrático.

Primeiramente, cabe relembrar a constatação óbvia de que o realismo político fez a CF88 ser compromissória (ainda que também seja compromissada com os direitos fundamentais), ou seja, os muitos recortes de classe que estão na formação social nacional migraram para o Texto Constitucional, como reflexo jurídico dos grupos e das forças políticas atuantes na época: daí as muitas limitações/contradições. Ainda temos de retomar a observação de que, historicamente, sempre se mantiveram atuantes muitos dos poderes de César (1999) ao Executivo: superpresidencialismo ou presidencialismo de coalizão[69], ou ainda poderes de Kaiserpresidente – tal qual se depreende do artigo 84 da CF88, combinando-se chefia do Governo, do Estado e da Administração Pública.

Por outro lado, seguindo-se ao sistema de freios e contrapesos – e ainda que pudéssemos pensar em fórmulas mais técnicas e menos partidarizadas – a CF88 distribuiu a lógica da separação do poder em vários capítulos. Um exemplo é o que dispõe o Art. 73, mais claramente, no seu § 2º:

·        Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão escolhidos:

I - um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento;

II - dois terços pelo Congresso Nacional. 

Os incisos I, II, III, IV, do § 1º, constam como regras de condução republicana:

·        Os Ministros do Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes requisitos:

I - mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade;

II - idoneidade moral e reputação ilibada;

III - notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública;

IV - mais de dez anos de exercício de função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos mencionados no inciso anterior. 

No sentido geral replicam o senso republicano (a vocação pública) que segue um balizamento jurídico bem especificado:

De maneira geral, exercer uma função pública consiste em cumprir uma tarefa de interesse público (político, técnico, administrativo, judiciário) no âmbito de uma coletividade pública. Mas é o ponto de vista orgânico, mais restritivo, que chama a atenção do jurista: o direito da função pública é o direito aplicável à atividade profissional das pessoas que trabalham nas administrações públicas (Alland & Rials, 2012, p. 828). 

Vimos que há uma tentativa de balanceamento na formação do avaliador, fiscal dos poderes. Mesmo imperfeita, neste caso, parece mais salutar do que as indicações/nomeações dos ministros do STF pela Presidência da República – isto sim parece afrontar o bom senso, uma vez que se pode escolher os próprios juízes.

Vale ressaltar que o sistema de freios e contrapesos é parte essencial da estrutura republicana que exerce controle sobre o poder no Estado de Direito. Nesse aspecto, a Constituição Dirigente, garantista e participativa é o tonos a ser guindado. Frise-se que o art. 74 da CF88 reforça o sistema de freios, contrapesos e controle entre os poderes, e, no § 1º, estabelece e amplia as responsabilidades:

·        Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária (grifo nosso). 

Bem como no § 2º assegura uma multiplicidade de atores da cidadania com o objetivo de se ampliar e assegurar a participação popular:

·        Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União (grifo nosso). 

Verificamos ainda que, sob a análise da Ciência da CF88, é importante desde já destacar a imposição dos direitos fundamentais como reserva limítrofe à definição do Poder Político:

A Constituição brasileira se reveste de uma forte dimensão prospectiva, na medida em que define um “horizonte de sentido”, que deve inspirar e condicionar a ação das forças políticas [...] O sistema de direitos fundamentais é o ponto alto da Constituição [...] A Constituição cuidou ainda de proteger os direitos fundamentais do poder reformador, tratando-os, pela primeira vez na história constitucional brasileira, como cláusulas pétreas explícitas (art. 60, §4º). Além dos direitos universais, a Constituição também voltou os seus olhos para a proteção dos sujeitos em situação de maior vulnerabilidade, instituindo normas voltadas à defesa de mulheres, consumidores, crianças e adolescentes, idosos, indígenas, afrodescendentes, quilombolas, pessoas com deficiência e presidiários [...] Neste sentido, tratou-se da primeira de nossas constituições a contemplar alguma abertura para o multiculturalismo, ao incumbir-se da proteção das diferentes identidades culturais e étnicas que compõem a Nação brasileira (e.g., arts. 215, 216, 231 e art. 68 do ADCT[70]) [...] Além dos direitos fundamentais, o outro “coração” da Constituição de 88 é a democracia [...] Porém, a Constituição não se contentou com isso, propondo-se a democratizar não apenas o regime político, mas também as relações sociais, econômicas e culturais – tarefa ainda mais árdua e complexa [...] foi a primeira a atribuir expressamente a natureza de entidade federativa aos municípios, ampliando a sua autonomia (Neto & Sarmento, 2016, p. 171-173 – grifo nosso). 

Cláusulas pétreas são cláusulas de pedra, isto é, não podem ser removidas, alteradas, são insolúveis, perenes. Portanto, para uma Ciência da CF88 o Objeto Positivo da CF88 poderia ser referenciado como Estado Democrático de Direitos Fundamentais, com vistas à igualdade, liberdade e dignidade humanas[71]. Uma vez que condensaria na terminologia a forma-Estado e os direitos albergados: “O sistema de direitos fundamentais é o ponto alto da Constituição [...] o outro “coração” da Constituição de 88 é a democracia” (Neto & Sarmento, 2016, p. 171-173 – grifo nosso). Não se trata de um conceito, mas sim de uma metáfora empregada para efeito de visualização de uma retórica afirmativa da forma-Estado que se vislumbra na CF88.

Do princípio do Estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e manutenção de um nível mínimo de continuidade da ordem jurídica, além de uma segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo em geral. (Sarlet, 2015, p. 464) 

Vimos que as cláusulas pétreas – notadamente designadas à proteção dos direitos fundamentais – são uma potente Garantia Constitucional contra o uso deslegitimado dos meios de exceção e a subsequente imposição de alguma forma de regime de exceção. Desse modo, o próprio instituto da exceção requer análise jurídica: especialmente a partir da Constituição de 1937 e do AI-5, em confronto a de 1988. Este comparativo, por sua vez, é um modo seguro de afirmarmos a Ciência da CF88 com base na imposição epistemológica que salta à realidade política quando se observa a conquista histórica. Neste sentido amplo, as cláusulas pétreas são uma forma de exceção no conjunto da própria CF88, pois são eixos norteadores, balizas de firme orientação, sem possibilidade de que sejam removidas, pois, como alicerce e viga de sustentação, garantem todo o Edifício Constitucional.

No caso do processo de impeachment, como forte exemplo, note-se que se trata de uma exceção, mesmo no tocante à procedimentabilidade que se observa nos demais processos. Mais especificamente, é preciso saber que se trata de um processo jurídico-político e que, aos demais processos, salvo as exceções (também), vigora a regra de que: “o que não está nos autos, não está no mundo”. Com ou sem exageros positivistas, trata-se de evitar conduções, apurações, decisões além das previstas na legalidade ou contra ela: ultra petita, extra petita ou contra os autos. O exemplo notório é a famosa Operação Lava Jato. Ainda referente ao embasamento do pedido de impeachment, ressaltemos a Previsão Constitucional:

·        Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento (grifo nosso). 

Ressaltemos que o impeachment – processo jurídico-político e não o inverso – deve, como qualquer outro processo, obedecer a requisitos básicos, como: autoria e materialidade danosa. E o que se pode entender por exceção?

Derivado do latim exceptio, de excipere (executar, fazer ou alegar exceção) [...] Ora pode significar a reserva, em virtude do que se deixa de lado, ou não se inclui uma certa coisa, equivalendo mesmo no sentido de exclusão. Ora entende-se a derrogação de um princípio ou de uma regra, em virtude da qual se isenta o ato ou a pessoa da obrigação ou imposição nela contida. Revela-se, então, um privilégio, uma isenção ou mesmo uma exclusão. Mas, no rigor da técnica processual ou forense, e num sentido propriamente jurídico, é o vocábulo indicativo de toda defesa articulada por uma das partes, principalmente, do réu, ou para opor-se ao direito adverso ou para excluir à ação, seja temporariamente, seja para sempre. Dessa forma, como defesa, ou investe a exceção diretamente sobre a ação, opondo-se às pretensões do adversário, ou traz as razões para impedir o andamento do feito, dilatando-o até que se remova a causa excepcionada, ou se torne perempta a demanda, pelo reconhecimento da razão alegada (De Plácido e Silva, 2002, p. 330 – grifo nosso). 

De certa forma, em paráfrase, pode-se dizer que é legítima a ação que vise proteger a coisa pública, a democracia ou a própria CF88. Ainda que se possa discutir, por exemplo, da oportunidade ou não de se invocar a Lei de Segurança Nacional – resquício da ditadura de 1964 – a fim de se preservar a segurança ou a incolumidade do Legislativo ou Judiciário, principalmente, do Supremo Tribunal Federal (STF). Não deixa de ser uma espécie de ironia jurídica (muito fina, cheia de sutilezas) nós usarmos argumentos de excepticio em defesa da CF88[72].

Em sentido conexo, mas muito diverso politicamente e juridicamente, veja-se que os institutos da intervenção (arts. 34 e ss.), Estado de Defesa (art. 136) e Estado de Sítio (art. 137) configuram outra espécie de exceção, agora como poder adicional reservado à Razão de Estado. A principal diferença, como veremos, está na essência do que pretende defender invocando-se os poderes de César: Estado de Direito Democrático ou Razão de Estado. Inclusive porque, sob essa bandeira da Razão de Estado é a democracia a primeira a ser demovida. Ou seja, não há uma correspondência direta entre Estado e democracia, nem mesmo juridicamente.

Com base nessa primeira condição diferencial, pode-se dizer que a exceção tem conotação jurídica e política – ou político-jurídica, como se viu no golpe de 2016 (Martinez, 2019). Sob o escopo do instituto jurídico que recobre os poderes adicionais da Razão de Estado, ainda podemos ressaltar os meandros da lógica jurídica, sua forma de apresentação e de operacionalização:

A existência da exceção só se deve à regra de direito. Segundo sua etimologia (ex-capere), ela é aquilo que está fora de apreensão. 1 / Pode escapar à regra ficando à margem desta sem a afetar diretamente; ocupa um lugar ao lado da regra, mas em princípio permanece estranha a ela. 2 / A exceção também pode ser integrada na regra e assumir duas formas: ou alternativa (dualidade de soluções prevista pela regra), ou a revogação (a autoridade que deve aplicar a regra suspende-a com base em motivos por ela apreciados – como urgência ou necessidade – e determina uma solução original ignorada pelo texto). 3 / A exceção pode pôr em xeque a regra que não preveja alternativa nem revogação (Alland; Rials, 2012, p. 739 – grifo nosso). 

Desde a imposição da Lei Antiterror (2016) e no pós-golpe de 2016, nunca estivemos longe da aplicação do terceiro modelo: a exceção que pode fulminar a democracia. Uma suposta “intervenção militar” – em interpretação oportunista do art. 142, de péssima redação, ou em também construção “criativa” e revogatória das cláusulas pétreas constitucionais de 1988 – que defendia a insurgência de um desiderato de “poder moderador”. No fundo, todas essas investidas sempre refletem as tentativas de abolir o Alicerce Constitucional apregoado como Estado Democrático de Direitos Fundamentais.

Por isso, a escolha da exceção, como forma de burlar ou anular o processo legislativo democrático (art. 44 e ss) é de extrema precisão e complexidade.

Como veremos, os meios de exceção não são meros editais de poder, editos de soberanos dos meios de exceção (Schimitt, 2006), são poderes extremos sim, contudo, são normatizados a fim de que possam ser normalizados de alguma forma pelos Recursos Constitucionais e democráticos. Neste sentido, tanto o Estado de Defesa quanto o Estado de Sítio guardam maior proximidade com os editos de poder conferidos a Caio Júlio César (famoso por ultrapassar o Rubicão) do que com a Constituição de Weimar:

Art. 47. O Presidente assume o comando supremo das forças armadas do Império.

Art. 48. [...] No Caso de perturbação ou ameaça graves à segurança e ordem pública no Império compete ao Presidente decretar as medidas com o recurso à força armada. Para este fim, pode-se suspender, total ou parcialmente, os direitos fundamentais ... (Miranda, 1990, p. 277). 

Neste contexto, pode-se destacar que Weber teve um papel decisivo na formulação da Constituição de Weimar (1919) e que sua definição de democracia plebiscitária (construção de um saber nomológico, de leis gerais) ganhou muitos adeptos e seguidores.

Neste sentido, pode-se ainda dizer que a chamada dominação racional-legal é um suporte legal ao Estado de Exceção, uma vez que a regra jurídica pode ser simplesmente aquela afirmativa de que a exceção é a regra (Agamben, 2004). Portanto, o Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção Permanente – e com esta sentença Carl Schmitt (2006) se destacaria como intérprete do artigo 48 da Constituição de Weimar. Também não é difícil de encontrarmos aí um Leviatã (Hobbes, 1983) e, mais precisamente, o Direito Penal do Inimigo (Jahobs & Meliá, 2005) aplicado pela Lava Jato.

O Polêmico art. 48, que assegurava, sob circunstâncias excepcionais, o estado de exceção e amplos poderes ao presidente, de suspender seções da Constituição e o próprio Parlamento e de intervir com a ajuda das forças armadas, transformando-se, de fator de facilitação da democracia em instrumento de legitimação da barbárie e da ascensão legal de Hitler ao poder, em 1933 (Dymetman, 2002, p. 93). 

A Alemanha criaria a figura do Kaiserpräsident, como artefato de um colapso do sistema político-jurídico democrático. E isto é bíblico, literalmente falando: 

36 Ele lhes disse: "Mas agora, se vocês têm bolsa, levem-na, e também o saco de viagem;

e, se não têm espada, vendam a sua capa e comprem uma.

37 Está escrito: 'E ele foi contado com os transgressores'; e eu digo que isso precisa cumprir-se em mim. Sim, o que está escrito a meu respeito está para se cumprir".

38 Os discípulos disseram: "Vê, Senhor, aqui estão duas espadas".

"É o suficiente!", respondeu ele.

Lucas: 22 

Assim, da Bíblia a Weimar, a não-negação explícita aos juízos de exceção seria o prisma que se projetaria após a vitoriosa campanha eleitoral do Partido Nacional-Socialista na Alemanha pré-nazista (1933). Ironicamente ou em busca de precisão cirúrgica para o dogmatismo nazista, a fim de se auto-referendar e também como mecanismo de auto-defesa, não é ninguém menos do que Carl Schmitt quem saiu em defesa da Constituição alemã de 1919 – não por ironia, mas porque queria dar ao poder o lugar de poder, do Reichstag ao Reich:

Não foi o texto escrito da Constituição de Weimar, mas seguramente o exercício prático da Presidência do Reich e do Governo do Reich, que, com a tolerância do Reichstag e o reconhecimento da Teoria do Direito do Estado[73] e de uma prática judiciária legitimadora[74], ainda conseguiu impor, durante o último decênio, um terceiro legislador extraordinário na vida pública do Reich Alemão: o Presidente do Reich, a quem o artigo 48, § 2º, da RV confere competências para a promulgação de decretos (Schmitt, 2007, p. 71). 

Todavia, o receio se tornou tão volumoso que a Constituição Alemã de 1949 (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha) teria de ser explícita quanto à criminalização dos atentados à ordem democrática:

A Lei Fundamental constitui a base para o desenvolvimento pacífico e livre do Estado alemão [...] Os autores da Constituição, depois da nefasta experiência com as violações do direito pelo Estado nacional-socialista, empenharam-se particularmente em salientar as características dum Estado de direito (1975, p. IV- VIII). 

Como se intuiu, trata-se de alguma migração da Ciência Política ao próprio conjunto da Constituição, como parte da Ciência do Direito. Nesta análise, conjugamos duas composições clássicas, exatamente, por serem clássicas e performativas do pensamento científico moderno: Aristóteles (2001) e Maquiavel (1979). Frisando-se a Filosofia como a origem da ciência e da Ciência Política nascida com o florentino – se bem que, no caso do Príncipe, não há filosofia política à vista, a não ser o realismo político.

Toda fabricação humana, mais ainda uma Constituição, é resultado e reflexo do “fazer-se política”: não existe Constituição, desde as primeiras na Grécia antiga, que não seja política; não há Constituição que advenha do Olimpo. Porém, sem eficácia (ou astúcia, como Inteligência Constitucional, constitutiva), por mais que se seja empuxo da Política, da Polis, não frutificará se não houver manifestação clara e inequívoca de seu vigor ou força política: o “fazer-se política”. Portanto, sem veracidade – veritá efetualle como ocorrência do realismo político, para Maquiavel (1979) – não há Força Normativa (Hesse, 1991).

Insistimos, finalmente, que ainda que se tenha recolhido espasmos do regime militar (art. 142) e incidentes do Estado de Exceção – intervenção federal, Estado de Defesa e Estado de Sítio (aliás, como deve ocorrer com quase a integralidade das constituições modernas do pós-Revolução Francesa) – a CF88 manteve-se atada a uma Atenção Constitucional em defesa da imposição do controle democrático sobre os poderes de César. Isto é o que também dá forma a este Estado Democrático de Direitos Fundamentais.

Como ensinou Konrad Hesse, trata-se de impor garantias institucionais que contenham o próprio direito que não seja democrático; trata-se de obstruir qualquer possibilidade política de que o direito não seja democrático:

Colaboração ordenada, procedimentalmente ordenada, torna ordem jurídica necessária, e, precisamente, não uma discricional, senão uma ordem determinada, que garante o resultado da colaboração formadora de unidade e o cumprimento das tarefas estatais e que exclui um abuso das faculdades de poder confiados ou respeitados por causa daquele cumprimento de tarefas – em que tal garantia e asseguramento é, não só uma questão da normalização, mas, sobretudo, também da atualização da ordem jurídica [...] A coletividade precisa da sua, porque convivência humana sem ela não seria possível, de todo, na situação da atualidade que fundamenta a necessidade de ordem e coordenação objetiva ampla das condições e âmbitos da vida econômica e social. Como o Estado, essa ordem não está determinada em um direito supra-histórico, desprendido da existência humana e atividade humana existente em si e por si, ou nas objetivações de uma “ordem de valores” encontrada; senão ela deve, como ordem histórica, pela atividade humana ser criada, posta em vigor, conservada e aperfeiçoada [...] Ordem jurídica, nesse sentido amplo, não está dada como ordem por causa da ordem, senão como ordem determinada materialmente, “exata” e, por isso, legítima [...] Para poder determinar conduta humana, esse direito histórico carece, fundamentalmente, da “aceitação” que, por sua vez, assenta-se na concórdia fundamental sobre dação dos conteúdos da ordem jurídica – também lá onde tal aceitação somente contém o reconhecimento da obrigatoriedade de normalizações jurídicas, não, porém, aprovação livre para elas (Hesse, 1998, p. 35-36 – grifo nosso). 

Para o jurista português, o direito deve ser uma salvaguarda do Princípio Democrático e, como ordem jurídica, o próprio direito democrático deve ser entendido como defesa da democracia[75] – para nós brasileiros, seria uma cláusula pétrea que não se abalaria senão em golpe constitucional (Canotilho, 1990, p. 286-287).

Na modernidade, a ordem jurídica traz uma coordenação objetiva e ampla das condições sociais e econômicas no mais amplo âmbito institucional. Neste sentido, a ordem jurídica é uma “ordem determinada materialmente”, exata, legítima. Portanto, a aceitação da ordem jurídica democrática se assenta na “concórdia fundamental sobre a dação dos conteúdos da ordem jurídica”. Assim, configura-se o reconhecimento da obrigatoriedade de normalização jurídica – submetendo-se o Estado e os indivíduos à mesma ordem jurídica (Hesse, 1998).

Desse modo, desde a Constituição de Bonn (1949), os preceitos, recursos e meios democráticos constituem uma das reservas da democracia enquanto postulado dos direitos fundamentais, na forma-Estado que se vislumbra na CF88 – qual seja: Estado Democrático de Direitos Fundamentais.

 

Ciência da CF88. História, teleologia, epistemologia 

A CF88 não nos prega nenhuma forma de teologia, não há direito divino, mas somente nos apregoa a teleologia e uma epistemologia política bem específica – consoante com a prevalência de uma leitura política do próprio Direito – e, por essas e outras razões, insistimos na urgência de realizarmos a Ciência da Carta Política de 1988.

Afirmamos a urgência em observarmos a CF88 sob uma perspectiva histórica, em que se faça uma análise prospectiva observando-se a conquista histórica. Desse modo, essa ciência da CF88 já ganharia mais um contorno em termos de metodologia: análise histórica como substrato do método prospectivo. Sobretudo para que se revelem, para nós, tanto a ontologia quanto a teleologia. O resultado, em parte indicado, demonstraria uma epistemologia política para além da nomologia e da “letra fria da lei” – essa mesma Letra Constitucional que se teima, à direita e à esquerda, subverter: ou em revisionismo ou em criticismo a-histórico.

A Ideologia Constitucional, no mal sentido, apostou na possibilidade democrática que haveria de surgir na alma brasilis, a mesma que é herdeira do escravismo, da miscigenação forçada pelo abuso e pelo estupro coletivo, e que se projetou historicamente como “cordialidade”, troca de favores, negacionismo histórico e com amplo predomínio do Alienista de Machado de Assis (2014).

No bom sentido, se assim podemos dizer, a Ideologia Constitucional reforçou onde pôde – no contexto do realismo político de sua época – os meios, instrumentos e insumos da inclusão, emancipação, desconcentração, descentralização, equiparação e participação. Pois bem, é este mesmo núcleo duro da CF88 que a cegueira ideológica, do criticismo a-histórico, não consegue visualizar e por isso insiste em negar como conquista histórica.

A boa Ideologia Constitucional, como se vê, é abatida diariamente, à direita e à esquerda, quando se impõe o idealismo, o abstracionismo, o redentorismo dos apologetas do futuro perfeito, mas sem capacidade de se ver a luta histórica pelo Direito. No fundo, trata-se de um criticismo infanto-juvenil: à direita, segue-se a sanha do barbarismo social; à esquerda, mesmo sob a imposição do Fascismo, corrói-se a CF88 com um esquerdismo que não passa de um suposto comunitarismo em estágio de perfeição alucinada.

De todo modo, o que a Análise Constitucional não pode abdicar é da referência conceitual, da teoria com força de massa crítica. Isso também é ponto pacífico. Entretanto, isto só será possível se entendermos, como cientistas sociais, que nenhuma análise será responsável desligando-se da conquista histórica. Em essência, sem história, a práxis não se confirma como social, encaminhando-se em raso espontaneísmo ou voluntarismo atônito, perturbado pelas próprias ideias (ideais longínquos) ou pelo nevoeiro dos fatos.

Ignorantes da história, ainda que movidos por interesses diferentes, direita e esquerda (a sua parte confusa) são atraídos pela mesma encruzilhada: o empiriocriticismo. Encaminhando-se pouco além do empirismo da primeira impressão. Isto é, sem ontologia, a crítica não passa de um tipo de oncologia política.

Por fim, vale dizer que não existe Letramento Constitucional sem conhecimento histórico. Essa ideologia do jurista, mesmo que supervisionada pela boa-fé, não tem uma super-visão; pois, só faz rechear o Inferno com boas almas. Definitivamente, não é porque vivemos num pântano jurídico que devemos mergulhar na areia movediça, puxando os cabelos, como o Barão de Münchhausen. No próximo capítulo retornaremos aos achaques da extrema direita (Necrofascismo), no espasmo temporal de 2016/2018 a 2022, dirigidos ao eixo norteador da CF88: civilidade, dignidade, democracia e cidadania expandida.


 

CAPÍTULO IV

A CARTA POLÍTICA CONTRA O PROJETO POLÍTICO DE ESTADO NECROFASCISTA 

O Necrofascismo (Martinez, 2022) resulta de uma luta entre civilização e barbárie, com ampla sedimentação no cesarismo retrógrado e repressivo (Gramsci, 2000). Além da falência política no uso dos meios de exceção – a exemplo do rechaço internacional –, este tipo de cultura de corte fascista (ou “coorte” e “fascio”) aponta para uma redenção salvadora, no passado remoto: não é à toa que certos discursos são medievais ou propriamente nazistas: Goebbels, especialmente.

Em seu curso diário, apresenta-se como uma conduta de Estado ao mesmo tempo em que é expressão de uma parcela da cultura popular: “usar máscara é sinônimo de fraqueza e falta de fé”. O antiliberalismo está atuante no controle moral dos costumes, na afirmação da “família tradicional” (“cidadãos de bem e de bens”) e na condenação dos direitos fundamentais: dos ataques aos povos indígenas à homofobia. O discurso médio ressoa as palavras divinas do poder: “as minorias devem se curvar à maioria”.

O Necrofascismo é negacionista, autocrático, místico, racista, genocida, fáustico: responde ao capital mais autoritário e predatório, num tipo de volta à acumulação primitiva do Renascimento. Por negacionismo entendemos desde a recusa da ciência (isolamento) até a negação da racionalidade mediana: “os trabalhadores da saúde provocam pânico e não permitem o desenvolvimento do país”.

As proposições autocráticas e o culto à personalidade remontam à colonização, e foram expostas no processo eleitoral (2018); porém, há inúmeras tentativas de se perpetuar a esteira do “golpe dentro do golpe” – a partir de 2016 –, propondo-se, entre outras, intervenção no Supremo Tribunal Federal (STF) e a prisão dos seus ministros. Ao Poder Político, sob o cordão autocrático, juntam-se milícias reais e virtuais, prometendo-se vingança contra os infiéis: na lógica binária fascista (amigo x inimigo), os antifascistas são perseguidos pelo Poder Público[76], entre dossiês e ações policiais repressivas.

Leva-se ao pé da letra a teologia da prosperidade, sendo infiéis (inimigos) os que se colocarem contra o avanço (messiânico) do capital predatório. Este fluxo vai do desflorestamento da Amazônia à total uberização e pejotização, uberização do trabalho urbano: do home office ao entregador do fast-food.

Também não é à toa que esses entregadores, desguarnecidos de qualquer proteção legislativa trabalhista, são atacados fisicamente ou verbalmente: as classes médias introjetaram a negação da civilidade e assim replicam a cultura disruptiva (elitista e racista) do capital predatório ou fáustico.

Nesta fase, não há traços do capital, do Direito ou do Estado como insumos do Processo Civilizatório – no que seriam partes de um cesarismo progressista. Aliás, no que coincide com a própria Constituição Federal de 1988 – a serviço de um capital progressista, inovador, inclusivo, especialmente para se elevar o consumo das classes trabalhadoras e minimizar a miséria humana ditada pelo capital financeiro e pela extrema concentração de renda.

Este rebaixamento do status do próprio capital prevalecente (financista e disruptivo), no auge da pandemia de mais de setecentas mil mortes, fez ressurgir comportamentos sociais típicos da autopreservação – como “homem, lobo do homem” – e isso permitiu que antigos capitães do mato requeressem protagonismo e poder político: entre atavismo, escravismo, paroquialismo e patrimonialismo.

O racismo, no auge da pandemia, levou diaristas – especialmente mulheres negras – a trocarem um prato de comida por um dia de trabalho. E assim voltamos à classe média, empregadora do trabalho doméstico e que ainda tem um “quarto para a empregada negra”: o racismo no Brasil não é só racismo, é escravismo também. Do mesmo modo que negros são baleados nas costas, sobretudo homens e jovens, pela polícia, o Poder Político aciona as milícias virtuais e reais para garantir a subtração de recursos da saúde pública – no mesmo instante em que “lamenta” o número exponencial de mortos pela COVID-19. Isto é propalado pelo marketing, mas é alimentado pelo capital disruptivo que não se importa com a natureza e com as vidas humanas.

A imagem negacionista que reflete perfeitamente o Necrofascismo é a do Fausto pondo fogo na casinha do casal de idosos – porque, por ali, o progresso e a ordem deveriam passar sem contradição de interesses e interrupções. Tanto quanto a Ilustração afirmativa está no Fauno, na Utopia libertária que colocará a “focinheira da razão” (a Jaula de Ferro) na Sociopatia vicejante e genocida.

Por isso, pode-se dizer que o Necrofascismo se veste como a morte ceifadora (“viva la muerte”), para atormentar e conquistar pelo medo, terror, as almas e os corpos dos seres sociais que já não devem sentir-se como animais políticos. O Necrofascismo é parasitário, contudo, faz da morte seu fluxo de caixa. Vejamos em poucas frases o que combatemos:

 

O Ovo de Páscoa que não compramos

 

1.   O desumano é desonesto.

2.   Não há Humanidade se prospera o desumano.

3.   Não há meia honestidade, só desumanidade.

4.   Não há honestidade no meio desonesto.

5.   Não há fim certo, se o caminho é tortuoso.

6.   Não há decoro sem respeito à coisa pública.

7.   Não há República com a privatização do público.

8.   Não há convencimento fora da legitimidade.

9.   Não há legitimidade sem equidade.

10.               Não há equidade sem Justiça.

11.               Não há justiça com desamor.

12.               Não há ética quando sobrevive a estética da miséria.

13.               Não há estética que compense a injustiça social.

14.               Não há dignidade com injustiça.

15.               Não há justiça sem igualdade.

16.               Não há igualdade entre desiguais.

17.               Não há diferenças entre desiguais, só a desigualdade.

18.               Não há liberdade se um é desigual.

19.               Não há liberdade sem isonomia.

20.               Não há solidariedade sem inclusão.

21.               Não há felicidade com exclusão.

22.               Não há inclusão se há violência.

23.               Não há sentido na violência.

24.               Não há sentido sem o Direito, só a violência.

25.               Não há democracia à base da violência.

26.               Não há contraditório sem democracia.

27.               Não há vida social sem política de emancipação.

28.               Não há justiça social sem políticas públicas.

29.               Não há cidadão se não há consciência de si e para si.

30.               Não há Política sem cidadania.

31.               Não há negociação fora da Política.

32.               Não há Carta Política sem respeito à Constituição.

33.               Não há verdade sem esse conhecimento.

 

Esses pensamentos nos rondaram muito neste período de tempo, de mergulho profundo nas condições mais sombrias da sociedade brasileira, um período denominado por muitos de junção entre a pandemia e o pandemônio. E isto sempre trouxe uma série – diria múltipla ou quase infinita – de outras considerações.

 

Considerações sobre o pandemônio político 

·        Assim, considerando-se todo o exposto.

·        Considerando-se que a distopia política, jurídica, social, cultural é parte ativa e definidora do Fascismo, como “lugar ruim”, em antagonismo à Utopia, um não-lugar a ser edificado[77].

·        Considerando-se que praticamos prisões políticas, desde 2016, com base em notícias de jornais.

·        Considerando-se que duas centenas de entidades se queixaram contra o Fascismo Nacional, em Haia[78].

·        Considerando-se que não há Estado Laico, porque a Revolução Francesa não se faz presente no Brasil e assim se descumpre ordem judicial a fim de que uma criança de 10 anos venha a abortar e interromper a gravidez – porque a crendice do Bezerro de Ouro vê pecado no aborto, mas não no estupro de crianças.

·        Considerando-se que tem incremento a cultura negacionista e que há refluxo na cultura protetiva dos Direitos Humanos e no Estado Democrático de Direitos Fundamentais[79].

·        Considerando-se que vigora um arrivismo judicial – em oposição ou complemento ao ativismo judicial? –, em que “operadores do Direito” operam o interesse público de acordo com interesses pessoais, políticos ou econômicos[80], fazendo-se uso ampliado da regra despudorada de que “os fins (pessoais ou do regime fechado da casta judiciária) justificam os meios”.

·        Considerando-se que se perpetua um Judiciário racista, confessor de seus próprios pecados e dolos hediondos em decisão judicial[81].

·        Considerando-se que a culpa não é da CF88 e nem do Direito, mas, que bem pode ser da política miúda, do realismo político-jurídico. 

Considerando-se isto, em sentido liminar, deve-se apontar que a construção da autocracia é um marco que se globalizou neste breve século XXI. Limitando-se o recorte a 2020, vamos do Brasil à Polônia, da Turquia à Hungria, e a vários países africanos. Pode-se dizer que desfilam inúmeras variações de excepticio, da Ditadura Inconstitucional brasileira (Martinez, 2019) ao golpe de Estado, dentro do golpe originário, ou, então, impõe-se resumidamente um Estado de Sítio sem data de término.

O que apresentam em comum, na prática do realismo institucional e inconstitucional – violando-se frontalmente o Princípio do não-Retrocesso –, é a “força coercitiva” imposta contra os mais fracos economicamente, enforce de law racista, e instituinte de um genérico e ampliado cesarismo regressivo (Gramsci, 2000).

Pode-se dizer que há uma verdadeira fixação pela imposição de forças políticas retrógradas e genocidas – incluindo-se vetos presidenciais[82] ao uso obrigatório de máscaras em locais públicos e de assistência às populações indígenas –, em casos mais graves, a exemplo do Brasil e do genocídio dos Yanomami.

No conjunto, os meios de exceção (Agamben, 2002) se amalgamam como estruturas fascistas de aparelhamento estatal, sob a ação miliciana, dentro e fora do Estado. Este aparelhamento estatal com vistas ao genocídio – sem nenhuma ética de responsabilidade republicana (Weber, 1979), fixando-se enquanto meios de apropriação de poder autocrático: notadamente racista –, é o que denominamos, em síntese, por Necrofascismo.

Sobretudo se pensarmos que o país não teve sequer seringas, quanto mais se organizou para adquirir as vacinas contra o novo coronavírus. Obviamente, não houve um plano emergencial para atender a população, uma vez que o art. 196[83] da CF88 parecia não existir para o Palácio do Planalto[84]. O referido artigo que deveria ser zelado por meio da participação e distribuição de funções, competências e responsabilidades:

A existência, a validade, a eficácia e a efetividade da Democracia está na prática dos atos administrativos do Estado voltados para o homem [...] É dever do Estado assegurar a todos os cidadãos, indistintamente, o direito à saúde, que é fundamental e está consagrado na Constituição da República nos artigos 6º e 196 [...] Despicienda de quaisquer comentários a discussão a respeito de ser ou não a regra dos arts. 6º e 196, da CF88, normas programáticas ou de eficácia imediata. Nenhuma regra hermenêutica pode sobrepor-se ao princípio maior estabelecido, em 1988, na Constituição Brasileira, de que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196) [...] Não se pode apegar, de forma rígida, à letra fria da lei, e sim, considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente perante preceitos maiores insculpidos na Carta Magna garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidade humana, devendo-se ressaltar o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos (STJ, DJU 4.92000, p. 121, ROMS 11.183-PR, Rel. Min. José Delgado). 

Consideramos que o projeto do Necrofascismo brasileiro, instado a uma crescente construção institucional desde 2013-2016, previu o aparelhamento do Poder Político por forças repressivas e regressivas do ponto de vista do Processo Civilizatório – como se viu, por exemplo, na série de dossiês políticos contra os denominados antifascistas, em típico manuseio de polícia de Estado[85], como política institucional típica de Terrorismo de Estado.

Observamos, ainda, em medida complementar, o total desmantelamento do Estado Social e de suas políticas públicas, especialmente as relacionadas à saúde pública[86], à educação e ao amparo e financiamento da ciência e da autonomia da universidade pública[87]. Há que se notar que, sob este processo, já não se fala de Estado Mínimo, mas sim da minimização do Poder Político de forma a equivaler ao papel institucional de Estado Gendarme[88]. Outra grave situação se deve ao uso personalizado dos serviços de inteligência do Estado, em benefício pessoal ou familiar[89].

Tratou-se, portanto, da instituição de um Estado anticientificista no plano federal e estadual, bem como da ampla difusão de cultura política de “coorte fascista”. Neste caso ocorreu, literalmente, uma advocacia antirrepublicana[90], aliada ao corporativismo classista desagregador do Direito Ocidental, inquisitorial na base do processo sem provas que criou e manteve presos políticos[91]. Manipuladores de uma processualística anticonstitucional[92], ambos instituintes de coortes e de seus fascios. O Necrofascismo pratica a arte da guerra com as táticas da “terra arrasada”[93].

O Estado Gendarme, ou Estado Guarda Noturno – destinado unicamente à segurança (Locke, 1994), é um projeto político do liberalismo que apenas acirrou-se na contramão civilizacional do neocolonialismo e do neoliberalismo. No entanto, no século XXI, ao se associar às práticas reconhecidamente fascistas do século passado, sobretudo, de ataque à Política – a Polis, o espaço público e suas instituições republicanas –, às políticas públicas, de sérias e repetidas tentativas de desacreditar a ciência e a racionalidade mediana, de perseguição política de opositores (transformados em inimigos públicos), reverbera o Estado Gendarme na forma de coorte e de fascio, interpretando-se o Poder Político como longa manus das forças sectárias, inquisitoriais e que desfilam o infindável apetite do capital financeiro disruptivo e predominante – e ainda que a este fluxo de capital financeiro se alinhem forças retrógradas, de notório caráter de barbarismo, primitivismo e atavismo, a exemplo das que assassinam pobres, negros, indígenas[94], seletivamente, e põe fogo, literalmente, na Amazônia.

Isto ocorre a partir de decisões e de ações do Poder Público, mas também indiretamente por gerência de milicianos, capangas, sicários[95], sob a proteção desse mesmo empenho do Estado Fascista. Não há mesmo racismo no país que mata crianças negras com tiros de fuzil[96]?

Foi este o desafio, o inimigo da civilização, algoz do povo pobre, negro e oprimido que mobilizou forças democráticas pelo país todo. Foi com o objetivo de se restaurar a democracia e a cidadania que milhões se empenharam na recomposição do Poder Público.

 

Poder Público 

Partirmos da premissa de que o projeto neoliberal e neocolonial de deformação e desinstalação do Poder Público ataca frontalmente a CF88 e tem início na primeira era do governo FHC – a emenda da reeleição é um exemplo efetivo. No dizer de Paulo Bonavides (2009), ali tem início o projeto de abate do Estado Social previsto na Carta Política – e, então, é definido como “crime contra a Constituição”. E antes disso, antes de 2002, Paulo Bonavides já nos alertava para o arranjo de fortes poderes que atentavam contra a CF88 e o Estado Social[97]:

Não resta dúvida que em determinados círculos das elites vinculadas a lideranças reacionárias está sendo programada a destruição do Estado social brasileiro [...] Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no poder (Bonavides, 2002, p. 336).

 

Historicamente, o Estado de Direito Social é um modelo que nasce em meio à contradição histórica, pois se afirma em três experiências políticas e institucionais diferentes (dissonantes ou até mesmo opostas) e tem como resultado direto a produção de três documentos também diversos entre si, mas complementares e de grande consonância. Portanto, é claro como desde a origem a dinâmica histórica é contraditória, mas apresentando resultados complementares. Os momentos históricos mencionados são a Revolução Russa de 1917, a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra e a Revolução Mexicana e suas consequências (como a fundação do PRI – Partido Revolucionário Institucional).

Já os três documentos resultantes são: a Constituição de Weimar de 1919 (um ícone social-democrático); a Constituição Mexicana de 1917 e a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, na Rússia revolucionária (socialista), de 1918. E assim definem-se, constitucionalmente, os direitos sociais e trabalhistas como direitos fundamentais da pessoa humana, sob a proteção do Estado. Desta fase em diante, pode-se dizer, estão dadas as bases do garantismo social: o Estado como provedor de garantias institucionais aos direitos sociais e trabalhistas – portanto, com um perfil fortemente marcado pelo protecionismo social.

Desse modo, pode-se entender a sequência de fatos no Brasil, desde 2013 – exemplo clássico da conversão de uma possível Primavera Áraba em “revoluções juvenis coloridas” – até 2020/2-21, sob a pandemia COVID-19, passando pelo golpe de 2016 e o sufrágio irascível de 2018 – com conclusão em 2022.

Entretanto, mesmo sob o ataque frontal à mínima necessidade de controle e de alternância do poder, em modelo reconhecidamente de superpresidencialismo (e liquidado com o “semipresidencialismo” do Centrão) e dispensando de reflexão pela emenda-FHC, a seguir a Carta Política de 1988, o que se deve entender por Poder Público?

A Descrição Constitucional é clara no art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...” (recorte e grifo nosso).

Em consonância ao Princípio da Unicidade – e em contraste aos efeitos da coisificação do Direito e do Poder Público pelo capital especulativo e de barbárie social e ambiental – devemos reler desde o Preâmbulo, seguindo-se pelo art. 1º, 2º, 3º e 4º da Carta Política de 1988. Disto decorrem obrigações públicas de fazer e de não-fazer: o Poder Público deve ser republicano, por óbvio, atender às necessidades do Povo, auferir meios eficazes de inclusão e de atendimento ao interesse público e do cidadão. Bem como o Poder Público está restrito, por ação da Liberdade Negativa – restrição às ações públicas –, a qualquer prática e ação política que sejam invasivas e restritivas ou negativas aos direitos, garantias e liberdades da cidadania.

O Poder Público não pode violar o Direito Público, por óbvio, mas também não pode negar-se aos direitos da cidadania: “Não atende nem cumpre os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e da probidade administrativa a autoridade que busca confundir o contribuinte ou o cidadão, criando-lhe entraves para valer-se do direito, também constitucional, de defender-se e de utilizar-se do Poder Judiciário para buscar aquilo que julgar do seu direito” (Barroso, 2003, p.324 – grifo nosso).

A fim de que se obtenha mais um exemplo da previsão trazida na Carta Política, vale destacar que o Poder Público – sob o reinado do Estado de Direito Republicano e Democrático (art. 1º da CF88) – não abdica do Princípio da Dignidade Humana; estando essa em contrapartida prevista no inciso III, e sob o guarda-chuva da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (acolhido congressualmente em 1991), da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (acolhida em 1989), da Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (acolhida em 1989), da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (acolhida em 1989) e outros documentos internacionais de direitos (Tavares, 2005, p.2).

Retomaremos nossa constituição teórica e conformativa de valores e de preceitos, como não seria diferente, a partir da Constituição Federal de 1988. Faz-se urgente, portanto, não perder a premissa que advém do recorte democrático, seguidor do Processo Civilizatório (art. 2015, §1º da CF88) e não da autocracia tutelada por militares, de saída, para a cultura[98], a arte, a história e a ontologia que nos acompanha como parte do nosso Processo Civilizatório.

         A Constituição Federal de 1988 é uma Carta Política, no sentido lato de tornar a preservação da Polis uma garantia constitucional e uma “obrigação pública de fazer”, e, num aspecto mais distinto, por promover meios de desenvolvimento humano, como nos casos singulares de tornar os direitos civis fundamentais, bem como os direitos sociais e trabalhistas. A aposta no Processo Civilizatório, involutivo, está prevista desde o preâmbulo e o art. 1º e, em destaque renovado, é explicitada no art. 6º: a educação.

 

A educação é um fundamento da humanização        

O acesso à cultura e à arte, ao conhecimento, à ciência e aos meios de racionalidade são, em sentido lato, o cerne do Objeto Positivo da CF88; atua, constitucionalmente, como forte aposta de que, na Polis, sob condições razoáveis de esforço de racionalidade (razoável, predizível, teleológico) dos princípios e dos valores humanos democráticos e republicanos (direitos humanos), não iremos – enquanto povo – propugnar pelo Mal maior: regimes de Exceção (Agambem, 2002); Fascismo (Martinez, 2020); embolia moral e social propícia à erupção da barbárie (Martinez, 2020). Sim, sob o guarda-chuva de uma Carta Política emancipadora, a CF88 é Iluminista e, por isso, realçou o racismo como crime hediondo (art. 5º, XLII)[99].

         Um dos meios de acesso ao conhecimento científico (racional, razoável, responsável socialmente) é, justamente, elevado no direito à educação (6º, 205 a 214), bem como no próprio Portfólio Constitucional nos assegura que – como povo e Nação – o acesso à ciência (23, V[100]; 24, IX[101]; 218) deve seguir o plano de elevação cultural, consoante o Princípio Civilizatório (art. 215, §1º).

Vê-se, pois, que enquanto o art. 205 também assume a feição de norma impositiva de tarefas e objetivos aos órgãos públicos e, em especial, ao legislador, servindo, além disso, como parâmetro obrigatório para a aplicação e interpretação das demais normas jurídicas, a garantia institucional contida no art. 207, que, a toda evidência, constitui norma plenamente eficaz e diretamente aplicável, atua como limite expresso contra atos que coloquem em risco o conteúdo essencial da autonomia da instituição protegida, atuando, assim, como direito fundamental de natureza defensiva [...] No mesmo contexto pode ser citado o art. 206, II, que consagra a liberdade de aprendizado, de ensino, de pesquisa e de divulgação do pensamento, da arte e do saber, que, por tratar-se de autêntico direito de liberdade gera, desde já, direitos subjetivos para os particulares [...] Aliás, bastaria o caráter compulsório para que, ainda mais em face do dever da família com a educação (art. 227), pudesse deduzir-se um correspondente direito subjetivo [...] Mais adiante, no art. 227, §3º, I e III, no âmbito do direito (fundamental) à proteção especial por parte da criança e do adolescente, bem como no art. 229 (dever dos pais de criar e educar os filhos menores), esta obrigação do Estado, da família (e dos pais) foi alvo de especial atenção pela Constituição Federal (Sarlet, 2012, p. 680-681). 

         Este caminho escolhido pelo constituinte, ontologicamente, já indica a escolha científica e mais próxima possível do gigantesco processo de humanização. Afinal, desde antes do Neolítico (Lévi-Strauss, 1989)[102], acessar a Política (Aristóteles, 2001), as artes (cultura) e a técnica, é uma ação/fabricação da essência humana. Não há Polis, isto é, não há sociabilidade, humanização, sem esse aporte contínuo de representação/afirmação (efetividade) humana: o que ainda confirma e reforça o Princípio da Superioridade (anterioridade) do Público sobre o Privado[103].

         Bem como a techné e a “localização no mundo”[104], pode-se dizer, reafirma a jaula de ferro da racionalidade contínua (Weber, 1979). De certa forma, ao despontar esta Racionalidade Constitucional, o constituinte reservou um capítulo específico à educação.

         Como direito fundamental e sob a condição técnica, igualmente específica, de se reportar como “direito público-subjetivo”, a educação – ato inerente à liberdade de ensinar e de aprender (art. 206, II; 22, XXIV[105]) – foi distinguida, elaborada, como construção social: coletiva e complexa.

         Constitucionalmente, portanto, a educação não se reduz ao ato pedagógico que se esgota na sala de aula. Trata-se de um verdadeiro Princípio de Corresponsabilidade Pública; observando-se, em pormenor, que a responsabilidade pública alcança o Estado e as instituições formais (Ministério da Educação, Secretarias de Educação) ou instituições sociais (família), mas o supera mediante o prognóstico aposto pelo Princípio Republicano.

A responsabilidade quadripartite (Estado, família, indivíduo e sociedade) imposta à educação ilustra como a Carta Política de 1988 dialoga profundamente com Cícero[106]. Quanto ao Estado, em escrutínio mais técnico, a educação exerce o efeito de uma “obrigação pública de fazer” (art. 212), pela singular observação de que a educação é um direito público-subjetivo protegido pela força normativa dos direitos fundamentais sociais (art. 60, §4º, IV). Em suma, desde o ensino fundamental, deveríamos estar atentos à resposta do porquê devemos respeitar a Constituição.

 

HÁ UM MILHÃO DE RAZÕES

mas, há um motivo óbvio para sermos violadores 

         Anomia, expressão de origem clássica, quer dizer “ausência de normas”, de regras claras e comuns, generalizáveis. E, nesse caso, impera o jogo do vale-tudo, prevalece a vontade do mais forte. É certo, outrossim, que regras ilegítimas produzem distopia, ausência de sentido compartilhável, sem utopia repartida.

         Porém, no caso desse texto, afastemos ao menos inicialmente as duas hipóteses, para que possamos nos verter à ideia chave de que a Constituição de 1988 precisa de respaldo, de sustentação, porque sem a Lei Fundamental – toda Constituição que se baliza na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 – não haverá vida social organizada que não seja dirigida pelo fascio.

         Assim, o Império da Lei Fundamental está para a civilização como sua negação está para a barbárie. O que se confunde, comumente – por implicação do senso comum (ignorância) ou do oportunismo –, é ineficácia com inexistência constitucional, distorção (distopia) constitucional pelos interesses políticos de plantão, com uma suposta revogação da própria Constituição; além de que, por óbvio, dizer-se que “a Constituição não é cumprida” não carrega o sinônimo de que deve ser desacreditada ou aniquilada de vez.

         O problema, igualmente óbvio, não é jurídico, mas sim político; a “desacreditação da Constituição” não se deve a alguma insuficiência ou negatividade da Lei, mas sim do realismo político – especificamente da “desgovernança” – que lhe nega emprego mínimo. O fato de as cortes judiciais superiores corroborarem este típico emprego distorcido, negado, violado, da Lei Fundamental, só reforça o argumento.

O problema da Constituição não é jurídico – enquanto base positivada dos direitos humanos – mas sim político, como relação política que nega a Política, a emancipação, o espaço público, a Polis em que se exercita a cidadania. O problema da Constituição não é a Política (a Polis) mas a política miúda ou, mais precisamente, a inexistência de condições para que vigore integralmente a Política: em que o cidadão não seja um servo voluntário ou ídion (“idiotes”).

         Se houvesse a tal “vontade política”, ou interesse em não sabotar a Constituição ou ser desorganizador social oportunista, a Lei Fundamental seria lida, interpretada, aceita e cumprida por qualquer homem médio em sua vida comum. O trabalhador seria o intérprete legítimo dos direitos trabalhistas (não o capital financeiro), os professores e os estudantes dariam um rumo adequado ao direito à educação – e não os analfabetos e revoltados consigo mesmos. Do mesmo modo, o direito à saúde seria gerido por pacientes e servidores da saúde pública e não pela agulha mercadológica que administra o conhecido “ato médico”. É provável, ainda, que neste dia o Judiciário não mais “faria leis” (independentemente da desculpa), mas as cumpriria como toda cidadã e cidadão.

         Portanto, o fato de a Constituição não ser cumprida, como se vê nos tribunais e no botequim, não é um problema constitucional (jurídico) mas sim ético e político. É ético, o problema, porque se mantém uma clara intenção pelo Mal – a começar pelas negativas à soberania popular e nacional – e é político por uma razão simples: criamos um neoliberalismo fascista detonador dos direitos fundamentais.

         Quem não vê isto, o faz por duas razões básicas: ou não se “lê” a política ou joga-se contra a Política. Para ambos, a cobrança não será divina, mas sim da história. De qualquer modo, não cumprimos a Lei Constitucional porque ela é muito melhor do que nós pudemos ser até este momento.

         Enfim, por tudo isso, continuamos defendendo a prevalência da Constituição, dos direitos humanos, da cidadania, da democracia, da República, do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (equivalentes da Carta Política) e do Processo Civilizatório, ou seja, de tudo que coube perfeitamente no texto da nossa Lei Fundamental de 1988.

A CF88 superou décadas de regime militar e do vigor do direito de exceção – o AI-5 é apenas um exemplo, talvez o pior, se a própria Lei de Segurança Nacional (absorvida) não for tida como de pior gravame. Neste sentido dizemos que a conquista histórica da CF88 é o que nos permite analisar a democracia e a própria Construção Constitucional emancipatória. Aqui o mais sintomático curso da Constituição Cidadã nos assegura a liberdade de expressão e combate o anonimato – o direito não pode, nunca, permitir ameaça ou associação criminosa contra a CF88, por exemplo, e não precisa ser um movimento armado.

Do mesmo modo, o passado violador de direitos fundamentais – da dignidade humana – não encontra guarida na CF88. Salvo a péssima redação do art. 142 – e outras reminiscências – o passado militar não está escondido, embutido na CF88. Não é um passado vibrante, é póstumo. As conquistas foram efetivadas no passado-presente de 1988; um passado que é presente porque a CF88 e seus valores não caducaram, juridicamente. Como estão atuantes, essas conquistas históricas – notadamente do Princípio Civilizatório – apontam para a Teleologia Constitucional. Aqui novamente se insere a conquista histórica, como Legado Constitucional, uma vez que sem história não há futuro.

Em uma frase, queremos reafirmar que, quem não observa na luta política pelo Direito – no miolo da luta de classes – as principais conquistas históricas, todos e todas essas, estão fadados(as) a viver no obscurantismo do mesmo passado que sempre foi seu cárcere.

Nesse ponto cabe a questão central colocada ao cientista, como temos nesta recuperação que Bachelard (1985) faz do enigma de Willian James: “A ciência é um produto do espírito humano, produto conforme às leis de nosso pensamento e adaptado ao mundo exterior. Ela oferece dois aspectos, um subjetivo, o outro objetivo, ambos igualmente necessários, visto que nos é tão impossível mudar o que quer que seja nas leis de nosso espírito como nas do Mundo” (p. 11).

Então, diante da conquista histórica reafirmada na luta política pelo Direito, no meio da luta de classes, nós nos posicionamos como realistas ou racionalistas? Como juristas e cidadãos intérpretes da CF88 também somos, além disso, idealistas ou empiristas? Mas, não temos ainda interpretações criacionistas, reducionistas? Não contamos ainda com o espontaneísmo e o ativismo – bons de aparência?

Alguns tratam de mudancismo, mas nem sempre analisam o que é Mutação Constitucional – especialmente quando o realismo político é caótico – enquanto outros, neste mesmo caos institucional, anunciam Mutação, mas entregam verdadeira Transmutação Constitucional.

Afinal, com quantas ciências se faz o Direito – ou com nenhuma?

 

Somos obrigados(as) à ciência

A ciência é complexa, não há respostas fáceis e nem garantias definitivas. Há até certa ironia em seu fazer, pois, se toda atividade científica se baseia em princípios sólidos – verificação, inclusive, antes dos impactos (Princípio da Prevenção, Princípio da Precaução), testagem controlada, modelagem racional –, o mesmo não se pode dizer dos seus resultados: nem sempre o produto da ciência traz equivalentes de segurança, controle, confiabilidade. Como se diz, popularmente, muitas vezes “o tiro sai pela culatra”. Às vezes, muitas vezes, a criatura de Mary Shelley desafia a criadora. Há muito Frankenstein à solta. Sempre houve. Aliás, tantos quantos o Dr. Jekyll and Mr. Hyde sempre permitiu – ou Mengele.

Mas, o que é ciência para os (e)leitores comuns, digamos assim? O que o Homem Médio em sua Vida Comum pensa sobre a ciência? Será que se pergunta para que serve a ciência? Será que se vê a ciência no dia a dia?

Alguém poderia iniciar suas respostas assim: “Ciência é tudo, sem ela não temos um futuro; sem pesquisa, sem remédios, sem cura para doenças, não teríamos nada – nem mesmo a descoberta de novos planetas. Sem ciência não teríamos como combater o aquecimento global...A ciência estuda a Humanidade, a história, o passado, e, assim, podendo, prevê catástrofes e o nosso próprio desenvolvimento. Temos tecnologia graças à ciência (inovação também), temos robôs e carros que não usam combustível fóssil. E podemos ter um futuro para as próximas gerações muito melhor. Podemos, se os governantes deixarem a ciência cumprir seu papel. Enfim, sem ciência, seríamos como homens e mulheres das cavernas”.

De certo modo, essa resposta é complexa e compreende as perguntas básicas que formulamos. Também é interessante notar que essa ideia de “ciência em tudo” lembra a lógica humana de que que “a política está em tudo e em todos”. Esta relação, digamos integrada, em que ciência e política são demarcações do “fazer-se humano”, é humanizadora e credita à teleologia – “futuro para as próximas gerações” – a força do Princípio do Processo Civilizatório.

         Ciência só se produz com Educação. Pelo fato angular de que sem Educação não há Conhecimento. Tanto quanto, de início, é preciso destacar que a Educação proposta deve ser pública, universal, de qualidade, laica, ética e crítica. Pública quanto à legitimidade, ao acesso e permanência, e ao necessário referendo do Poder Público. Que seja universal no alcance, porque não se faz Ciência para determinados grupos de interesse ou classes sociais. Pode-se ter um monte de maquinações, mas não ciência se pensamos dentro do umbigo do ego e do capital.

A Educação que só informa e não transforma, não revela Conhecimento, então tampouco faz ciência – não há Ciência sem movimento, sem mudança. Sem poder de síntese – portanto, crítico – a informação mantém o status quo. Sem reivindicar a insurgência do novo, não há Ciência, mas sim informação deslocada do eixo educacional, extensão de saberes aprisionados ao tempo pretérito. Não há ciência sem dialética, sem refutação das teses, sem superação das antíteses, sem olhar histórico e teleológico.

Educação, neste compasso, é a consciência necessária ao transporte que ultrapassa o simples ato de reprodução. Pois, preparando o ser humano para pensar, questionar, faz-se Ciência que modifica. No que, evidentemente, será uma Educação Política – como avaliação criteriosa, inclusiva, procedimental do que serve à Humanidade ou crítica e demovente do que apenas abastece aos grupos homogêneos de poder e determinantes de quais saberes são relevantes (ou não).

Inicialmente, propõe-se uma perspectiva de que Ciência (Política – no “fazer-se”) que advogue os seguintes termos: sociabilidade externada, capacidade de interação com o diverso, respeito às decisões divergentes, atenção às regras democráticas (inclusivas). A Educação para a Ciência, neste matiz, compreende a Política (Polis), como integralização do ser social que se faz politicamente, fortalecendo pontos de vista e negociando instrumentalidade para sua realização.

Do que se depreende que se trata de uma Educação para a Ciência com Consciência. A bem saber, a Ciência e sua Consciência não se promovem com marketing, mas sim com a (co)elaboração Ética (colaboração) da convivialidade e com o emprego de meios adequados aos fins globais. Desse modo, é imperiosa a consciência de que a Técnica deve se fazer com Ética. A regra do proselitismo político – “os fins justificam os meios” – deve ser repelida prontamente.

Assim, a Consciência Científica exibe, por substrato: responsabilidade (o que, como, onde, quando e para quem “estou sendo e fazendo”?), prevenção (avaliar pormenorizadamente antes de agir), precaução (muitas vezes apenas não fazer) e restauração (refazer o malfeito).

Nas relações de convivialidade – Ciência, Política, Direito – a regra que deve ser confirmada e, assim, seguir-se, é inversa ao oportunismo, pragmatismo, fisiologismo. O oposto nos revela que “os fins determinam os meios”. Porque não se constrói vida com meios de morte; não se faz o justo, com o injusto; o certo não advém do erro presumido.

A Ciência, portanto, exige extrema Consciência do manuseio dos meios, a fim de que os fins sejam, efetivamente, universais. A Consciência da Ciência exige, sempre, uma ação direta para que se repilam e excluam os meios já excludentes.

Não se faz Ciência para um grupo, classe, estrato social ou poder especificado. Ou se adota o Princípio Universal – com regra excludente dos meios exclusivos – ou não se trata de Ciência. Fora desse alcance, a “ciência” não Ilumina, não-Esclarece. Ao contrário, abastece interesses diversos da Ética e da Consciência, e que devem ser coletivas e difusas no tocante ao alcance do próprio Conhecimento que se tem por uso.

Conhecimento, enfim, nada mais é do que Ciência com Consciência – dos usos, dos meios empregados, do alcance projetivo, das implicações práticas e coletivas, dos fins universais almejados. Há esperança para todas e todos com consciência ambiental e social – emprego de tecnologias inteligentes: “carros que não usam combustível fóssil” – e cobrança à responsabilidade institucional: “se os governantes deixarem a ciência cumprir seu papel”. Haverá esperança enquanto essa perspectiva fluir no cotidiano.

Ainda podemos ressaltar que há um apreço à racionalidade – especialmente em momentos de negacionismo e apego a estultices: terraplanismo, antivacina, Fake News – e uma excelente Utopia que possa fortalecer nossa presença na Política, na Polis. Repetimos, só há Utopia válida (validável cientificamente) com responsabilidade social, ambiental, institucional e, acima de tudo, com capacidade de aprimoramento da própria Humanidade. Este aspecto, para quem se apoia na história (ontologia), mais uma vez, corrobora o Princípio do Processo Civilizatório. Esta é a crença de quem vê na Política e na ciência o caminho que pode/deve pavimentar a odisseia humana, entre passado e futuro.

Desse modo vamos redescobrindo, junto com o Homem Médio em sua Vida Comum, quem foi Prometeu (Ésquilo, 2001) e, nessa jornada que nos pica “a mosca azul”, temos chances reais de fechar a Caixa de Pandora. Nosso principal desafio ou Utopia validável, retomada em 2023, está em debelar o insucesso da Humanidade e a desumanização progressiva, retrógrada, repressiva, regressiva.

 

O homem médio em sua vida comum 

A sustentação do Direito à Consciência se deve à mais ampla e integral amplitude garantida pela Carta Política de 1988. A saber, partindo-se do preâmbulo, o Princípio Republicano, o Estado de Direito Democrático, a constância da igualdade e da liberdade, isonomia e equidade, emancipação, formação e participação político-popular, são garantidas pela descentralização, desconcentração do poder e, por sua vez, estão referendadas em todos os artigos e incisos que reportam a participação como direito-dever multidimensional (saúde, assistência social, segurança, educação e outros), bem como mediante a democratização do espaço público e a existência/resistência adjudicada em todos os fóruns, sessões, comitês e audiências públicas. No entanto, mormente sob a cultura fascista, vimos o reino dos juristas hobbesianos – que “fazem”, cada um a seu modo, a própria constituição diariamente, agora diminuída em relação à CF88 e por não serem, adequadamente, Interpretações Constitucionais, mas sim leituras do Leviatã e de sua Razão de Estado.

Por fim, a resposta antipolítica – no sentido de negação do espaço público democrático –, e não só no caso brasileiro recente, tem sido o fortalecimento de golpes institucionais: no Brasil, o STF inventou a “reserva do possível”, isto é, a chancela de que os direitos fundamentais sociais são impossíveis de serem tratados como determina a Carta Política de 1988; Honduras, em 2012, ao dar esboço inicial à forma-Estado do que se pode denominar de Ditadura Inconstitucional (Martinez, 2019); novamente no Brasil em 2018 e, em 2020, sob os ameaços de Estado de Sítio – que, por sua vez, fariam coro ao Estado de Exceção, plenamente excepcional, já autenticado no Equador, Belarus, Nicarágua (de 2019), Bolívia, Hungria, Turquia e em 2023 em muitos países africanos.

Se olharmos ao redor do globo, a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlin, a meca neoliberal – plantada desde Pinochet, na triste ditadura chilena –, veremos incontáveis projetos, tentativas e implantações de Estado de Exceção sob variadas argumentações, mas com o foco na sedimentação de um sistema financeiro especulativo, disruptivo do Processo Civilizatório, e que se configurasse apto aos anseios neoliberais e neocoloniais. Nem é de se questionar se serviços secretos e agências provocadoras de instabilidade sistêmica estão presentes neste cenário, porque é óbvio que sim. A presença de tais organizações, OTAN, CIA, FMI e outras – depois legalizadas pelo Fórum de Davos –, revelam um real nódulo político-jurídico: a “democracia liberal” sofre acometida do mal da negação ao liberalismo e ao republicanismo desde a origem. Um mal “ab ovo” da democracia representativa estadunidense e congêneres.

Ao revés disso, a Cultura em Direitos Humanos deve confrontar a cultura do Fascismo baseada na violência e na negação dos direitos humanos fundamentais e reafirmar-se como Processo Civilizatório guardado na Carta Política de 1988. Como contraprova do que alegamos, nesta parte do mundo, presidido pelo Necrofascismo, centenas de milhares de pessoas morreram por uma “gripezinha”, há ocorrência de “chuva preta”[107] – provocada pela queimada que faz inveja a Nero – e, especialmente, porque os pobres são vistos como “lixo humano” na principal capital do país[108]: esta São Paulo que forjou bairros como Higienópolis, bairros que ainda hoje promovem uma “higienização social” e que, em seu atual governo estadual, projetara praias paradisíacas nos materiais escolares destinados à escola pública. Na contramão de qualquer pressuposto científico propício ao Processo Civilizatório, praticamos a anticiência, o anti-humanismo criado pelo darwinismo social dissociativo e disruptivo da dignidade humana.

Outras questões preliminares, como isonomia entre brancos e negros[109], e igualdade de gênero, entre homens e mulheres[110], permanecem à sombra de melhores peticionamentos por realização efetiva. A realidade social, mormente sob o Necrofascismo, continuou a asseverar o darwinismo social: contundente, letal e racista[111]. Fenômeno que segue a rotina da privatização da vida, desde o Império dos EUA, com abatimento muito maior de crianças negras e latinas, na pandemia COVID-19[112].

Mais do que nunca, necessitamos do conhecimento científico, em contraposição ao negacionismo que se espalha ainda hoje (Fake News) feito senso comum e em combate ao protofascismo eriçado em movimentos anti-ciência: um ridículo sem fim[113]. Se é fato que a ciência não resolve todos os problemas – se o passado é conta aberta e sob a força da Modernidade Tardia  – é certo que o apego ao “passado redentorista” e ao futuro descompromissado, pelo mero consumismo/negacionismo da ação presente, não nos ofertará um futuro como construção da Humanidade: “A prudência é a insegurança assumida e controlada [...] devemos exercer a insegurança em vez de a sofrer [...] Duvidamos suficientemente do passado para imaginarmos o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro” (Santos, 2018, p. 98-99 – grifo nosso).

A regra de Maquiavel não seria diferente: Vertù contra furore / Prenderà l’arme, e fia ‘l combatter corto[114] (Maquiavel, 1979, p. 94). Esta seria uma parte da reserva de consciência científica, paciência com a ciência, construindo-se o legado da prudência (por isso as vacinas demoram anos a serem construídas) ou, mais próximo ao senso, a todos, bastaria “paz e ciência”: “Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez” (Morin, 2000, p. 14). A ciência, definitivamente, não precisa de mitos ou ideologias, mas sim de utopias realizáveis – inclusive porque construir a partir do “não-lugar”, do desconhecido, é o papel do cientista criativo. Mas, certamente, não basta o mito do poder (Bacon, 2005)[115].

É preciso dar tempo ao conceito (Adorno, 1995) e ter ciência de que precisamos de paciência com a consciência. Assim, explicar é reproduzir discursivamente as “verdades postas à venda”, entender é decifrar, desalienar (“trazer de volta para si”) o significado abafado pelo lastro do mercado. Como verdadeiro filósofo procura deslindar, entender/explicar, o sentido das coisas.

 

Quais são os dizeres constitucionais acerca do Processo Civilizatório?

Da ciência reinante na CF88 

O “sentido das coisas” é o que se poderia esperar para a análise da Política e seu recorte constitucional – ou seu emprego como educação constitucional – e, assim, deveríamos deserdar reconhecimento a toda e qualquer decisão que se interpusesse, restritivamente, à CF88, especialmente, no que se refere à educação laica e à cultura expansiva e inclusiva. Diz-se com acerto e erro que a cultura é “nossa segunda pele” – a formação individual e social que recobre nossa “natureza”, a socialização a que todo mundo se submete, com mais ou menos assertividades, sendo o resultado do amplo e complexo Processo Civilizatório.

A cultura do Fascismo, por exemplo, é ensejada de violência e de negação do que entendemos por cultura; no entanto, não deixa de ser a encarnação sofisticada da cultura de barbárie, da “cultura presente nas hordas de conquista”, da “ação pela ação”, de negação da filosofia, do conhecimento crítico e da autonomia. O Fascismo traz uma cultura – típica das hordas de Gengis Kan ou espartana, jacobina – que só não corresponde aos valores da cultura indicativa da dignidade humana.

Neste sentido, a violência externada pelo indivíduo fascista corresponde, em ação concreta, à “natureza beligerante” e à condição negativa do ser social: ambas introjetadas em si. Ou seja, trata-se da “cultura do não-ser”. Nisto ainda distorce ou nega todo o Suporte Constitucional trazido pela Carta Política de 1988. Quando de fato, deveríamos nos dedicar à Seção II – DA CULTURA –, Capítulo III:

 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: 

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II produção, promoção e difusão de bens culturais;

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; 

IV democratização do acesso aos bens de cultura;

V valorização da diversidade étnica e regional.

 Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.

...

 Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. 

§ 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: 

I - diversidade das expressões culturais;

II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais;

III - fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; 

IV - cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural;

V - integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; 

VI - complementaridade nos papéis dos agentes culturais; 

VII - transversalidade das políticas culturais; 

VIII - autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil;

IX - transparência e compartilhamento das informações;

X - democratização dos processos decisórios com participação e controle social;

XI - descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações;

XII - ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura (grifo nosso).

....

 

Em resumo, além de explicitar o Processo Civilizatório – como visto no art. 215, §1º, da CF88 –, a Ciência da Constituição de 1988 indica claramente 12 caminhos, valores e princípios que fazem a CF88 ser uma construção efetiva enquanto Carta Política (art. 216-A).

Não é à toa que o Fascismo ataca a cultura e a arte, e a educação pública, em primeira ação regressiva, exatamente porque aí se colocam as vanguardas e a fonte da formação crítica e criativa. O que reforça o lema central dos direitos humanos (a unidade na diversidade), e a retomada da Constituição antifascista de 1988, em que ressoa preciso e claro na cola dos princípios resguardados pela Carta Política de 1998 em relação à cultura/sociedade: I - diversidade das expressões culturais; II - universalização do acesso aos bens e serviços culturais; III - fomento à produção, difusão e circulação; IV - cooperação; V - integração e interação; VI - complementaridade nos papéis sociais; VII - transversalidade; VIII - autonomia; IX - transparência e compartilhamento; X - democratização com participação e controle social; XI - descentralização articulada e pactuada; XII - ampliação progressiva dos recursos.

No que se consubstancia a previsão do Art. 5º, IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença...”. Com a óbvia ressalva de que aí não se prefigura uma suposta Autorização Constitucional para se defender a negação da própria Constituição e dos valores humanos: todas e todos respondem criminalmente pelo excesso.

         É preciso ter clareza, sempre, que ao afirmar a autonomia, a CF88 rechaçou qualquer lapso ou apêndice de possível fascínio com o Fanatismo, ligação religiosa ou ação permissiva ao Estado a fim de se imiscuir em qualquer tipo de seita política, religiosa ou ideológica.

Portanto, isto nos exige observar a Ciência da CF88 como uma construção interligada, um conjunto complexo entre ciência e inovação, educação e pluralismo político, arte e cultura, comunicação e liberdade, diversidade social e inclusão democrática dos direitos de cidadania. Contudo, é preciso ter clareza absoluta de que, sem laicidade, não há conhecimento científico, filosófico ou arte e cultura com liberdade, nem educação com autonomia. Por isso, reforçamos o entendimento do art. 19 da CF88:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

II - recusar fé aos documentos públicos;

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (grifo nosso). 

A Carta Política de 1988, com base na dignidade humana, reservou ao foro íntimo a escolha da religiosidade, religião ou sua abstenção. Desse modo, entende-se por Estado Laico um posicionamento distante das questões da fé, uma atuação de neutralidade, uma vez que nem o Estado professa uma religião ou acolhe alguma para seu benefício ou para se beneficiar – ou ataca qualquer outra divergente –, nem prega ou instiga o ateísmo. Não se trata de Estado religioso, teocrático, muito menos de Estado Ateu.

A Ciência da CF88 – como teleologia, ontologia e Ética Constitucional (para além da nomologia praticada) – deve ser laica, indistinta, equidistante, às cores religiosas ou ideológicas de qualquer grupo ou partido que detenha o comando do aparato estatal. A rigor, o preceito do pluralismo político bastaria para fazer esta baliza. É a mesma base que se destaca dos artigos 205 e 206, I, II, III, sob o preâmbulo do pluralismo social.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

...

IX - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida. (grifo nosso). 

         Além de muitos princípios – como a Educação Permanente (inciso IX, na emenda de 2020), a CF88 reservou ao artigo 205 o princípio da corresponsabilidade social, ética, como interstício do próprio Processo Civilizatório – este que vemos fluir no art. 215, parágrafo único.

Mas, ainda há subvenção do art. 19: o Estado Laico. O Estado Laico deve se postar de forma a corresponder à tolerância religiosa (Locke, 1987) e, portanto, política, salvo diante das manifestações e das pregações de intolerância, ou seja, o Estado deve ser intolerante – em seguimento à CF88 – com quem professa a intolerância e faz de uso instrumento para criar, acirrar atitudes de discriminação e de intolerância às práticas culturais e religiosas que a ninguém discriminem.

O art. 19 da CF88, Princípio da Laicidade Pública, é óbvio na defesa da liberdade e da diversidade, pois, além da obrigatória laicidade, vê-se o inciso III garantir a recusa de qualquer ato público com vistas a provocar desídia, dissolução, desigualdade, diferenciação preconceituosa ou discriminação de qualquer natureza. Isto ainda é o que se depreende da decisão monocrática de ministro do STF ao liquidar iniciativa do governo federal em extirpar alíquotas de importação de armas – com a afirmação constitucional de que tal portaria executiva viola e afronta diretamente a vida, no cenário público, e a segurança dos indivíduos[116].

Nesta seara, a Garantia Constitucional interposta ao/pelo Processo Civilizatório (art. 215, § 1º) deve-se pautar, ainda, pelo Princípio da Universalidade – o mesmo que recobre os direitos sociais (art. 6º da CF88) e é constante na educação pública (artigos 205 e 206 da CF88) – e por uma série de conquistas de direitos atrelados ao próprio fluxo do Processo Civilizatório.

Quais são esses direitos culturais reconhecidos na Constituição? São: (a) direito de criação cultural, compreendidas as criações científicas, artísticas e tecnológicas; (b) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (c) direito de difusão da cultura; (d) liberdade de formas de expressão cultural; (e) liberdade de manifestações culturais; (f) direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura, que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público. Tais direitos decorrem das normas dos arts. 215-216, que merecerão, ainda, exame mais aprofundado no título da ordem social (Silva, 2016, p. 317-318). 

         Por desdobramento do Princípio da Unicidade, esta mesma Engenharia Constitucional deve ser observada, não sob efeito residual, em concomitância com outras Rubricas Constitucionais, a exemplo dos seguintes artigos:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;

II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V -  proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;

VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;

VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;

VIII - fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;

IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;

X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;

XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;

XII - estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito. (grifo nosso). 

         Observa-se, portanto, que se trata de responsabilidade comum, compartilhada.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

II - orçamento;

III - juntas comerciais;

IV - custas dos serviços forenses;

V - produção e consumo;

VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;

VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;

XI - procedimentos em matéria processual;

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

XV - proteção à infância e à juventude;

XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.        

Compete, concorrentemente, também implica em necessidade de ação ou responsabilidade compartilhada, ou seja, corresponsabilidade. No que se referencia, em confirmação, nos artigos acerca da Ciência e da Inovação – como critério de reafirmação do Processo Civilizatório:

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação.

 Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal.

         Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei.

         Art. 219-B. O Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) será organizado em regime de colaboração entre entes, tanto públicos quanto privados, com vistas a promover o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação (grifo nosso). 

Sob este conjunto de afirmações constitucionais deve se observar o Princípio Civilizatório e também todo esforço de construção de conteúdos que sejam direcionados à educação constitucional. Visto o Processo Civilizatório como oposição sistemática do obscurantismo.

 

A Ciência da Carta Política de 1988 contra o obscurantismo

Nero contra a civilização 

Em decorrência, já podemos observar que a Ciência é um dos conteúdos técnicos, específicos e é um dos pilares da CF88, como vemos, por exemplo, no artigo 218, § 1º:

O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. § 1º A pesquisa científica básica e tecnológica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação. [117] 

O Princípio do Pacto Federativo também é imperativo categórico na CF88 e, assim, temos esta objetividade proposta na CF88, no que se refere à produção científica:

Art. 219-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades públicos e com entidades privadas, inclusive para o compartilhamento de recursos humanos especializados e capacidade instalada, para a execução de projetos de pesquisa, de desenvolvimento científico e tecnológico e de inovação, mediante contrapartida financeira ou não financeira assumida pelo ente beneficiário, na forma da lei.[118]  

Com isto podemos destacar alguns princípios e algumas conexões entre Política e Constituição e, neste sentido, objetivamos concluir com alguns apontamentos acerca de uma Ciência Constitucional ou, dizendo de outro, enquanto Ciência da CF88. Häberle (2008) nos oferece um tripé analítico, como suporte de sua perspectiva jurídica – sempre como Multiculturalismo, Constitucionalismo Democrático e Federalismo. No entanto, é preciso firmar a convicção de que o Pluralismo Constitucional não deve ceder aos regionalismos, a fim de se constituir como real reflexo do interesse público e que suporte o Estado de Direito Democrático de 3ª Geração.

Pelo mesmo exemplo já destacado do Homem Médio, observamos que: se não há consciência jurídica do Fenômeno Constitucional, por outro lado, tem-se consciência social acerca do mesmo fato. Então, é de se supor que a consciência jurídica se subordina à consciência social, mas, a consciência social não é imediata e nem explicativa da consciência jurídica:

A única verdadeira consciência é social. É ela que torna os dados sociais fundamentais transmissíveis, já que eles constituem o essencial da orientação do homem [...] No que respeita ao conhecimento do direito em si, existem dois tipos: 1) conhecimento do direito: direitos concretos do indivíduo, direito em vigor[119]; 2) conhecimento social do direito, avaliação da situação geral socialmente definida[120] (Arnaud,1999, p. 142 – grifo nosso). 

Isto nos leva a outra questão:

·        O que é consciência social?

Como diz o próprio Marx no famoso Prefácio:

Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral [...] A transformação da base econômica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações é necessário sempre distinguir entre alteração material – que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa – das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito, levando-o às suas últimas consequências (Marx, 2003, p. 05 – grifo nosso). 

Do que decorre mais uma constatação:

·        Há subsunção da consciência jurídica à consciência social.

Neste sentido, inverte-se o postulado positivista da subsunção jurídica: tradicionalmente, no mundo jurídico, vai-se dos fatos sociais às normas jurídicas.

         Em relação à CF88 pode-se dizer basicamente o mesmo:

·        Não há Consciência Jurídica e, desse modo, ignora-se por completo qual seria a Ciência da CF88.

Então, qual seria essa Ciência Constitucional?

Em primeiro lugar, diremos que se trata do (re)conhecimento da Carta Política e isto exige um esforço constitucional e político:

1.   Conhecer, tomar ciência da CF88.

2.   Ter ciência de que se trata de uma Constituição Antifascista.

3.   Reconhecer, portanto, que há uma Carta Política.

4.   Reconhecer que há uma Ciência na CF88.

5.   Reconhecer que o Conhecimento Constitucional é ontológico e teleológico: humanizador, socializador.

6.   Reconhecer que a Política contida na CF88 é expansiva, inclusiva, libertária, emancipatória, igualitária, progressista.

7.   Reconhecer que a Carta Política guarda uma Utopia Constitucional – qual seja, transformar a desigualdade e a miséria humana em um “u-topos”, um não-lugar existencial entre nós.

8.   Conhecer a Política para garantir, revigorar, aprofundar a Carta Política e para melhor se reconhecer nessa mesma Política. 

Basicamente, é assim que trazemos um debate qualificado acerca da CF88 e de seu conteúdo revelador enquanto Carta Política. Portanto, é desse modo que teremos “nossa” Ciência da CF88 – ou Ciência da Carta Política.

Com isto ainda reafirmamos que o constitucionalismo cultural de Häberle (2008) se ajusta como concepção privilegiada no combate ao autoritarismo, Fascismo e à depreciação social e humana, bem como à Carta Política e à Ciência Constitucional humanista e democrática (Martinez, 2019).

Diremos ainda que se trata de uma forma específica de avaliar a realidade baseada na capacidade de argumentação, verificável e validável como lógica, coerente – ainda que especulativa –, ou de comprovação fática, empírica, experimental ou demonstrativa de um determinado fenômeno.

Um argumento (“raciocínio”) que advogue o pseudo direito de se acreditar no que quiser, como Papai Noel e Terra plana, ou, igualmente injustificável, como “a CF88 não presta, não fez as reformas necessárias”[121], é imprestável do ponto de vista científico, exatamente, porque são ilógicos e sem nenhuma conexão com a realidade dos fatos. Por conseguinte, a primeira tarefa é encontrar um objeto válido, validável.

Neste sentido, o dicionário jurídico especializado traz uma observação interessante, pois, ter ciência de algo equivale a não poder alegar-se ignorância sobre a mesma – equivale a estar ciente (de Plácido e Silva, 2020, p. 168). Cientificamente: estar ciente da realidade – ao menos do “entorno” do cientista e dos contornos de sua própria realidade.

Pode-se dizer, então, que esta abordagem da ciência também tem alguns dogmas: 1º) O que vamos observar, analisar, “testar”, pensar, deve ser real, algo realmente possível de se acreditar, em validade e oportunidade, ou seja, não se trata de qualquer “coisa”; 2º) Dada esta premissa, resta saber como faremos isso, e só pode ser de modo crítico, pois, a ciência sem crítica é ideologia, isto é, apenas reafirmação do que sabíamos antes de iniciarmos as “investigações”; 3º) A conclusão dessas fases iniciais tem uma motivação, um porquê de assim ser, e a única hipótese possível é de que sejam instrumentos validáveis e eficientes – por meios técnicos ou reflexivos –, e que estejam a serviço da construção do conhecimento e como aporte/suporte à felicidade da Humanidade.

Häberle (2008) intenta constituir um modelo jusfilosófico (axiológico) da cultura, notadamente nas sociedades modernas altamente racionalizadas. Evidentemente, sob um escrupuloso respeito à diversidade cultural, seria como um ideário a constituir numa sociedade multicultural e multiétnica. Certamente um desafio ao Estado Social que, além das dificuldades inerentes à ordem da cultura, ainda deveria fazer resistência ao neoliberalismo.

Juridicamente, equivaleria a ter o pluralismo como pressuposto jurídico-filosófico da Democracia Constitucional – equivalente a uma dimensão intercultural e jurídica da democracia social. Essa forma de ver o multiculturalismo – ou respeito às mais variadas intersecções culturais – empresta ao direito uma generosidade constitucional ao mesmo tempo em que se busca uma articulação jusfilosófica da cultura.

Assim, Häberle (2008) incorporou ao contexto jurídico a música e a literatura, a arquitetura, as artes cênicas e a pintura, os clássicos. Esse esforço lhe valeu uma visão policrômica, multifacetada, democrática, transdisciplinar e, como queria o autor, transcultural.

A luz conceitual procura fortalecer uma visão de duplo alcance: subjetivo individual; objetivo institucional. Seu intento é verificar na cultura os laços próprios à legitimação constitucional, como um processo político no interior de um amplo conceito de pluralismo (como axiologia e hermenêutica). Trata-se, portanto, de um pluralismo constitucional não-dogmático. Politicamente, essa hermenêutica constitucional traz o Princípio da Dignidade Humana e é receptiva a pontos de vista angulares e até opostos ou contraditórios. Sua perspectiva prima pela inclusão não-excludente, combatente da lógica dos meios jurídicos de exceção, em que se inclui a exclusão.

A Constituição axiológica e deontológica é pluralista, opondo-se ao modelo constitucional totalitário, integrista e fundamentalista; em que não fiquem à sombra valores como: diversidade; cidadania ativa; soberania autonômica. Desse modo, sua obra acaba por se converter num gigantesco poema-sinfônico do constitucionalismo democrático (uma “reserva teoricamente, tecnicamente, eticamente possível”).

Häberle vê o vigor ou a força normativa subjacente à Constituição, como se fora sua síntese cultural. De onde também transborda o eixo de sua base conceitual: “realidade; possibilidade; necessidade”. Há um nítido esforço por resultar em uma mescla entre cultura e direito (Justiça Política e Constitucional), informando as formas e os limites em que atuam, realisticamente, a normatividade jurídica constitucional concernente ao Estado Democrático de Direito e à sua cidadania.

No geral, por fim, teríamos perpassado pelos princípios da Constitucionalidade – do qual decorre o Princípio da Unicidade Constitucional – e do não-retrocesso social/moral.

 

Häberle e o intérprete da Carta Política

Do clássico à modernidade 

Häberle é um clássico contemporâneo e assim deveria ser lido por professoras e professores que aceitem o convite da Educação Constitucional. Entretanto, o que são clássicos na Ciência da CF88?

Clássico vem do latim classis – classe em variados significados: classe de militares (estratocracia) ou proletariado. Também derivou testis classicus (testemunha de especial credibilidade) e scriptor classicus: escritor modelar (Häberle, 2016, p. 44).

Todos os clássicos interessam à cultura jurídica e a sua doutrina, uma vez que os clássicos são reinvenções do passado na modernidade. Atemporais, os clássicos sugerem revisitarmos constantemente o aprendizado, o acumulado pela Humanidade na cultura geral e as máximas que funcionam como chaves de abertura para o futuro: adquirem uma influência fática, concreta, movedora, como legitimidade emprestada à normatividade:

[clássicos] Vigem com especificidade cultural no contexto de Constituições [...] no sentido da amplitude do pluralismo dos intérpretes da Constituição e da profundidade de uma cultura [...] textos clássicos instauram paradigmas no sentido de Thomas S. Kuhn. Nomeiam problemas [...] Cada Constituição de um Estado constitucional tem seus imprescindíveis textos de clássicos [...] os textos clássicos são um enriquecimento da vida das Constituições e um “conceito de crescimento” [...] Textos clássicos fazem com que Constituições sejam uma herança cultural e uma tarefa para todos nós, sejam um “patrimônio vivo” [...] Nós somos o sujeito de referência do que é clássico [...] a qualidade de um clássico não é apenas retrospectiva, mas também prospectiva, para o futuro. Assim, não existe uma sociedade fechada dos clássicos no Estado constitucional (Häberle, 2016, p. 37-40 – grifo nosso). 

A Constituição, como normatividade ascendente historicamente, ultrapassa a limitação positivista como tendência de se avaliar comumente na forma de Lei Maior. Ou seja, como Carta Política a Constituição é muito mais do que um resguardo “maior” em que se defende o conjunto de leis: ontologicamente, portanto, a Constituição não se limita ao resguardo do Império da Lei – e ainda que esta seja uma salvaguarda essencial:

Isso significa: devemos nos beneficiar da experiência dos clássicos, não apenas da sua experiência no trato de determinados problemas, mas também da sua experiência com a experiência [...] Esse uso da experiência, esse enfoque de ciência empírica, por exemplo com relação à tentação do ser humano pelo abuso do poder, coloca os textos dos clássicos numa posição sui generis: eles NÃO são citados com intenção meramente ornamental (Häberle, 2016, p. 105 – grifo nosso). 

         Na interpretação que veremos a seguir, trata-se inicialmente de um conatus (Hobbes, 1983) – como aprendizagem a partir dos sentidos empregados – ou do empirismo de Bacon (2005), e, no caso específico, do aprendizado acumulado histórica e culturalmente. Ou seja, o empiriocriticismo deve sofrer o inquérito de consciência do leitor e se submeter ao crivo da história, como “crítica da crítica”, ou superação, síntese que abre outras teses.

Assim, sem a força normativa dos clássicos, sem a marca da Carta Política que aciona o Princípio Democrático, a Constituição programática do Estado Constitucional não se sustenta como catalizadora da ação constituinte do processo civilizatório: a Constituição não se faz cultura, não se defende do Fascismo Nacional, senão em constante aproximação epistemológica com a Carta Política. Daí a função normativa precípua dos clássicos:

1.          Em primeiro lugar, o valor da ocupação com os clássicos da teoria política e do Estado constitucional reside no fato de que tal estudo serve como pré-escola da reflexão constitucional [...] Na formação de juristas, promove-se, por intermédio do estudo dos textos de clássicos, uma propedêutica do Direito Constitucional e da teoria constitucional [2.] as controvérsias, hoje tão atuais como antes, em torno da “compreensão clássica dos direitos fundamentais”, da relação entre Estado e sociedade, do “estado de sítio reprimido” assentam em discussões sobre questões de princípios [...] Sem o conhecimento de recepções específicas de Hobbes pelas escolas jurídicas, que se orientam mais pela “razão de Estado” do que pela “razão da Constituição”, as controvérsias atuais afigurar-se-iam menos claras do que são [3.] Por fim, a reflexão sobre os clássicos na vida das Constituições possui uma terceira dimensão, de crítica da ideologia [...] O retorno aos clássicos na vida das Constituições depois de 1945, mas também na Ciência Política, mediante a invocação da Ciência Política clássica, é expressão da crise (Häberle, 2016, p. 125-6 – grifo nosso). 

Em síntese, pensamos que a Educação Constitucional é, sobretudo, política – no sentido expresso de que se vale, inicialmente, do marco referencial da Carta Política de 1988. E desse modo é profundamente ética, tendo-se por premissa que o Estado Democrático de Direitos Fundamentais só é validável mediante o elo inquebrantável afirmado no Princípio da Dignidade Humana.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Resta claro que sem bom senso não há Direito e nem Justiça. É preciso ensinar política ao povo (Educação Constitucional) para se manter o governo — não há outra forma, afinal, na democracia, é o governo quem deve temer o povo. O tirano, ao contrário, usará de todos os meios a fim de manter o povo na escravidão — a começar pela “escravidão da ignorância”.

Desde 1988, o racismo, os ataques ao meio ambiente, a pregação antidemocrática e a incitação ao ódio social foram criminalizadas pela Constituição em altíssima gravidade. Neste curso do Processo Civilizatório, a Constituição Federal de 1988, sob a chancela de Carta Política, proibiu a prisão em segunda instância, os foros e os julgamentos de exceção, a tortura como instrumento de ação pública e a obtenção de provas por meios ilegais e ilegítimos. Então, o problema do país não é jurídico ou constitucional.

         O problema nacional é político, estrito sensu, no sentido de que sistemas e modelos políticos foram protagonistas, estopins ou combustível fértil ao Fascismo que nos cerca, e ainda que o Golpe de 2016 tenha sólida matriz político-jurídico. Aliás, a suposta materialidade teve cunho estritamente político, e só posteriormente foi recoberta com um leve verniz que se denomina de altercação imoral ou Transmutação Constitucional.

         O fator ou vetor de empuxo fascista, ao menos desde 2013-2016, tem uma condição econômica reativa sobretudo do sistema financeiro; todavia, o lastro dessa soma-zero –deflação, estagnação, desindustrialização, devastação dos empregos e do poder aquisitivo, dos recursos e dos bens naturais – é de ordem cultural.

O problema é que o Fascismo sempre esteve ventilado, sob os escombros de um tempo aleatório e distópico, fora enfurnado dentro do armário da mínima dignidade humana; porém, agora, o pior da cultura nacional – a miscigenação geradora de cordialidade, a “democracia racial”, o “jeitinho brasileiro”, todos gerados em estupro coletivo de mulheres negras e indígenas – descobriu que a porta não estava trancada. Nem ferrolho tinha.

         O resultado foi (e é) um imenso complexo de vira-latas que virou a cultura nacional para, de frente, mas alquebrada, bater continência à bandeira do Império Estadunidense. Fomos abduzidos por um inimigo que nem é combatente – visto que a capitulação sem sequer disparou uma advertência. Talvez uma salva de tiros, para os “bem-vindos” cidadãos de bem.

         Portanto, nosso trabalho – resultado direto, de certo modo, do abismo criado pelo analfabetismo disfuncional e gerador do analfabetismo político – impõe-nos pensar em formas sociais civilizadoras a fim de se somar a um efeito multiplicador da Educação Constitucional e em Direitos Humanos. Um efeito com afeto (pacificação social antielitista e segregadora), em formas populares, inclusivas, alternativas, críticas, democráticas, emancipadoras. Ainda hoje, desde 2016-2018, espera-se uma aliança teoria/prática restaurativa, se computarmos o Fascismo cotidiano, a perda do Estado de Direito, a total vulgarização da República que chafurda na violência social, política, institucional, moral e “religiosa”. No entanto, há esperança e a esperança reside na luta.

Um dos remédios educacionais continua sendo a Educação Pública, com seleção de um conteúdo mais específico, no que tange especialmente a uma Educação Constitucional. Sumariamente seu conteúdo teria de absorver lastros de uma Educação para a Emancipação – em si revolucionária do status quo – bem como de uma Educação para a Cidadania, Democracia e Direitos Humanos Fundamentais (revisitando os clássicos).

Além disso, destacamos, de início, que seja uma educação crítica, de qualidade (discursiva e prática: como se fora uma Educação Para o Poder), socialista quanto ao acesso aos recursos epistemológicos e ontológicos.

Por seu turno, como se trata de uma Educação Constitucional, lastreada em Direitos Humanos Fundamentais, trata-se, ainda, de estudar a CF88 em seus princípios e principais artigos relacionados a este contexto: dos direitos civis aos sociais, dos direitos trabalhistas aos direitos políticos, perpassando pelo capítulo da educação, meio ambiente, segurança, saúde, assistência social.

O foco aqui estaria depositado na capacidade de incluir a participação popular por meio da desconcentração e da centralização do poder decisional: em todos esses capítulos, mas não só nesses, ressalta-se a construção coletiva, conjugada, multifuncional, da “obrigação pública de fazer”.

Quando pensamos neste conjunto complexo de conteúdos alinhavados (mas não exclusivos), mediante uma perspectiva colaborativa, ativa, propositiva, ressalta-se a relação de ensino-aprendizagem que se constitui não apenas em termos de desempenho e produtividade.

Não falamos de retórica, decoração, mas, especialmente, de processos avaliativos da formação de massa crítica (ou seja, da “crítica da crítica”, de negação da negação, de superação) em termos de dedicação e empenho individuais: o ato de ler, estudar e refletir, isoladamente ou em conjunto.

Portanto, falamos de uma Educação Constitucional pautada na ideia de politecnia, de pluralidades de reconhecimento do próprio conhecimento científico, no dizer de Lênin, e apropriado por Gramsci ao propor atenção ao Intelectual Orgânico. Este mesmo conjunto complexo conforma os sentidos gerais e amplos de uma Educação Constitucional Permanente (visto o artigo 205, IX), e permanentemente antifascista, em construção individual e coletiva do apreço e do reconhecimento dos Direitos Humanos Fundamentais, da luta política pelo direito, intencionada e vocacionada ininterruptamente pela luta política entre as classes sociais.

Em tempos de atavismo recalcitrante, de aposta cega no obscurantismo, de aprofundamento de práticas fascistas, de aviltamento de todo o Processo Civilizatório, é urgente resgatarmos a crença ofertada pelo conhecimento (ao revés do vazio das aparências inócuas), pela prática emancipatória da Política. A superioridade epistemológica do conhecimento, da Ciência, da prática humanizada pelo exercício efetivo da autonomia na Polis, é consentânea da inteligência humana. Desde o Neolítico que estamos nos fazemos entre arte, “fazer-se política” e técnica: Ciência, tecnologia e inovação.

         Esta é uma parte do esforço da Humanidade para construir o conhecimento (científico) auferido pelo bom senso, pela lógica, isto é, Prudência, Ética, Criticidade (não há Ciência sem crítica) e pela capacidade socializadora de responder às debilidades humanas e sociais. E isto, por óbvio, sempre será superior ao descaminho do senso comum, da ignorância científica (refratária à racionalidade), do oportunismo político: sem racionalidade não há objetividade, regularidade, discricionariedade, eficácia técnica e “efiCiência social”.

         Isto tanto se aplica ao Direito, à Política, quanto à produção do conhecimento. Pois, ou temos fluidez, transparência e honestidade intelectual inerentes à Democracia e ao Processo Civilizatório – por onde flui o “conjunto complexo dos Direitos Humanos” – ou temos o plano linear da mediocridade fascista.

         Esse “racial-fascismo”, como é latejante nas instituições e na alma de cordialidade brasileira, pulsante no coração e na mente do “homem médio em sua vida comum”, é o porta-voz do imediatismo (onde não cabe o repouso da reflexão), da adulteração da realidade, da vulgarização da mente analítica. Trata-se do mesmo pacote de consumismo do “non sense”, da mesquinharia e que é provedor do Pensamento Único, da Ideologia (em eterno retardo diante da Ciência), posto que são todos justificadores do Fascismo.

         Afinal, ou são pérolas num colar, cultivadas pelo rigor, ou são falsificações para atender ao alheio, ao capital, e não ao Outro. Precisamos de uma “nova” bricolagem, uma Ecológica anti-fascista, revigoradora da Condição Humana que se revelou nesse breve século XXI. É nesse sentido que a presente pesquisa se debruça sobre a CF88 como Carta Política, para uma Educação Constitucional e em Direitos Humanos, e que seja transformadora. Diante disso, apresentamos o manifesto abaixo à guisa de conclusão:

 

NÓS, PESSOAS

         Consideramos que “o Fascismo não passará”.

         Porém, considerando-se que o Fascismo bate as botas em nossas portas, “nós, pessoas”, propomos um libelo pela dignidade humana – esta que sempre nos foi negada pelos capitães do mato, em perseguição letal aos capitães da areia, como fez Javert contra Jean Valjant.

         Portanto, considere-se que aqui se inaugura um coletivo pela democracia, Direitos Humanos e dignidade humana – muito antes e para além do capital: “Nós, pessoas”.

Denominemo-nos e juntemos nossas forças, neste coletivo inaugurado, promulgado popularmente, como: “Nós, pessoas”.

Este coletivo, “Nós, pessoas”, propõe que não sejamos um Nós, de Zamiatin, mas sim nós de resistência silenciosa ou manifesta, de todas e todos, como a história sempre apontou.

         Nós, pessoas, propomos comandos coletivos em nossa causa de libertação do jugo fascista; mas, que sejamos inspirados em pessoas como o Subcomandante Marcos a liderar o povo massacrado de Chiapas.

         Nós, pessoas, portanto, todos nós, o homem médio em sua vida comum, professores, educadoras, trabalhadoras, estudantes, profissionais liberais, advogados, mães, pais, filhos, artistas, juristas, pensadores, libertárias e libertários, propomos esta carta, esta denúncia, este chamamento, a todos e todas que se solidarizam com a verdade, a democracia, o bom senso, com o pensamento científico e filosófico que não se cala diante do Fascismo e de suas inverdades mortíferas.  

         Nós, pessoas, propomos, além de denunciar os maus tratos impostos ao povo brasileiro, sobretudo os mais fracos e já vitimados por tantas injustiças, que cada um(a) de nós, todos os dias, produza um pensamento, uma frase, uma reflexão, uma postagem, como se fosse um “grito primal”, em favor da dignidade humana.

         Nós, pessoas, também propomos que cada um(a) de nós se pronuncie em seu trabalho, em sua casa, na política e nas redes sociais, contra o Fascismo que comemorou milhares de mortos.

         Nós, pessoas, ainda propomos que não mais se criem fantasmas sociais, replicadores desse mesmo Fascismo, como no passado se encobriu a história de um Thoreau, um Caso Dreyfus, um Eu Acuso!

         Nós, pessoas, propomos que não se calem aqueles que querem instituições democráticas, republicanas, em defesa da Constituição, da Política libertária e não-parasitária, até que todas e todos sejamos tratados, exatamente, como pessoas.

Você, se acredita no que manifestamos aqui, exatamente como somos neste “Nós, pessoas”, leve este manifesto por onde for e divulgue-o – ou produza o seu. O povo, que luta e morre por sua dignidade, agradece.

 

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[2] Observamos que partes desse texto foram apresentadas em lives de discussão, cursos de extensão, palestras, na forma de artigos de divulgação e popularização científica e enquanto artigos acadêmicos, referenciados pelo sistema Qualis de produção.

[3] Especialmente agora que o Supremo Tribunal Federal acabou de concluir a negativa civilizatória contra o assim chamado Marco Temporal, por nove votos a dois. Uma vitória acachapante do Indigenato, da ancestralidade, da cultura e da miscigenação originária do povo brasileiro.

[6] Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

I defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

II produção, promoção e difusão de bens culturais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

III formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

IV democratização do acesso aos bens de cultura; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)

V valorização da diversidade étnica e regional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005).

[7]Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um...”.

[9]  Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (grifo nosso).

[13] Ainda que aqui o mais correto seja denominá-lo de estado de emergência, como condição análoga à “calamidade pública”.

[14] Em 2007, os gastos militares “não-convencionais”, em alta tecnologia militar, elevou-se a 17;8%, num total de US$ 45 bilhões, e já disponibiliza de uma outra unidade de guerra de informação.

[15] A China já testou mísseis antissatélites e os EUA já têm “aviões de guerra não tripulados”.

[16] É como pode-se ler esta declaração do chefe de polícia de Nova Iorque: "A Internet é o novo Afeganistão’, disse Kelly, ao divulgar um relatório sobre a ameaça dentro do país de extremistas islâmicos. ‘É o terreno de treinamento de fato. É uma área de preocupação.’ O relatório concluiu que o desafio para as autoridades ocidentais foi identificar e prevenir ameaças domésticas, o que é difícil porque muitos dos eventuais terroristas não costumam cometer crimes em seu caminho para o extremismo. O relatório identificou quatro estágios até a radicalização, como a pré-radicalização, a auto-identificação, a doutrinação e a ‘jihadização’. Ele diz que a Internet é o veículo desse processo”. Em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1833475-EI4802,00.html.

[17] http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2007/10/04/ult2680u572.jhtm.

[18] "Não é possível capturar, matar ou encarcerar ideias’ (sic), disse o tenente coronel Joseph Felter, diretor do Centro de Combate ao Terrorismo na academia militar em West Point [...] Frank Cilluffo, diretor de segurança da Universidade George Washington, disse que a Internet criou um ‘grande mundo sem fronteiras’. ‘Salas de bate-papo na Internet estão suplementando mesquitas, centros comunitários e cafés como pontos de recrutamento e radicalização de grupos terroristas, como a Al-Qaeda’, ele disse. Para combater isso, Cilluffo apontou táticas para invadir as comunidades online e utilizar sua própria natureza como vantagem para os Estados Unidos. ‘É possível que um oficial de inteligência se passe por um simpatizante e se infiltre em uma comunidade extremista, por exemplo’, disse o diretor. ‘Confusão, dúvida e falta de confiança também podem ser plantadas para destruir os laços entre os indivíduos extremistas e impedi-los de se transformarem em um grupo coeso e perigoso." Em: http://tecnologia.terra.com.br/interna/0,,OI1592998-EI4802,00.html.

[25] Pode-se entender como estagnação, congelamento de efeitos, perda de consistência e de materialidade, substantitividade. Mas, também é conflito, revolta, guerra civil. Da colisão entre a coalização político-institucional, advém o repouso (transformado, politizado da stasis) e que se conclui na suspensão da política, inerente ao Estado de Exceção. Stasi Também era o nome da temível polícia secreta da Alemanha Oriental.

[32] “A Constituição rígida é a lei suprema [...] A supremacia da Constituição decorre de sua origem. Provém ela de um poder que instituiu a todos os outros e não é instituído por qualquer outro, de um poder que constitui os demais e é por isso denominado Poder Constituinte [...] Ora, para assegurar a supremacia da Constituição é preciso efetivar um crivo, um controle sobre os atos jurídicos, a fim de identificar os que, por colidirem com a Constituição, não são válidos” (Ferreira filho, 2009, p. 20-21).

[39] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/08/1500988-como-a-reforma-do-codigo-penal-pode-afetar-o-sistema-carcerario.shtml.

[40] http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-08-19/so-10-dos-detentos-tem-acesso-a-educacao-dentro-das-prisoes-brasileiras.html.

[41] Datam da Constituição Francesa de 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, ou seja, são do pós-absolutismo, inaugurando-se a modernidade jurídica. Também não configuram uma cópia do Direito Romano: Durante a República, o título de imperator sinaliza apenas um “comandante das forças militares” e não Imperador (Agamben, 2004). Hoje, é a base jurídica das modernas ditaduras civis (Martinez, 2014). Nem mesmo o dictator romano se assemelhava aos fascistas resistentes, renitentes, do século XXI.

[42] http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2442.

[43] http://jus.com.br/artigos/30326/revolucao-iluminista.

[48] Falsidade, hipocrisia, “pequenas ou grandes mentiras”.

[49] A Medida Provisória da CPMF, no Brasil, perdurou por mais de uma década.

[50] Numa clara referência aos lícitos e ilícitos meios de sedição, mas que também poderiam ser de sedução e de exceção dos mecanismos de poder.

[57] Os ideólogos dessa atualização da Razão de Estado na Modernidade Tardia, em exemplo mais do que simbólico, alegam suposta legalidade do Estado de Direito Internacional (confundida com legitimidade conquistada sob o jugo do Império) para justificar a eliminação de Bin Laden em ação violadora da soberania nacional do Paquistão e o desinteresse pelo direito internacional.

[58] Neste campo, o que temos em comum é o crescimento do lumpemproletariado (os totalmente excluídos da economia, do mercado de trabalho, das redes de inclusão social e política) à frente da violência sistêmica. Além de ser a pior crise de militarização da sociedade que se vê desde o fim da Segunda Guerra Mundial, momento em que, é bastante óbvio, todos os Estados envolvidos tomaram medidas de exceção, incluindo-se o Brasil e os “campos de concentração” criados para deter cerca de 3.000 pessoas de origem alemã, italiana e japonesa em sete Estados brasileiros (PA, PE, RJ, MG, SP, SC e RS). No Egito, o Golpe de Estado levou ao Estado de Sítio Político (“amparado em lei”) e, no fundo, é apenas o eterno retorno do Estado de Exceção, revelando suas forças subterrâneas e extenuantes, autocráticas, intransigentes. Ironicamente, no Egito, contra o Fascismo da Irmandade Muçulmana – que quer impor sua religião pela violência –, o Exército age como mandante de uma força político-militar que é igualmente fascista. Todo Golpe de Estado e, a posteriori, o Estado de Sítio Político, é avesso à ordem jurídica democrática e, é lógico, não podem ser democráticos.

[59] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político (grifo nosso).

[60] Artigo 5º da CF88: “XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.

[61] No contexto político adotado, a educação corresponde a toda forma de luta contra a monocracia, sendo capaz de superar o formalismo, a burocracia excessiva, o ensino bancário e “formação tecnicista”. Outrossim, é preciso saber que a curvatura da vara ideológica não se declina espontaneamente do senso comum (Saviani, 1989), entendendo-se que sem o acesso de qualidade ao conhecimento construído pela Humanidade o bom senso é prisioneiro da mesmice, dos fatalismos e dos modismos.

[62] Também já se diagnosticou crimes contra a Federação: https://aterraeredonda.com.br/a-cronica-movedica-do-precipicio/. Acesso em 25.08.2023.

[64] A Política é uma causalidade da Carta Política, assim como os direitos políticos positivados são uma garantia à ordem democrática – contrária aos juízos autocráticos: “Do lado da estatalidade constituída, faz-se mister analisar os procedimentos e instrumentos da democracia direta (e indireta): iniciativas populares, referendos e plebiscitos, eleições (os assim chamados direitos populares na Suíça, outros direitos políticos), mas também os ombudsman (originários da Escandinávia, posteriormente também instituídos no México)” (Häberle, 2007, p. 25).

[65] “Com esse espírito, o art. 1º, § 2, da nova Constituição do Paraguai (1992) preceitua: ‘La República Del Paraguay adopta para su gobierno la democracia representativa, participativa y pluralista, fundada em el reconocimiento de la dignidad humana’. Nesse sentido, o documento do encontro de Copenhague da Conferência na Europa de 29 de junho de 1990 [...] afirma em I, no 5, : ‘entre os elementos [...] os seguintes [são] essenciais para a expressão abrangente da dignidade inerente à pessoa [...]: eleições livres serão realizadas em períodos adequados [...]’. Em sentido similar, o Cap. 2, no 7, § 1, da Constituição da República Sul-Africana (1996)...” (Häberle, 2007, p. 24).

[66] “A Constituição enuncia também alguns direitos de solidariedade. Estes são projeções recentemente identificadas dos direitos fundamentais. Deles estão na Lei Magna o direito ao meio ambiente (art. 225) e o direito da comunicação social (art. 220). Esses direitos são difusos, na medida que não têm como titular pessoa singularizada, mas “todos” individualmente. São direitos pertencentes a uma coletividade enquanto tal” (Ferreira Filho, 2009, p. 310).

[67]Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (in verbis).

[68]Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL” (in verbis).

[69] A própria CF88 é cesarista, no sentido de permitir tanto poder descontrolado ao Executivo, ao permitir a nomeação dos ministros do STF. A principal contradição, neste caso, é o fato de a mesma CF88 fomentar as formas variadas de emancipação e de mutualismo (desde, por exemplo, o referido art. 215, § 1º).

[70] ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (in verbis).

[71]Igualdade em sentido material, além disso, significa proibição de tratamento arbitrário, ou seja, a vedação da utilização, para o efeito de estabelecer as relações de igualdade e desigualdade, de critérios intrinsecamente injustos e violadores da dignidade da pessoa humana, de tal sorte que a igualdade, já agora na segunda fase de sua compreensão na seara jurídico-constitucional, opera como exigência de critérios razoáveis e justos para determinados tratamentos desiguais. A compreensão material da igualdade, por sua vez, na terceira fase que caracteriza a evolução do princípio no âmbito do constitucionalismo moderno, para um dever de compensação das desigualdades sociais, econômicas e culturais, portanto, para o que se convenciona chamar de uma igualdade social ou de fato [...] De modo particularmente relevante para tal evolução, foi o modo pelo qual passou a ser compreendida a relação entre a igualdade e os valores (princípios e direitos) da dignidade da pessoa humana e da liberdade” (Sarlet, 2012, p. 527-528, grifo nosso).

[73]Seria uma alusão a Hans Kelsen?

[74]Fest, 1976.

[75] O que apenas corrobora a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 21.

[83]Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (in verbis).

[97] “Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social” (BONAVIDES, 2004, p. 186).

[99]a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. O Processo Civilizatório desabriga toda forma de sujeição (La Boetie, 1986).

[100] “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: V -  proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação”.

[101] “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”.

[102] Há de certa maneira uma referência ao fato de que a Humanidade – no Neolítico – desenvolveu ou aprimorou mais ou menos ao mesmo tempo a arte, a técnica e a própria política. Em seguida surgiram os primeiros Estados, no Vale do Ür – uma parte do Iraque.

[103] “A excelência em si, arete como a teriam chamado os gregos, virtus como teriam dito os romanos, sempre foi reservada à esfera pública, onde uma pessoa podia sobressair-se e distinguir-se dos demais. Toda atividade realizada em público atingir uma excelência jamais igualada na intimidade; para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença fortuita e familiar de seus iguais...” (Arendt, 1991, p. 58).

[104] “Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens [...] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las [...] Encontrar um vínculo entre os homens, suficientemente forte para substituir o mundo, foi a principal tarefa política da antiga filosofia cristã; e foi Agostinho quem propôs educar sobre a caridade não apenas a <irmandade> cristã, mas todas as relações humanas” (Arendt, 1991, p. 62-63).

[105]Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV - diretrizes e bases da educação nacional”.

[106] A Retórica não-republicana não é confessável publicamente e muito menos ocuparia espaço neste texto. Então, já segue aí a primeira regra da Retórica: tem que ser pública. A próxima normativa e que persegue nossa conclusão – especialmente para o pandemônio de 2028/2022 – assegura que: Podemos ensinar (e aprender) sobre a formação social do país, na pegada da Sociologia Clássica, debater O que é a Constituição e O que é (ou não) o Direito, ou a natureza da Política, do “fazer-se política”, para ficarmos nos temas que ocupam os jornais diários. A prova disso é que Cícero recusaria drasticamente confundir Retórica com sofisma. A última observação, que já é óbvia, mas que vemos em ação, nos diz que a Retórica clareia o público, com convencimento a partir de dados e fatos demonstráveis, racionais, e que os indefesos caem vítimas apenas diante da Ideologia. Todavia, distinguir Retórica de Ideologia foi um esforço do Renascimento e não cabe no escorço deste texto. Enfim, cabe ainda explicar que Retórica vai em maiúsculo por que se referenda na República.

[114] O valor tomará armas contra o furor; que a luta se espraie bem depressa!

[115] Bacon é tido como pioneiro entre os modernos, na ciência, e o último dos antigos: fundador da Ciência Moderna. Mas também recebeu críticas, como sendo oportunista. Sua vida reflete os conflitos da civilização ocidental da época. Viveu a consolidação do absolutismo na Inglaterra, experimentou ao renascimento e a expansão do Capitalismo. No Novum Organum, vê-se que a retórica não é própria do cientista (Bacon, 2005, p. 38). Por isso, cientificamente, é preferível a interpretação à antecipação. É preciso chegar à pesquisa direta, às coisas (Bacon, 2005, p. 39). Vai utilizar-se da ACATALEPSIA dos gregos, como incompreensibilidade (se usado apenas o intelecto – sem a prática). A razão deve gerar um ceticismo, ou seja, no caso de Bacon a teoria dos ídolos leva-nos à ideologia. Propõe-se a EUCATALEPSIA – seu propósito é amparar os sentidos e dirigir o intelecto. Seu método deveria ser aplicado a todas as ciências. Diz expressamente quanto à lógica, à ética e à política (Bacon, 2005, p. 95).

[117] Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015.

[118] Redação dada pela Emenda Constitucional nº 85, de 2015.

[119] “Na qualidade de conhecimento do direito em vigor, a consciência de lege data surge, inicialmente, sob a forma de sentimentos, de representações e de informações sobre o sistema concreto de regulação jurídica das relações sociais...” (Arnaud, 1999, p. 143).

[120] “A consciência lege ferenda se manifesta através de sentimentos, de emoções, de comportamentos, de representações, de concepções, de teorias e de atos que estão, no fim das contas, sempre orientados em direção a uma criação do direito” (Arnaud, 1999, p. 143).

[121] Quem faz ou não qualquer reforma ou mudança é o agente político e não a lei – a lei pode prever, regulamentar, obrigar, punir, mas não fazer nada.

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