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Saúde

Automedicação: isso tem que parar


A automedicação é um dos maus (e perigosos) hábitos mais difundidos no mundo. Estudo da própria indústria farmacêutica mostra que, em média, quatro a cada dez pessoas compram remédios, sem prescrição médica, ao menos uma vez por mês, no Brasil. Mais do que uma atitude esporádica, trata-se de uma prática corriqueira – e de alto risco.

Assim como em qualquer setor de mercado, os consumidores de remédios se julgam aptos a decidir qual produto adquirir. No entanto, os danos da ingestão inadequada de medicamentos, inclusive os isentos de prescrição médica, podem ser graves e até fatais. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), quase 35 mil pessoas sofreram este tipo de intoxicação, em 2007, sendo que 90 morreram.

Ouvir a experiência do vizinho ou somente ler a bula não basta: medicamentos fazem parte da prescrição de um tratamento e precisam ser indicados por profissional habilitado: o médico. Há décadas, o Ministério da Saúde divulga a orientação “Se persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado”, após as propagandas dos laboratórios farmacêuticos. Um encaminhamento completamente equivocado, segundo a Associação Paulista de Medicina (APM):

“É uma premissa absurda, invertida, um convite à automedicação que coloca a procura do atendimento como uma simples alternativa à falha daquele produto”, protesta o diretor de Comunicação da APM, Renato Françoso Filho. Na tentativa de corrigir este equívoco, o projeto de lei 328/06, que tramita no Senado, propõe a substituição da referida frase por “Antes de consumir qualquer medicamento, consulte um médico”.

Preocupados com o grau de exposição dos pacientes a essa prática, os médicos reivindicam medidas contra a automedicação, no sentido de conscientizar o público leigo sobre a gravidade do hábito e chamar o poder público à sua responsabilidade quanto a políticas que o coíbam. “A APM tem como um de seus princípios estatutários a defesa da saúde da população e, por isso, tem o dever de alertar: automedicação é um hábito nocivo, e deve ser combatido”, afirma o ex-presidente Jorge Carlos Machado Curi.

 “Os pacientes precisam saber que todo remédio tem um risco. O dever do médico é avaliá-lo em comparação aos danos da doença”, pondera Álvaro Atallah, diretor da APM e professor titular de Medicina Baseada em Evidências da Unifesp.

A vida por uma escolha errada

São inúmeros os riscos que o paciente corre ao se automedicar, com destaque para o mascaramento do quadro clínico e o consequente diagnóstico equivocado ou tardio. Em ambos os casos, há retardo no tratamento correto, o que pode desencadear uma série de complicações. Outros problemas são interação medicamentosa, alergias e dosagem e administração inadequadas – tanto em quantidades baixas, que podem promover a resistência bacteriana, por exemplo, quanto em quantidades altas, que acarretam efeitos colaterais.

Instituições como a World Self-Medication Industry (WSMI ou Indústria Mundial da Automedicação) e a Associação Brasileira de Medicamentos Isentos de Prescrição (Abimip) defendem a prática da denominada automedicação responsável, alegando o baixo risco dos remédios sem tarja. A teoria, entretanto, é contestada por especialistas.

“Ácido acetilsalicílico (AAS) causa úlceras e outros problemas de estômago; analgésicos à base de paracetamol são os maiores causadores de suicídios na Inglaterra; e descobriu-se que vitaminas receitadas indiscriminadamente para prevenir enfarte podem causar câncer”, exemplifica Atallah.

Coordenador do Centro de Assistência Toxicológica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, Anthony Wong afirma que até substâncias fitoterápicas, se usadas de forma errada, podem ser prejudiciais. É o caso do Hipérico, base da Erva de São João, segundo Wong um ótimo antidepressivo natural, mas que diminui os efeitos de anticoncepcionais e anti-HIV, além de cortar em até 60% a atuação de drogas para diminuição da rejeição de órgãos.

Os idosos são os mais vulneráveis aos perigos da automedicação, por conta da alta quantidade de remédios que já usam normalmente, facilitando a interação medicamentosa, e do estado debilitado do organismo. “A ingestão de um comprimido com alta dose de AAS por alguém que toma remédio para se recuperar de uma cirurgia cardíaca pode causar uma úlcera gástrica, que não coagula por causa do medicamento; isso é bastante comum em idosos que têm dores nas articulações”, descreve Wong. Também é frequente o uso de antigripal associado a spray para o nariz. Os dois remédios são vasoconstritores. Em uma pessoa de idade, que apresenta deficiência de fluxo sanguíneo no cérebro, pode desencadear um AVC.

Um antigo diretor da Sociedade Brasileira de Toxicologia, Ernani Pinto, lembra a periculosidade de medicamentos de tarja preta ou vermelha, que, “apesar de lícitos, podem causar dependências ou graves efeitos colaterais, levando até mesmo à morte”. Ele cita o risco de interações, como aconteceu com o cantor Michael Jackson.

Alergia a algum dos princípios ativos reforça o rol de perigos. “Existem antibióticos que têm como base a penicilina. Uma pessoa alérgica, ao tomar um desses remédios, pode morrer vítima de choque anafilático. Se fosse a uma consulta antes, o médico perguntaria se o paciente tinha alergia e faria o teste na hora, em caso de dúvida”, completa Ernani, também professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.

Remedinho para dor de cabeça

Entre os casos de automedicação, a dor de cabeça é a campeã. Por outro lado, a ingestão de analgésicos é o exemplo mais citado quando se fala de problemas. Os relatos envolvem desde o mascaramento de sintomas até o aparecimento de úlceras e hemorragias. A cefaleia pode ser consequência de tensão, jejum, hipoglicemia, hipertensão, aneurisma cerebral, início de meningite ou uma tendência a enxaqueca, entre várias outras.

“São inúmeras doenças diferentes com tratamentos ainda mais diversos. Assim como a febre, a dor serve como um aviso. Ao tomar o remédio sem ter o diagnóstico correto, pode-se perder um tempo precioso, por vezes fatal”, explica Paulo Pêgo Fernandes, diretor da APM.

s anos, a semelhança dos sintomas da dengue e da gripe comum trouxe à tona o risco de tomar remédio sem orientação médica. Isso porque o ácido acetilsalicílico, presente na maior parte dos antigripais, reduz a agregação das plaquetas. “Quando tomado em quantidades moderadas a grandes, o AAS pode provocar hemorragias, mesmo em pessoas saudáveis. No quadro da dengue, a ingestão do medicamento acelera a perda sanguínea”, ressalta Ernani Pinto.

Problema não tão divulgado, mas igualmente sério, pode acontecer com dosagens excessivas de paracetamol, encontrado em alguns remédios para gripe. “Nos Estados Unidos, essa é a causa mais comum de necrose fulminante do fígado, pois há antigripais cuja indicação é tomar dois comprimidos de uma vez. Depois disso, se tiver febre, a pessoa vai tomar um antitérmico, e tem que repetir o processo de oito em oito horas. Isso ultrapassa o limite de segurança e sobrecarrega o fígado.”

Fiscalização e políticas públicas

A automedicação desmedida não é exclusividade brasileira, mas a falta de fiscalização e de esclarecimento da população faz do país um dos primeiros na lista do consumo exagerado. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a receita nominal de medicamentos cresceu 138% de janeiro de 2003 a dezembro de 2008, percentual considerado alto pela maioria dos especialistas, que o atribui mais ao hábito inadequado de comprar remédios do que a uma eventual melhoria do acesso à saúde, que poderia ter aumentado a quantidade de prescrições.

Além de todo o risco à saúde, a automedicação traz prejuízos econômicos ao paciente, que paga pelos produtos errados e depois terá de custear o tratamento prescrito; e ainda ao sistema de saúde, que arca com a solução de problemas já avançados pelo retardo do diagnóstico.

“A indústria tenta empurrar medicamentos a todo custo, mas existem outras formas de expandir o mercado. Há muita gente que precisa tomar remédio para hipertensão, ser vacinada contra hepatite C ou tratar melhor o seu diabetes. Terapia ética possui seu espaço e faz muito bem”, pontua Atallah.

Por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Ministério da Saúde vem tomando medidas para restringir a propaganda e tentar regular o comércio de medicamentos sem prescrição, cujas vendas aumentaram 76,5% no período citado.

Para Paulo Pêgo Fernandes, contudo, é imprescindível coibir irregularidades, como a venda sem receita de medicamentos tarjados. “Muitas campanhas educativas defenderam o uso do cinto de segurança, mas as pessoas cumpriram a regra apenas quando passou a haver fiscalização eficiente e contínua”, compara.

Outra medida positiva seria o fracionamento de medicamentos, para que os pacientes pudessem comprar somente a quantidade necessária, evitando o armazenamento e posterior consumo de remédios não utilizados durante o tratamento. De acordo com o diretor do Departamento de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, José Miguel do Nascimento Júnior, o Congresso Nacional discute o projeto de lei 7029/06, que obriga os fabricantes a produzirem medicamentos em embalagens fracionáveis.

Apesar de garantir maior fiscalização sobre a prescrição médica no ato da venda de medicamentos, países europeus e os Estados Unidos também sofrem com o consumo ilegal e a ausência de critérios na ingestão de remédios sem tarja. A automedicação, portanto, mostra-se um desafio cultural em nações mais e menos desenvolvidas, o que só reforça a necessidade de tratá-la como questão de saúde pública, que não pode ser negligenciada.

Reportagem publicada na Revista da Associação Paulista de Medicina, em 2010, que segue atualíssima

Fonte: Acontece Comunicação e Notícias

Patrícia Boroski, Beatriz Recco ou Kelly Silva
 

 
 

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