Domingo, 13 de agosto de 2017 - 17h14
Enquanto não é aprovada uma política nacional de combate ao desperdício de alimentos e de aproveitamento das sobras do processo de produção, alguns estados buscam regulamentar a questão. No Distrito Federal, por exemplo, foi sancionada no ano passado lei distrital que obriga os supermercados de Brasília a doar alimentos que estejam prestes a perder a validade. O descumprimento da medida pode resultar em multa de R$ 10 mil ao estabelecimento.
Alguns projetos do Congresso Nacional também previam a possibilidade de punição para o produtor ou distribuidor de alimentos que não adotasse medidas de combate ao desperdício. Tais propostas, no entanto, não avançaram ou foram modificadas sob pressão de parlamentares representantes do setor produtivo e agrícola.
Para os especialistas, o problema do desperdício não será resolvido com aumento da produção de alimentos, nem com políticas punitivas. Eles defendem mais campanhas educativas e debate sobre mudanças culturais e de comportamento.
“Hoje, o desafio maior do que aumentar produção de alimentos é criar mecanismos para evitar o desperdício, que é muito genérico, tem várias faces. Tem, por exemplo, comida em excesso. Outro ponto, muito comum no Brasil, é o desperdício de alimentos que estragam por estar mal-acondicionados, ou mal-armazenados, ou por se perder no transporte, ou na hora de serem processados. É o que eu chamo de cultura do desperdício, é um conjunto de situações em que se exigiriam até mudanças de hábitos alimentares”, afirma o professor Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB).
Para o pesquisador da Embrapa Alimentos Murillo Freire, a punição não é a melhor forma de combater o problema. Freire diz também que as propostas em tramitação no Congresso precisam ser revistas em alguns pontos técnicos, como as que não inlcuem critérios para garantir a segurança química e biológica do produto doado. Ele questiona ainda as iniciativas que pretendem garantir benefícios fiscais para empresas que possam criar máquinas processadoras de alimentos, ou propostas que tratam da isenção de até 5% parte da alíquota do Imposto de Renda sobre o lucro das empresas como uma forma de incentivo à doação.
“Algumas empresas e supermercados posicionaram-se dizendo que isso não resolve. Se o supermercado doar o alimento, está tendo prejuízo, porque aquilo não entra no lucro líquido, não é descontado no imposto. Existem detalhes que os deputados não estão vendo. Os projetos de lei ainda são falhos e não abordam aspectos importantes. Com isso, a coisa não anda, vai e volta. Continuamos jogando comida fora. Hoje em dia já tem doação de alimentos e não tem lei, é tudo à margem da lei”, critica Freire.
De acordo com os pesquisadores, também faltam sugestões mais concretas para reaproveitamento de alimentos que não são comercializados por estarem fora dos padrões estéticos, como vegetais defeituosos, mas que ainda têm condições nutricionais seguras para consumo. A consultoria legislativa do Senado já elabora uma proposta específica para este ponto a pedido de um senador.
Todo esse conjunto de projetos legislativos está sendo analisado pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta por representantes do governo federal e do Congresso e por especialistas da área de produção de alimentos. São atribuições da Caisan elaborar e indicar diretrizes para executar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tem como uma de suas metas “estabelecer marco legal para a redução das perdas e desperdício de alimentos abrangendo os bancos de alimentos”.
Na próxima reunião da Caisan, marcada para o dia 24 deste mês, o levantamento das propostas legislativas deve ser consolidado em um relatório que apontará o papel de cada ator na construção da política nacional de combate ao desperdício.
“É um processo que tem de ser constante de educação, capacitação, conscientização das pessoas a respeito da importância do combate ao desperdício. Ainda assim, para evitar o desperdício em algumas situações, é preciso acionar os últimos elos do processo, que são aqueles que levam a doação de alimentos para populações mais carentes. Então, é um grande gargalo jurídico esse da doação de alimentos”, diz consultor legislativo do Senado Marcus Peixoto.
Bancos de Alimentos
Uma das principais estratégias é o fortalecimento da atuação dos bancos de alimentos como intermediadores entre os doadores e receptores dos produtos que sobram. Levantamento da Rede Brasileira de Bancos de Alimentos mostra que o país tinha 218 bancos de alimentos em funcionamento até o ano passado. As unidades arrecadaram no último ano quase 60 mil toneladas de alimentos, das quais 59.610 foram distribuídas para mais de 17 mil entidades sociais. O processo beneficiou em torno de 6 milhões pessoas em situação de insegurança alimentar.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, o governo disponibilizou R$ 5 milhões para apoiar os municípios que pretendem modernizar seus bancos de alimentos. A seleção das cidades aptas está sendo feita por edital público, do qual estão participando bancos em funcionamento há mais de dois anos, em municípios com mais de 150 mil habitantes.
Os recursos poderão ser usados para ampliação das unidades, compra de veículos de transporte dos alimentos, aquisição de geladeiras, computadores e material de escritório. O dinheiro, no entanto, não poderá ser destinado ao pagamento de funcionários e de contas de luz e aluguel.
A meta da rede é contar com a adesão dos 218 bancos em funcionamento para promover a qualificação da gestão dessas unidades. O Ministério do Desenvolvimento Social também deve começar ainda neste semestre a desenvolver manuais educativos para orientar as equipes técnicas.
Murillo Freire alerta, no entanto, que o incentivo ao aperfeiçoamento dos bancos de alimentos não deve ofuscar iniciativas que combatam o desperdício desde o início do processo. “Quando se fomenta banco de alimentos, que vive de doação, é porque a cadeia produtiva atrás não está bem. Algum problema tem. Então, não é também uma saída ficar incentivando o banco de alimentos. É melhor construir toda a infraestrutura da cadeia desde a época do plantio, conscientizar o consumidor na sua casa a planejar a compra para não jogar fora, arrumar a geladeira, além de campanhas de comunicação. É consertar a causa, e não a consequência, pondera Freire.
Direito à alimentação
Os especialistas ressaltam que o último marco na política de segurança alimentar foi a promulgação pelo Congresso Nacional da emenda à Constituição que introduziu a alimentação entre os direitos fundamentais, em 2010. O marco anterior, de 2006, foi a criação do Sistema Integrado de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que envolve ministérios da área social e programas do governo.
“Do ponto de vista formal, institucional, [a PEC e o Sisan] foram avanços importantes, pelo menos no sentido de reconhecer que, no Brasil, o direito à alimentação é um direito humano, antes não tinha nem isso”, destaca o professor Sauer, que foi relator do direito humano à terra e alimentação da DhESCA Brasil – Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.
Depois da promulgação, o Brasil intensificou as políticas de combate à pobreza, o que resultou na saída do país do Mapa da Fome, em 2014. Ainda em 2002, o Brasil já tinha atingido a meta de reduzir a fome, conforme os Objetivos do Milênio, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000. Para o país, o desafio agora é erradicar a fome até 2030, uma das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, também estabelecidos pela ONU.
No entanto, o direito à alimentação previsto na Constituição é mais amplo do que simplesmente comer. O direito só é efetivo se a pessoa estiver livre da fome e da desnutrição e tiver acesso a uma alimentação adequada e saudável. No Brasil, cerca de 8 milhões de pessoas ainda passam fome, diz a ONU. E, com a crise econômica atual, os especialistas temem que o problema se agrave e possa levar o país de volta ao Mapa da Fome.
“É importante aquele mapa, mas o fato de o Brasil ter saído dele significa que não temos mais problemas? Não, nós saímos do Mapa da Fome mas ainda tinha muito a ser feito. Por exemplo, o auxílio do Bolsa Família deu um alento, mas não solucionou o problema. Agora, com o limite para os gastos públicos e essa combinação entre recessão e desemprego, que gera pobreza e gera fome, infelizmente, há um risco bastante real de o Brasil, se não voltar para o Mapa da Fome, ter uma quantidade maior de famílias em vulnerabilidade social e alimentar”, afirma Sauer.
A redução pela metade do índice de desperdício de alimentos per capita mundial e as perdas ao longo do processo produtivo até a chegada do alimento ao consumidor também está entre as metas da ONU para 2030. Segundo a FAO, órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, o mundo perde ou desperdiça entre um quarto e um terço dos alimentos produzidos anualmente. O volume equivale a cerca de 1,3 bilhões toneladas de alimentos, o que inclui 30% dos cereais, entre 40% e 50% das raízes, frutas, hortaliças e sementes oleaginosas, 20% da carne e produtos lácteos e 35% dos peixes.
A FAO estima que o total desperdiçado seria suficiente para alimentar 2 milhões de pessoas.
O Brasil não tem estimativa real sobre desperdício de alimentos, o que pode dificultar ainda o cumprimento da meta da ONU de redução das perdas ao longo do processo produtivo. Murillo Freire lembra que é preciso conhecer os números de hoje para reduzir metade daqui a 10, 20 anos.
"Não existe uma meta quando não se tem os dados iniciais. Ainda não temos uma metodologia padrão para avaliar perdas e desperdícios. Qualquer perda e desperdício que se tenha, deve-se considerar várias coisas para incluir nesse resultado. Em que ano se fez essa pesquisa de produção? Que produto foi? É cultivado, melhorado? É resistência à praga e doença? Em qual ano se plantou? Foi na chuva ou na seca, no verão ou no inverno? Qual o nível tecnológico usado, adubação, fertilização? Tem treinamento de mão de obra? Não tem? Tudo isso ocasiona perdas adiante ou produto de má qualidade”, questiona o pesquisador.
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